Sentença absolutória-artigo 302, do CTB

A relevância da lesão deve, por isso, ser examinada a partir de cada caso concreto, sempre levando-se em conta a nocividade social da conduta, o desvalor da ação e do resultado, além do grau de lesividade ao bem jurídico tutelado, cumulados com a efetiva necessidade de aplicação da pena.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

Na sentença abaixo destaco, dentre outros, os seguintes excertos, verbis:

  1. Depois de analisar o quadro de provas, reafirmo que fiquei estupefato com as conclusões do representante ministerial, ao pedir, alfim do libelo acusatório, a condenação do acusado.
  2. Não sei, sinceramente, em quais provas o MINISTÉRIO PÚBLICO fincou as suas conclusões, mesmo porque as duas únicas provas produzidas em sede judicial e as produzidas em sede administrativa apontam, induvidosamente, para a responsabilidade da ofendida pela ocorrência.
  3. É preciso ter presente – quando se analisa crimes desse matiz – que a figura delituosa em comento – homicídio culposo – decorre de acidente de trânsito com culpa somente. Mas, claramente, o crime só restará tipificado quando provocado por imprudência, negligência ou imperícia, verificando-se aquela quando o acidente decorre por omissão de cautela, atenção ou diligência exigível de todos os seres humanos normais.

A seguir, a sentença, integralmente.

Processo nº 148212000

Ação Penal Pública

Acusada: I. de C. G.

Vítima: A.L. S.

Vistos, etc.

Cuida-se de ação penal que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra I. DE C. G., brasileiro, casado, comerciante, filho de V. de S. G. F. e de F. de C. G., residente e domiciliado na Praça do Mercado Central, nº 151, Centro, nesta cidade, por incidência comportamental no artigo 302, caput, do Código de Trânsito brasileiro, em face de, no dia 15 de novembro de 1999, por volta das 08:40 horas, dirigindo um veículo Fiat Elba, placa HOX-2518, ter atropelado A. L. SI., quando esta caminhava pela Avenida do Contorno, Sá Viana, em direção ao Centro da cidade.

A persecução criminal teve início mediante portaria (fls.08).

Exame cadavérico às fls.15.

Laudo de exame de vistoria em veículo de acidente de tráfego com vítima fatal às fls.24/27.

Laudo de Exame de Reprodução Simulada de Fatos de Acidente de Tráfego Com Vítima Fatal às fls.97/109

O acusado foi citado, qualificado e interrogado às fls. 152/152.

Defesa prévia às fls.149.

Durante a instrução criminal nenhuma testemunha foi inquirida, em face da desistência formalizada pelas partes.

O MINISTÉRIO PÚBLICO, em alegações finais, pediu a condenação do acusado nos termos da denúncia(fls. 174/176).

A defesa, de sua parte, pediu a absolvição do acusado, em face de o acusado não ter concorrido para o crime e que eventuais dúvidas foram dirimidas pela perícia e pela palavra do próprio acusado (fls.181/192).

Relatados. Decido.

I – A TIPICIDADE FORMAL E MATERIAL. O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE E DA LESIVIDADE. INTERVENÇÃO ESTATAL . OS CRITÉRIOS DA NOCIVIDADE E LESIVIDADE DA CONDUTA. O DESVALOR DA AÇÃO E DO RESULTADO.

No Direito Penal, sabe-se, o conceito de tipicidade (subsunção da conduta aos elementos do tipo) representa importante avanço, pois que concretiza, definitivamente, o princípio da reserva legal (artigo 5º, XXXIX e artigo 1º, do Codex Penal).

O tipo penal, nada obstante, não pode ter um significado puramente formal, devendo, por isso, ser aferido a partir de um necessário juízo de valor sobre o comportamento humano.

É bem de ver-se, com efeito, que só é típica a conduta que difere da normalidade social,ou seja, se penalmente relevante, abstraindo-se, portanto, as condutas socialmente aceitas e insignificantes, afinal minima non curat praetor.

Em decorrência da fragmentariedade e subsidiariedade, para ser típica, a conduta deve ser relevante, porque o Direito Penal só deve atuar até onde for necessário para a proteção do bem jurídico.

