É sempre assim: o Tribunal de Justiça, por um dos seus órgãos fracionários (Câmaras Criminais), concede uma ordem de habeas corpus, e o mundo desaba sobre a cabeça dos desembargadores. É como se fôssemos uns insensíveis. É como se, nessa condição, tivéssemos virado as costas para o interesse público. É como se não morássemos na mesma comunidade. E como se estivéssemos à salvo da criminalidade. É como se os nossos filhos vivessem na Suíça ou na Dinamarca. É como se o nosso mundo não fosse o mesmo mundo dos nossos jurisdicionados.
Mas não é bem assim. É preciso muito cautela – e responsabilidade, sobretudo – no exame dessa questão. É preciso olhar a questão com os olhos de bem ver, para que não se cometam injustiças. Nós não somos os seres frios e calculistas que muitos pensam. Não é verdade que não nos importemos com a criminalidade, pois ele, sob qualquer ângulo que se queira ver a questão, atinge a todos nós, indistintamente. Diante dela e em face dela não há ministros, desembargadores, juízes, promotores de justiça ou delegados ou policiais. Somos todos iguais, rigorosamente iguais.
Ao magistrado, tenho dito, reiteradas vezes, não é dado o direito de fazer cortesia com o direito alheio. Ainda que as suas decisões sejam incompreendidas por parcela significativa da sociedade, ainda que, aparentemente, conflitem com o interesse público, o magistrado não pode, só por isso, deixar de conceder uma liberdade provisória a que faça jus o acusado, ou relaxar uma prisão ilegal.
É de relevo que se diga que não se constrói uma sociedade minimamente justa, se ao aplicador da lei não for permite reparar a ilegalidade de uma prisão, com receio do que possa pensar a opinião pública.
Quando um magistrado, de primeiro – ou de segundo grau – decide-se pela liberdade de um traficante, ad exempli, em face da manifesta ilegalidade da sua prisão, está afirmando, no mesmo passo, que qualquer pessoa que se veja em situação similar, poderá se socorrer do mesmo expediente para reparar uma ilegalidade que eventualmente lhe tolha a liberdade de ir e vir. Isso é estado de direito. Isso é exercício de cidadania, que nada tem a ver com o Estado tirânico.
É necessário compreender, nessa linha argumentativa, que uma prisão ilegal só encontra conforto num Estado vingador e/ou perseguidor, o que não é o nosso caso.
Não se pode, à luz dessa constatação, manter preso, provisoriamente, sem uma definição, quem eventualmente tenha tangenciado as leis do estado, apenas porque vivenciamos uma verdadeira guerra civil urbana, com a violência se esparramando pelos quatro cantos das aglomerações urbanas.
É preciso ter em conta que não se repara uma ilegalidade praticando outra ilegalidade. O Estado não pode ser protagonista de ilegalidades, ainda que o agente público que o represente seja incompreendido e, muitas vezes, como se tem visto, até espezinhado.
Nossa geração testemunhou o desconforto, pra dizer o mínimo, de viver num Estado totalitário, para o qual os fins justificavam os meios e no qual viu-se, estupefatos, o abespinhamento das as franquias constitucionais dos cidadãos. Não podemos, por isso, fazer apologia do escárnio às leis, para ser simpáticos à opinião pública.
Não pode um magistrado, num Estado de Direito, ser acossado, desrespeitado, atacado, às vezes de forma vil e covarde, apenas porque cumpriu a lei, apenas porque reparou a ilegalidade de uma prisão. Isso, importa consignar, com a devida ênfase, é intolerância; intolerância que não guarda sintonia com uma sociedade civilizada.
