Reflexões sobre a vida e a obra de um otário

“Agora, nos dias atuais, as críticas mais acerbas vêm dos próprios netos, os quais passaram a criticar-lhe a seriedade, a babaquice – debocham, achincalham, ridicularizam, escarnecem. Mas ele, radical e intolerante, continua apostando na honestidade, na honradez, na seriedade, pouco importando se lhes reconheçam, ou não, os méritos. Acha que vale à pena ser assim: tolo, pouco inteligente para uns; honrado, virtuoso e digno, para outros.”
Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

Na crônica que publico a seguir fiz reflexões acerca de um personagem fictício que só sabia ser honesto e que, por isso, açulava a ira até mesmo dos seus parentes mais próxios.

Antecido a seguir alguns fragmentos.

 

  1. Os mais jovens têm em relação a ele sentimentos contraditórios. Para alguns, ele é o exemplo acabado do que deve ser um homem público; para outros, um careta, démodé , boboca, do tipo que pensa que vai consertar o mundo.
  2. E o tempo vai passando. O corpo, agora, lhe pesa, literalmente. O tempo é implacável. Não tem mais agilidade. Doem-lhe as juntas. Andar, já é um sacrifício. Mas ele insista! Não muda! Chega cedo ao trabalho, cumpre o pactuado e quase nunca se atrasa. É do tipo ranheta. Continua acreditando que vale à pena ser honesto, pontual, trabalhador. Sabe que, nos dias atuais, esses predicados são uma caretice, estão desuso. Mas… fazer o quê?

A seguir, a crônica, por inteiro.

 

Ele sempre foi para os seus pares um sujeito do tipo insuportável, contido, calado, às vezes anti-social. Cara amarrada, de trajes despojados, mas muito engomado, daqueles que até os fios de cabelos parecem ter sido rigorosamente arrumados. Ele era do tipo que gostava de chegar cedo ao trabalho, que não atrasava os Ucompromissos, que honrava a hora marcada. Era, pode-se ver, um chato, do tipo intragável – pelo menos para aqueles que agiam e pensavam de forma diametralmente oposta.

Ele era do tipo que andava sempre apressado. Parecia que nunca tinha tempo para uma roda de bate-papo. Em face da sua pressa, quase sempre deixava de cumprimentar as pessoas que encontrava pelos corredores do local onde trabalhava. A cara sisuda e a testa quase sempre franzida faziam dele um ser quase impenetrável – e insuportável. Era do tipo que, à primeira vista, parecia arrogante e prepotente, sobretudo para quem não lhe conhecia e para os que viam na sua retidão uma afronta.

Ele estava sempre absorto; parecia contemplativo, enlevado, extasiado. Era do tipo que parecia viver voando, desligado dos pecados da terra. Deixava transparecer que, fora do seu ambiente de trabalho, nada mais existia. Por ser do tipo empedernido, cumpridor radical de suas obrigações, granjeava, no primeiro momento, a antipatia dos que tinham que com ele lidar, em face do seu ofício. Muitos foram os que externaram o pavor que tinham de lidar com ele, muito embora os que se aventurassem a fazê-lo em pouco tempo percebiam que se tratava de uma pessoa cordata, atenciosa, prestativa, diligente, honesta e desejosa de ajudar o semelhante.

Algumas poucas pessoas que tinham acesso a ele, sempre advertiam que ele ia morrer e o trabalho ia ficar; outras pessoas o advertiram por quase toda a vida, que ele não ia consertar o mundo. Outras tantas lhe lembravam que só trabalhar e trabalhar não lhe renderia o reconhecimento que merecia. Mas esses conselhos não lhe impressionavam. Ele não dava importância para esse tipo de comentário. Às pessoas que pensavam assim ele sempre dizia que pouco importava o reconhecimento dos seus pares, pouco importava que as pessoas o achassem um tipo medonho e abominável. Para ele bastava a consciência de que cumpria o seu papel, sem enleio, sem embaraço, sem tergiversar, sem fazer concessão – obstinadamente, freneticamente, decididamente.
O tempo passou, os cabelos ficaram embranquecidos, a pele foi encolhendo, o coração foi cansando, o raciocínio foi se perdendo, a memória foi se esvaindo. Mas ele estava lá, pé fincado no trabalho, sem arredar, sem se curvar, sem fazer concessões.
O andar, antes frenético, agora é trôpego, vacilante; o olhar, antes fugidio, arredio, agora já não vislumbra, com a nitidez de antanho, o horizonte. Mas ele é duro como pedra; inflexível, não muda nunca – vai adiante com as suas fortíssimas e inabaláveis convicções. Continua na sua luta obstinada para honrar o seu mister, para cumprir as suas obrigações, para ser digno do salário que recebe dos cofres públicos. Nessa senda, não faz concessões, finca o pé – “não arredo nem para um trem”, costuma dizer.