Cediço, assim, que se a ofensa ao bem jurídico tutelado for insignificante, o fato não é típico, razão pela qual o Estado não está autorizado a intervir penalmente.

A relevância da lesão deve, por isso, ser examinada a partir de cada caso concreto, sempre levando-se em conta a nocividade social da conduta, o desvalor da ação e do resultado, além do grau de lesividade ao bem jurídico tutelado, cumulados com a efetiva necessidade de aplicação da pena.

No caso sob retina, o Estado só interveio porque a conduta do acusado foi socialmente relevante e significativo o grau de lesividade, conclusões a se chega a partir dos critérios de nocividade e desvalor da ação e do resultado.

II – O TIPO PENAL EM COMENTO. CONCEITO E OBJETIVIDADE JURÍDICA. SUJEITOS DO DELITO. ELEMENTOS OBJETIVOS DO TIPO. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. A CONSUMAÇÃO DO ILÍCITO, EM TESE.

No artigo 302 do CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO está definido o crime de homicídio culposo (preceptum iuris) e a pena prevista in abstracto para os seus transgressores (sanctio iuris), nos seguintes termos, verbis:

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

É consabido que a primeira figura penal que passou a ser regulada pelo CÓDIGO DE TRÂNSITO foi o homicídio culposo, que consiste na eliminação da vida de uma pessoa por ato de outra, através de uma causa gerada por culpa, nas espécies imprudência, negligência ou imperícia.

As modalidades de culpa podem ser traduzidas assim: a) na imprudência há a prática de ato perigoso; b) na negligência há falta de precaução ou cuidados; c) na imperícia, há uma omissão em aptidão técnica, teórica ou prática.

Aduzo que a imprudência é a prática de uma conduta arriscada ou perigosa e tem caráter comissivo. É a imprevisão ativa( culpa in faciendo ou in committendo). Conduta imprudente é aquela que se caracteriza pela intempestividade, precipitação, insensatez ou imoderação.

Negligência é a displicência no agir, a falta de precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar as cautelas necessária, não o faz. É a imprecisão passiva, o desleixo, a inação (culpa in ommittendo). É não fazer o que deveria ter feito.

Imperícia é a falta de capacidade, despreparo ou insuficiência de conhecimentos técnicos para o exercício da arte, profissão ou ofício. Imperícia não se confunde com erro profissional. O erro profissional é um acidente escusável.

Os limites da norma imperativa encontram-se no poder de seu cumprimento pelo sujeito. Por isso, o dever de cuidado não pode ir além desses limites. A inevitabilidade do resultado exclui a própria tipicidade. Em outros termos, é indispensável que a inobservância do cuidado devido seja a causa do resultado tipificado como crime culposo.

A forma culposa de homicídio só restará tipificada se presentes estiverem os seguintes requisitos: a) comportamento humano voluntário; b)descumprimento de dever de cuidado objetivo;c) previsibilidade objetiva do resultado; d) morte involuntária.

A par dessas considerações e tendo a nortear esta decisão os comandos legais esculpidos no CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO e na CONSTITUIÇÃO FEDERAL, passo ao exame das provas amealhadas nos autos, aqui considerados os dois momentos distintos da persecutio criminis.

III –  OS FATOS E A DENÚNCIA. OS PRINCÍPIOS DA CORRELAÇÃO, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO, COROLÁRIOS DO DUE PROCESS OF LAW. OBSERVÂNCIA DA REGRA “NARRA MIHI FACTUM DABO TIBI JUS”

I. DE C. G., antes qualificado, foi denunciado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, à alegação de ter ultrajado o preceito primário do artigo 302, do CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, em face de, no dia 15 de novembro de 1999, quando conduzia o veículo Fiat Elba, placa HOX – 2518, ter atropelado e matado A. L. S., quando caminhava pela Av. do Contorno, Sá Viana.

Os fatos narrados na denúncia nortearam todo o procedimento, possibilitando, assim, o exercício amplo da defesa do acusado, sabido que o réu se defende da descrição fática, em observância aos princípios da correlação, da ampla defesa e do contraditório.

Tudo isso porque, sabe-se, ao magistrado é defeso julgar o réu por fato de que não foi acusada(extra petita ou ultra petita), ou por fato mais grave(in pejus), proferindo sentença que se afaste do requisitório da acusação.

