Inversão procedimental. Emendatio libelli. O princípio da correlação e da ampla defesa

Na sentença  prolatada em 2006 – antes da reforma, portanto -,  nos autos do processo nº 018216/01, enfrentei duas questões preliminares da defesa. Na primeira,  a defesa alegou que foi promovida uma inversão na produção das provas; na segunda, alegou que o Ministério Público  capitulou o crime de forma equivocada.

Acerca da capitulação feita pelo Ministério Público na proemial, expendi as seguintes considerações:

  1. Devo argumentar, finalmente, que  a classificação do delito na peça acusatória não tem, necessariamente, que ser exata, pois que o perfeito enquadramento  da espécie é tarefa do magistrado, a partir do princípio  do “narra mihi factum , dabo tibi jus”.
  2. No contexto em que se deram os fatos e em vista da nova definição jurídica, tratando-se de simples corrigenda da imputação(emendatio libelli), não há falar-se em manifestação posterior da defesa
  3. Ver-se-á, quando do exame do mérito, que a denúncia, nos termos em que está  vazada, permitirá, sim, um prefeita correlação com o que será decidido, com o que se pode afirmar que restará respeitado o princípio da correlação,  uma das mais relevantes garantias do direito de defesa.
  4. O que não pode o juiz—e aqui não será diferente—é julgar o acusado por fato de que não foi acusado (extra petita ou ultra petita), ou por fato mais grave(in pejus), proferindo decisão que se afaste do requisitório da acusação.
  5. O princípio da correlação, repito, representante uma das mais relevantes garantias do direito de defesa, que se acha tutelado por via constitucional.
  6. O mencionado princípio determina que o magistrado não possa condenar o réu por fato não descrito na denúncia, a menos que adote a providência do artigo 384 ou de seu parágrafo único.
  7. O julgador, repito, não pode julgar o acusado por fato que não lhe foi imputado na peça acusatória. Impedem-no os princípios da plenitude de defesa e o nex procedat judex ex officio, corolários do sistema acusatório entre nós adotado
  8. Cediço, pois, que, antes da questão de fundo, tive que enfrentar as preliminares, como sói ocorrer.
  9. É sobre elas que cuidam os excertos a seguir transcritos, na certeza de  que  uma delas é questionável, em face do sistema acusatório brasileiro. Mas que fique claro que, quando publico essas matérias, o que pretendo mesmo é estimular o debate. Não tenho a pretensão de achar que a minha posição está correta.

A seguir, pois, os fundamentos com os  quais afastei as preliminares da defesa; excertos que, tenho convicção, como tudo em direito, são questionáveis.

 

Processo nº 018216/01

Ação Penal Pública

Acusado: Adeilton Marçal da Silva

Vítima: Denise Pereira Raposa

 

(…)Antes do exame da questão de fundo, detenho-me na preliminar da defesa.

A defesa argumenta que houve uma inversão na oitiva das testemunhas, pois que teria sido ouvido as testemunhas ditas de defesa, antes da audição de todas as testemunhas do Ministério Público.

Puro mimetismo!

Ocorreu, em verdade, o seguinte.

Em vista de a instrução estar atrasada, designei, para o mesmo dia, audiência para inquirição das demais testemunhas do rol do Ministério Público e da defesa.(fls.83)

Ocorreu, entretanto, que as demais testemunhas do Ministério Público não foram localizadas e/ou não compareceram, tendo o representante ministerial aquiescido que fossem ouvidas as de defesa, para, em seguida, desistir da inquirição das demais testemunhas que arrolou.

Assim foi feito.

Às fls.91/94, ouvimos todas as testemunhas ditas de defesa.

Mais à frente, por equívoco, designei data para audição das demais testemunhas do rol do Ministério Público, o que, entrementes, não poderia ter sido feito, pena de inverter-se a produção de provas. (fls.96)

O representante ministerial, consciente de que não mais poderia ser ouvidas as demais testemunhas que arrolou, pena de nulidade, da sua audição desistiu, o fazendo às fls.102v..

Desistindo o representante ministerial das demais testemunhas que arrolou e em vista de ter constato a relevância do seu depoimento para o esclarecimentos dos fatos, decidi ouvi-las como testemunhas do juízo, fato do conhecimento da defesa, que, inclusive, participou da audiência, como se vê às fls.104/107.

Presente ao ato, o procurador do acusado dele participou, sem nada argumentar e sem pedir sequer que fosse consignado em ata a sua discordância com o ato que se realizava.

É cediço que o juiz pode, sim, ouvir outras testemunhas que não as indicadas pelas partes, desde que julgue necessário o seu depoimento.

Antes da realização do ato, sublinhei acima, o Ministério Público  apressou-se em dispensar o depoimento das demais testemunhas que arrolou, no dia 14 de fevereiro, tão logo cientificado da audiência, que se realizou, registre-se, quase um mês depois.

Contra essa desistência, não se insurgiu a defesa, quiçá porque lhe interessava a não audição das testemunhas em comento.

Em face da faculdade que a mim me confere o artigo 209 do CPP, senti-me credenciado a ouvir as demais testemunhas, pois que no interesse da verdade material.