Os mais jovens têm em relação a ele sentimentos contraditórios. Para alguns, ele é o exemplo acabado do que deve ser um homem público; para outros, um careta, démodé , boboca, do tipo que pensa que vai consertar o mundo.

E o tempo vai passando. O corpo, agora, lhe pesa, literalmente. O tempo é implacável. Não tem mais agilidade. Doem-lhe as juntas. Andar, já é um sacrifício. Mas ele insista! Não muda! Chega cedo ao trabalho, cumpre o pactuado e quase nunca se atrasa. É do tipo ranheta. Continua acreditando que vale à pena ser honesto, pontual, trabalhador. Sabe que, nos dias atuais, esses predicados são uma caretice, estão desuso. Mas… fazer o quê?

Agora, nos dias atuais, as críticas mais acerbas vêm dos próprios netos, os quais passaram a criticar-lhe a seriedade, a babaquice – debocham, achincalham, ridicularizam, escarnecem. Mas ele, radical e intolerante, continua apostando na honestidade, na honradez, na seriedade, pouco importando se lhes reconheçam, ou não, os méritos. Acha que vale à pena ser assim: tolo, pouco inteligente para uns; honrado, virtuoso e digno, para outros

O tempo passou, sobreveio a aposentadoria e a saída da ribalta. Agora já não é mais o doutor que tinha algum poder nas mãos. É apenas mais um na multidão. Para alguns, um homem de bem, um exemplo a ser seguido; para outros, um otário, um panaca, um boboca que, tendo o poder nas mãos, dele só fez uso para servir à comunidade. Nunca se locupletou, nunca fez acordos espúrios, nunca se curvou diante dos poderosos – um péssimo exemplo para os sequazes das aves de rapina do serviço público, dos que imaginam que o poder é feito para ser rateado entre os amigos, para enriquecer, para tirar proveito, para obter vantagem.

Ele sabe, sempre teve a mais nítida convicção, que vai morrer assim. Pouco importa a ele se, para muitos, ele não passa de um velho otário, um ingênuo, um tolo. Tem certeza – contudo, pouco se importa – que vai cair no esquecimento. Seu nome não vai aparecer em nenhuma galeria, seu retrato só ornamentará a cabeceira de sua cama – e não será por muito tempo. Mas ele será sempre lembrado pelas pessoas honradas como o homem que viveu e vai morrer com dignidade, pois, mesmo os erros que cometeu – e não foram poucos -, não os praticou de má-fé.

Essas reflexões que faço acerca de um personagem fictício são uma homenagem que presto aos homens de bem de nossa terra, os quais, por serem retos, probos, cumpridores de suas obrigações, muito provavelmente morrerão – ou já morreram – sem que se lhes reconheçam os méritos e, ainda por cima, são tidos e havidos como otários, por não terem sido capazes de trocar a sua dignidade por um cargo ou função ou de amealhar fortuna subtraindo verbas públicas.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “Reflexões sobre a vida e a obra de um otário”

  1. Quem disse que para ser correto e probo deve ser sisudo, anti-social etc.?

    Infelismente, o modelo apresentado por v. exa (certamente, um auto-retrato) não é de homem público não, pois os adjetivos jungidos ao mesmo são totalmente prescindíveis, aliás, opostos.

    Dá-se, sim, para unir-se o útil ao agradável. Pense nisso!

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