IV –  AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO. AS FASES ADMINISTRATIVA E JUDICIAL. A INFORMATIO DELICTI E A OPINIO DELICTI. A PERSECUTIO CRIMINIS IN JUDICIO.

A persecução criminal, no sistema acusatório brasileiro, em regra, se divide em duas etapas distintas, nas quais são produzidas as provas da existência do crime e de sua autoria – uma, a chamada fase administrativa (informatio delict) é procedimento meramente administrativo, cujo objeto de apuração se destina à formação da opinio delicti pelo órgão oficial do Estado; a outra, a nominada fase judicial (persecutio criminis in judicio), visa amealhar dados que possibilitem a inflição de pena ao autor do ilícito, garantido o livre exercício do contraditório e da ampla defesa.

V –  AS PROVAS PRODUZIDAS NA PRIMEIRA FASE DA PERSECUTIO CRIMINIS. AS PROVAS EXTRAJUDICIAIS. A CONFISSÃO DOS CRIMES.

A par dos distintos momentos da persecução, passo ao exame do quadro de provas que se avoluma nos autos

Pois bem, a primeira fase, que não deve ser olvidada apenas porque inquisitória, teve início mediante portaria (fls.08).

Na fase administrativa ressai, com relevância, o depoimento do então indiciado I. DE C. G., que admite ter estado na direção do veiculo Fiat Elba, na Av. do Contorno, bairro Sá Viana, “quando, nas proximidades da entrada principal daquele bairro foi surpreendido por uma senhora que cruzou bruscamente a pista na frente de seu veículo” (fls.1011).

Aduziu o indiciado que “freiou e tentou desviar o veículo, mas não conseguiu evitar o choque em virtude da vítima ter cruzados a frente do veículo quando este estava muito próximo da mesma.”(ibidem).

Acrescentou que “logo após o acidente, tratou de prestar imediato socorro à vítima, levando-a ao Hospital Djalma Marques, onde ficou em observação médica.” (ibidem).

Disse, ademais, que, depois, “dirigiu-se ao plantão central da Refesa, comunicando o fato ao Delegado de Plantão, que lhe orientou para registrar uma ocorrência naquele momento e para que comparecesse no dia seguinte à Delegacia de Acidente de Trânsito.”(ibidem).

Na primeira fase pontifica, ademais, o EXAME CADAVÉRICO DA VÍTIMA, donde irrompe ter sofrido “lesão de órgão nobre (cérebro) por traumatismo crânio encefálico.”(fls. 15).

Esquicha da mesma sede, ademais, o LAUDO DE EXAME DE VISTORIA EM VEÍCULO, donde jorra a conclusão dos senhores peritos de que o mesmo apresentava, por ocasião dos exames ”avarias recentes com características de terem sido produzidos por impacto com corpo flácido, porém em circunstâncias que os mesmo não podem precisar.” (fls. 24).

Além das provas acima mencionadas, duas testemunhas foram ouvidas na mesma fase – J. A. DE V. (fls.29) e G. M. G. L. (fls. 30), cujos depoimentos nada acrescentaram acerca do acidente.

Examinada a prova administrativa, vislumbro, prima facie, que há prova da autoria, sem que se possa, até aqui, afirmar tenha sido o acusado imprudente, negligente ou imperito.

Faz-se necessário, portanto, por imperativo legal, continuar analisando o quadro probatório, para, alfim, chegar a uma conclusão definitiva acerca da ação réproba do acusado.

VI –  A SEGUNDA FASE DA PERSECUÇÃO. A DENÚNCIA FORMULADA. DELIMITAÇÃO DA ACUSAÇÃO. POSSIBILIDADE DE AMPLA DEFESA E CONDTRADITÓRIO, COROLÁRIOS DO DUE PROCESS OF LAW.

Encerrada a primeira fase, o MINISTÉRIO PÚBLICO, de posse dos dados colacionados na fase extrajudicial ( informatio delicti), ofertou denúncia (nemo judex sine actore) contra o acusado imputando ao mesmo o malferimento do artigo 302, CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, fixando, dessarte, os contornos da re in judicio deducta.

Aqui, no ambiente judicial, com procedimento arejado pela ampla defesa e pelo contraditório, produziram-se provas, donde emerge, o interrogatório do acusado(audiatur et altera pars) e a reprodução simulada do acidente.