No processo penal, em que sobreleva o sistema de apuração da verdade material, de que é corolário o princípio da investigação, tem o juiz o direito de ouvir outras testemunhas além das arroladas pelas partes, podendo inquiri-las, registre-se, mesmo depois de encerrado o sumário e oferecidas as alegações finais.

O magistrado, sabe-se, não está adstrito ao número de testemunhas previsto em lei. Ao contrário, no intuito de fazer emergir dos autos a verdade material, pode e deve ultrapassá-lo, ouvindo como suas testemunhas indicadas pelas partes. O princípio da verdade real visa o correto julgamento e para atendê-lo é que se deu ao julgador a possibilidade de repetir provas ou coligir outras.(RT 559/338).

Corolário do sistema da verdade material é o princípio da investigação, que se traduz no poder-dever do juiz de esclarecer os fatos. Em virtude desse poder-dever, é-lhe facultado ouvir testemunhas não arroladas pelas partes, por sugestão destas ou por sua iniciativa.(RT 610/386).

Tenho que os argumentos acima expendidos expungem, afastam, esmaecem, obliteram, enfim, a preliminar agitada pela  defesa.

A outra preliminar da defesa diz respeito à imputação.

A defesa alega que a imputação é inválida.

Em determinado excerto da preliminar, a defesa afirma, dentre outras coisas, que a denúncia é deficiente no tocante à imputação, pois que “embora narre um suposto crime de lesão corporal, faltou-lhe a descrição da capitulação legal, pois se refere apenas ao caput do artigo 129 do CP”.

De certa forma, a própria defesa oblitera a preliminar.

Explico. Quando a defesa alega que o Ministério Público não fez a capitulação correta, está dizendo que houve, sim, imputação, só que, desatento, o Ministério Público equivocou-se na capitulação.

Convenhamos, o que delimita a acusação não é a capitulação. O que a delimita são, todos sabem, os fatos narrados nela.

Nos autos em testilha, o Ministério Público, narrando  os fatos, fez, efetivamente, a capitulação de forma, digamos, equivocada, o que, entretanto, não impede, ex vi legis, a edição  do provimento judicial, sabido que  o réu não se defende da capitulação, mas, sim, dos fatos.

Os fatos narrados na denúncia, é curial, não inviabilizam o exercício da defesa do acusado, mesmo porque, em determinado momento, o Ministério Público, textualmente, refere-se a lesões corporais gravíssimas. Lesões corporais gravíssimas, é da sabença comum, não pode ser a prevista no caput do artigo 129 do CP.

Em outro fragmento relevante extraído da prefacial, vê-se que o Ministério Público ao iniciar a narração dos fatos imputados ao acusado, diz, textualmente, que ele, o acusado, “lesionou o rosto de Denise Pereira Raposo, provocando deformidade permanente, conforme constatado em exame complementar de fls.19”.

Pode-se sintetizar afirmando que, conquanto tenha o representante ministerial imputado ao acusado a prática de crime de lesão corporal gravíssima, em face da deformidade permanente, fez a capitulação de forma equivocada, daí a possibilidade de corrigenda do libelo.

 Demais disso, o magistrado não está jungido à classificação  provisória feita pelo Ministério Público, podendo, sim, dela desgarrar-se, invocando o princípio  “narra factum mihi dabo tibi ius”.

Ao proceder à nova definição jurídica da imputação inicial (emendatio libelli), devo argumentar, não se atenta contra os princípios da ampla defesa  e o nex procedat judez ex officio, corolários do sistema acusatório entre nós adotado.

Devo argumentar, finalmente, que  a classificação do delito na peça acusatória não tem, necessariamente, que ser exata, pois que o perfeito enquadramento  da espécie é tarefa do magistrado, a partir do princípio  do “narra mihi factum , dabo tibi jus”.

No contexto em que se deram os fatos e em vista da nova definição jurídica, tratando-se de simples corrigenda da imputação(emendatio libelli), não há falar-se em manifestação posterior da defesa

Ver-se-á, quando do exame do mérito, que a denúncia, nos termos em que está  vazada, permitirá, sim, um prefeita correlação com o que será decidido, com o que se pode afirmar que restará respeitado o princípio da correlação,  uma das mais relevantes garantias do direito de defesa.

O que não pode o juiz—e aqui não será diferente—é julgar o acusado por fato de que não foi acusado (extra petita ou ultra petita), ou por fato mais grave(in pejus), proferindo decisão que se afaste do requisitório da acusação.

O princípio da correlação, repito, representante uma das mais relevantes garantias do direito de defesa, que se acha tutelado por via constitucional.

O mencionado princípio determina que o magistrado não possa condenar o réu por fato não descrito na denúncia, a menos que adote a providência do artigo 384 ou de seu parágrafo único.

O julgador, repito, não pode julgar o acusado por fato que não lhe foi imputado na peça acusatória. Impedem-no os princípios da plenitude de defesa e o nex procedat judex ex officio, corolários do sistema acusatório entre nós adotado

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “Inversão procedimental. Emendatio libelli. O princípio da correlação e da ampla defesa”

  1. Excelentes comentários. Certamente irei adicionar o bloq nos meus favoritos e acompanhar os artigos e explanações que são veiculadas nesse espaço.

    Grato,

    Diego Franco

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