VII – O EXAME DA PROVA JUDICIAL, O DEPOIMENTO DAS ACUSADA. RATIFICAÇÃO DOS TERMOS DOS DEPOIMENTOS TOMADOS EM SEDE EXTRAJUDICIAL. A PROVA TESTEMUNHAL.

Como antecipado acima, nesta sede foi ouvido o acusado I.DE C. G. o qual, a exemplo do que fizera em sede administrativa, admite ter atropelado a vítima, afirmando que, quando do impacto, “desenvolvia a velocidade aproximada de trinta e cinco a quarenta quilômetros por hora” e que, “apesar de ter visualizado a vítima, que transitava em sentido contrário, não teve como evitar o acidente, vez que a vítima, de súbito, decidiu atravessar a pista, em razão do que, inevitavelmente, foi colhida pelo veículo que conduzia o interrogado.(fls.147/148).

Além do depoimento do acusado, desponta da fase judicial, ademais, o Laudo de Exame de Reprodução Simulada de Fatos de Acidente de Tráfego com Vítima Fatal, cujos peritos concluíram que “a causa determinante do acidente foi atribuída ao comportamento do pedrestre, identificado como Almira Lopes da Silva, que, ao atravessar a pista de rolamento de inopino, indo de encontro ao veículo” conduzido pelo acusado, “ não oferecia condições para o condutor do mesmo evitasse o acidente, visto que, o mesmo se encontrava dentro da zona de não escapada e não teria como evitar o atropelamento que culminou com a morte do pedestre anteriormente identificado.”(fls.97/99).

Além da palavra do acusado e do exame pericial, nenhuma outra prova foi produzida, mesmo porque as partes desistiram das testemunhas que arrolaram.

VIII – AS CONCLUSÕES A PAR DAS PROVAS ALBERGADAS NOS AUTOS. INEXISTÊNCIA DE PROVAS A AUTORIZAR A CONDENAÇÃO DO ACUSADO.

Devo dizer, de logo, sem delongas, sem enleio e sem meias palavras, que não há provas a autorizar a condenação do acusado.

Devo gizar, ademais, que a mim me causou estupefação, depois do exame da prova, o pedido de condenação formulado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, pois que, em sede judicial, a sede das franquias constitucionais, nenhuma prova, mínima que fosse, rarefeita que se apresentasse, demonstrou ter sido o responsável pela ocorrência, conquanto tenha sido um dos seus protagonistas.

Reconheço que sou muito rigoroso no trato dessas questões, pois que sou dos tais que não faz apologia da impunidade. Nenhum rigor, entrementes, por mais extremado que seja, é capaz de legitimar a edição de um decreto de preceito condenatório, sem que haja provas, por mínima que sejam, da responsabilidade penal do acusado.

Ao Estado, por seus agentes, se deferiu o poder de julgar os seus semelhantes, cujos agentes, nada obstante, não estão autorizados a exorbitarem de suas atribuições, máxime se essa exorbitância se traduz em arbítrio.

Malgrado tenha-se que admitir ter sido o acusado o condutor do veículo que colidiu com a vítima – fato confessado nas duas sedes em que se materializou a persecução criminal -, não se pode a ele atribuir a responsabilidade pelo que ocorreu, a considerar, claro, as provas produzidas, nas duas sedes da persecução criminal, com destaque, por razões óbvias, para as produzidas em sede judicial.

Depois de analisar o quadro de provas, reafirmo que fiquei estupefato com as conclusões do representante ministerial, ao pedir, alfim do libelo acusatório, a condenação do acusado.

Não sei, sinceramente, em quais provas o MINISTÉRIO PÚBLICO fincou as suas conclusões, mesmo porque as duas únicas provas produzidas em sede judicial e as produzidas em sede administrativa apontam, induvidosamente, para a responsabilidade da ofendida pela ocorrência.

É preciso ter presente – quando se analisa crimes desse matiz – que a figura delituosa em comento – homicídio culposo – decorre de acidente de trânsito com culpa somente. Mas, claramente, o crime só restará tipificado quando provocado por imprudência, negligência ou imperícia, verificando-se aquela quando o acidente decorre por omissão de cautela, atenção ou diligência exigível de todos os seres humanos normais.

De concluir-se, à luz do exposto, que se não houve desatenção, omissão de cautela ou falta de diligência do condutor do veículo, não se há de falar, validamente, em responsabilidade penal. Se alguém agiu sem cautela esse alguém foi a vítima, desenganadamente – a considerar, claro, as provas produzidas.

Do exame da prova consolidada o que se vê, às claras, repito, a par, sobretudo, da prova pericial, é que a responsabilidade pelo acidente foi exclusivamente da vítima, e, “nos delitos oriundos de acidente de trânsito, se o evento se deu por culpa exclusiva da vítima, não há como se imputar qualquer responsabilidade ao condutor do veículo, já que para incriminação é necessária a prova do elemento moral.”

No mesmo diapasão a decisão segundo a qual “ se a prova leva à convicção de que o desastre aconteceu por culpa exclusiva da vítima, justifica-se o decreto absolutório.”

O poder dos agentes públicos não é ilimitado e nem pode ser arbitrário. Não se pune pelo prazer de punir, não se encarcera pelo desejo de encarcerar, não se infligi pena escorado em falsas premissas, em conjecturas.

Sé é verdade que a vítima sucumbiu diante do evento, se é verdade que teve subtraído o seu bem mais precioso – por isso mesmo tutelado pelo Direito Penal – não é menos verdade que o acusado não pode se ver privado de sua liberdade, para atender às idiossincrasias de quem quer que seja.

Nenhum de nós, por mais que nos imaginemos acima do bem e do mal, está autorizado, a, no uso das nossas atribuições, agir desavisadamente, negligentemente, sem rumo e sem norte, desabridamente, em detrimento das garantias constitucionais de um acusado, por mais que ele possa parecer indigno aos nossos olhos.

No mundo em que vivemos, onde a morte no trânsito compõe apenas um quadro estatístico, onde grassa a indiferença e o desrespeito para com o semelhante, onde preponderam os interesses privados sobre o coletivo, a atitude do acusado, diante do acidente, cuidando de socorrer a vítima, é digno de encômio. Puni-lo, por isso e sem provas de que tenha sido negligente, imprudente ou imperito, é um destrambelho, um despautério, uma falta de respeito, pura e simplesmente, para com um cidadão de bem – até que se prove em contrário –, além de se traduzir em uma afronta aos mais comezinhos princípios que norteiam as decisões judiciais.

É possível, sim, que o acusado, ao tempo do fato, desenvolvesse velocidade superior à permitida. É preciso convir, nada obstante, que não há um único condutor de veículo neste país que se atenha, rigorosamente, à velocidade máxima permitida. Nesse sentido, somos todos, de certa forma, hipócritas e dissimulados. Dessa velocidade excessiva, desse agir imprudente, nada obstante, tinha que fazer prova o MINISTÉRIO PÚBLICO. Não o fazendo, deve suportar a inviabilidade de sua pretensão e a conseqüente absolvição do acusado.

Claro que não se estimula, sob qualquer pretexto, o excesso de velocidade. Aquele que eventualmente se exceda e, em face desse excesso, comete um ilícito de trânsito, deve ser punido exemplarmente. Mas, para que seja punido, há que se provar, sem a mais mínima dúvida, a ocorrência da imprudência e que dela tenha resultado o evento. Não se pode punir cimentado, alicerçado em conjecturas, apenas e tão-somente para responder aos anseios da sociedade.

A meu sentir o magistrado que decido, afastando-se do quadro de provas, apenas para dar uma satisfação à sociedade, não é digno do cargo que exerce.

IX – . O CRIME COMO FATO REPROVÁVEL. A VIOLAÇÃO DE UM DEVER DE CONDUTA. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. A INEXISTÊNCIA DE CRIME. A CONDUTA CULPOSA DO AGENTE IMANENTE AO TIPO NOS DELITOS CULPOSOS.

Não tenho dúvidas de que o acusado conduzia o veículo que atropelou a vítima, causando-lhe a morte. Não tenho dúvidas de que o crime é um fato reprovável, por ser a violação de um dever de conduta, do ponto de vista da disciplina social ou da ordem jurídica. Não tenho dúvida, nada obstante, que “essa reprovação deixa de existir e não há crime a punir, quando, em face das circunstâncias que se encontrou o agente, uma conduta diversa da que teve não podia ser exigida do comum dos homens.”

O acusado, diante do aparecimento, de inopino, da vítima, nada pode fazer, em face das circunstâncias. E não se podia, por isso, exigir dele conduta diferente da que teve, resultando disso a inviabilidade de uma punição.

Nos delitos culposos, o elemento subjetivo está imanente ao tipo, resultando dessa constatação que “a ação antijurídica só se enquadra na definição legal do delito quando, além de ser antecedente material do resultado, o tenha causado por culpa. O fato típico só se compõe, só se integra, quando o laço causal liga o evento a uma conduta culposa do agente. Por isso mesmo cabe à acusação demonstrar a ocorrência do elemento culpa na conduta do agente.”

Na mesma direção é a decisão segundo a qual “ nos delitos culposos, o elemento subjetivo está imanente ao tipo. Assim, a ação antijurídica só se enquadra na definição legal do delito quando, além de ser antecedente material do resultado, o tenha causado por culpa.”

Nos crimes culposos não se pode perder de vista, de mais a mais, que “a condição mínima da culpabilidade é a previsibilidade ou evitabilidade do resultado antijurídico, tendo-se em conta id quod plerunque accidit. Se o advento desse resultado exorbita da previsão e diligência do homo medius ( que é um imprescindível ponto de referência do Direito penal) e ainda que não se trate, rigorosamente, de caso fortuito, não há reconhecer-se um agente culpado ou incurso na reprovação jurídico-penal.”

Diante dessas assertivas, não se pode, francamente, reconhecer o acusado culpado, quando ele, ao que ressai do conjunto probatório, foi surpreendido com a presença da vítima, que, de súbito, cruzou o seu caminho.

É preciso ter em conta que qualquer um de nós, ainda que promotor de justiça ou magistrado, diante da mesma situação, não agiria de forma diferente, a menos que fôssemos dotados de premonição e de poderes sobrenaturais.

O acusado, ao que vislumbro do quadro de provas consolidado nos autos, não tinha como prevê e evitar o resultado antijurídico, pois que este exorbitou da previsão e diligência do homo medius, daí porque não se há de reconhecê-lo culpado.

Devo anotar, como o tenho feito em reiteradas decisões, que “é na previsibilidade dos acontecimentos e na ausência de precaução que reside a conceituação da culpa penal, pois é a omissão de certos cuidados nos fatos ordinários da vida, perceptíveis à atenção comum, que se configuram as modalidades culposas da imprudência e negligência.”

Não bastam, para imputabilidade do crime culposo, a ação, o resultado e o nexo causal material. É preciso que se demonstre, quantum sufficit, que o autor do fato tenha se descuidado dos fatos ordinários da vida. Se o acontecimento tem a marca da excepcionalidade, se se mostra extraordinário, de moldes a mostrarem-se imprevisíveis, não se há de cogitar de um decreto de preceito sancionatório.

Sem culpa, em casos que tais, não há pena. Sendo imprevisível o evento por ele não pode responder o agente. Somente se há de reconhecer o crime culposo quando a conduta voluntária ligada ao evento, necessariamente, produzir um resultado danoso não previsto, mas previsível.

No apuro da imprevidência culpável, há que se demonstrar, à mais não poder, que o agente tenha omitido as precauções exigidas por sua situação pessoal.

Reafirmo, ainda que o faça à exaustão, que a previsibilidade, em casos que tais, constitui o ponto nuclear da culpa. Sem ela, é bem de ver-se, torna-se impossível fundamentar ou justificar, como pretende o MINISTÉRIO PÚBLICO, um juízo de culpabilidade ou reprovação. “E isso porque somente fundado na possibilidade de se prever o que não foi previsto, que se pode imputar a alguém não ter tido conduta que evitaria o resultado danoso.”

No caso sub examine, depois do exame percuciente da prova, posso afirmar, que está-se defronte de uma fatalidade, que não pode, por isso, autorizar a incriminação do acusado.

Ao que vislumbro do pedido de condenação formulado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, a sua postulação parece-me embasada em elementos fáticos diversos daqueles que presidiram os acontecimento sub judice.

X –  A NECESSARÁRIA FLEIXIBILIZAÇÃO NO APURO DE CRIMES DESSE MATIZ. NECESSIDADE QUE SE A EXAMINE A PREVISIBILIDADE EM FACE DA CONDIÇÃO DE SER HUMANO DO ACUSADO.

Além de tudo o mais que foi exposto, tem-se a favor do acusado a convicção de que há de analisar-se o critério de previsibilidade, informadora da culpa em sentido estrito, com uma certa flexibilidade, sob pena de motorista algum se livrar de uma sanção, pois que deles sempre se pode exigir, de rigor, com desprezo à realidade, a previsão de um acidente.

O substrato da culpa, embora seja a previsibilidade, “não há entender em sentido absoluto pena de, a contrario sensu, tornar impossível a absolvição do motorista em caso de atropelamente por imprudência do pedestre.”

Ao que infiro da postulação ministerial, o que ele pretende, em verdade, contrariando a lógica e o bom senso, é levar a previsibilidade até as últimas conseqüências. Ao réu cabia agir com a adoção de cuidados objetivos mínimos, como se espera de uma pessoa bem intencionada. Não se pode, contudo, exigir que aja como um ser sobrenatural, capaz de agir além do imaginável.

XI – O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA RECPIPROCA EM MATÉRIA DE TRÂNSITO. DEVER QUE ALCANÇA O COMPORTAMENTO DA VÍTIMA.

O trânsito de veículo há que ser regido pelo principio da confiança recíproca, em razão do que de cada um dos participantes do trafego se deve esperar que se atenham às regras e cautelas que de todos são exigidas. O pedestre não passa ao largo desse dever de cautela. O pedestre, a exemplo do motorista, tem o dever de, também, se comportar de maneira correta, observando as normas de trânsito.

É curial que tudo que não é fisicamente impossível é previsível. No que se referente ao trânsito, nada obstante, a previsibilidade há de ser temperada pelo princípio da confiança recíproca “ em razão do qual cada um dos envolvidos no trafego tem o direito de esperar que os demais se atenham ás regras e cautelas que de todos são exigidas.”

XII – A PROVA DA CULPA. A NECESSIDADE DE QUE SE FAÇA ACIMA DE QUALQUER DÚVIDA. A INVIABILIDADE DE DECIDIR-SE POR ILAÇÃO OU PRESUNÇÃO DEDUTIVAS.

Não se pune por ilação. Não se pune por dedução. Em tema de delito culposo, ad exempli, a culpa deve ser provada acima de qualquer dúvida. Não é razoável que se puna alguém especulando acerca de sua responsabilidade. Provada a imprudência da vítima e não do motorista, é incabível falar em culpabilidade deste.

A condenação criminal não pode decorrer de um juízo de probabilidade. Precisa estar escudada, esteada em elementos que convençam o magistrado da culpa do agente pelo evento.

A simples infringência de uma norma, sem respaldo probatório roborante, não induz culpa, porque esta, sob qualquer hipótese, não pode ser presumida.

A obligatio ad diligentiam nos crimes de trânsito deve ser dividida com o pedestre, a quem cabe, também, o dever de cautela, quando se decide, v. g., pela travessia de uma pista.

TUDO POSTO, JULGO IMPROCEDENTE a ACUSAÇÃO, para, de conseqüência, ABSOLVER o acusado I. DE C. G. da imputação que lhe é feita, o fazendo com espeque no inciso IV, do artigo 386, do Digesto de Processo Penal.

Sem custas.

P.R.I.

Com o trânsito em julgado desta decisão, arquivem-se os autos, com a baixa em nossos registros.

São Luís, 27 de abril de 2006.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

 JUTACRIM 77/334

 JUTACRIM 56/246

 JUTACRIM 63/345

 RT 415/263

 RT 398/291

 RT 488/376

 RT 411/275

JUTACRIM 62/113

 JUTACRIM 29/275

JUTACRIM 15/251

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

3 comentários em “Sentença absolutória-artigo 302, do CTB”

  1. Muito bem analisado pelo Magistrado, parabéns!!!

  2. Muitos tem o poder, mas poucos fazem JUSTIÇA! PARABÉNS por realizá-la.

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