No caso específico da Comarca de São Luis, temos, por força das circunstâncias, concedido, sistematicamente, ordens de habeas corpus a muitos acusados da prática de tráfico ilícito de entorpecentes, sem que a população compreenda as razões do desate, mesmo porque os juízes não têm por hábito sair por aí propalando, nos cantos da cidade, as razões que o levaram a decidir dessa ou daquela forma. Todavia, em face da gravidade da situação, em face das sucessivas concessões de habeas corpus é necessário dizer que assim o fazemos porque a única vara de entorpecentes da comarca está estrangulada, sem condições de julgar os processos a tempo e hora, disso decorrendo que, não raro, há excesso de prazo na ultimação da instrução, excesso que nos compele determinar a soltura de tantos quantos sejam vítimas da prepotência do estado, incapaz, em casos que tais, de julgar em tempo razoável, como preconiza a nossa Constituição.
Importa dizer, para que fica bem claro, que não nos sentimos confortáveis diante dessa situação. Ao reverso, essa situação nos agasta, sobretudo porque entendemos que se deva combater o tráfico de entorpecentes com rigor. Esse rigor, inobstante, não pode ser convolado em arbítrio, em ilegalidades. O magistrado que se compraz em oficializar o arbítrio, pode não estar preparado para o exercício do mister.
Urge, em face da situação caótica em que se encontra a única vara de entorpecentes da comarca de São Luis, que se tome uma providência; providência que passa, necessariamente, pela criação e instalação de, no mínimo, mais duas varas especializadas, sem mais tardança. Como está não pode ficar. Diante desse quadro, a liberdade dos acusados de tráfico será a tônica, ainda que, por isso, sejamos espezinhados por uma parcela da população que, estupefata diante da violência, não consegue compreender por que se prende hoje e se solta amanhã.
No que se refere, especificamente, ao tráfico de entorpecente, a grita é mais estridente porque há um dispositivo na Lei de Drogas que estabelece ser insuscetível de liberdade provisória o crime de tráfico e entorpecentes. Mas isso é um rematado equívoco. A verdade é que o legislador se excedeu nessa questão, a ponto de hostilizar a Constituição Federal. E tanto se excedeu que, hoje, já não se tem dúvidas de que esse dispositivo é inconstitucional, daí que a impossibilidade de concessão de liberdade provisória ao indiciado/acusado por tráfico de drogas é uma falácia, fruto da exacerbação dos nossos legisladores.
A propósito, convém assinalar que eles, os legisladores, pensam, equivocadamente, que basta fazer uma lei para resolver o problema da criminalidade, como num passe de mágica. Tem sido assim. O Estado legislador, nessa questão, tem sido profícuo, conquanto seja avarento em questões outras muito mais relevantes.
A verdade, que não escapa ao olhar mais fugidio, é que basta que o crime repercuta para que, na sua balada, pegando carona na sua cauda, venha, a reboque um projeto de lei preconizando penas mais rigorosas. É como se prisão resolvesse a questão da criminalidade. É como se bastassem leis preconizando penas mais rigorosas para fazer refluir a criminalidade.
Os legisladores, nessa e noutras questões de igual matiz, agem como se dissessem: fizemos a nossa parte, o resto agora é com a Justiça. É dizer: tiram dos seus ombros o peso da criminalidade e o jogam, sem pena e sem dó, nos ombros do Poder Judiciário, a quem cabe a responsabilidade e o ônus da concessão de uma liberdade ou da decretação de uma prisão.
O Estado, todos sabemos, tem por finalidade a consecução do bem comum, que jamais será alcançado sem a preservação dos direitos dos cidadãos. Mesmo quando o Estado intervém com o jus puniendi, tem que respeitar o direito dos seus integrantes, ainda que, repito, tenham tangenciado as leais penais, sabido que, mesmo punindo, não se pode olvidar da dignidade da criatura humana.
Nessa linha de pensar, reafirmo que, diante de uma prisão ilegal, o Estado, por seus agentes, não pode se omitir, ainda que o preço seja a incompreensão dos seus integrantes.
Como advogado atuante na esfera criminal tenho observado incrédulo o proceder de alguns integrantes do Poder Judiciário, digo alguns magistrados. Estes sob a falsa divisa da “defesa social” contra a ação dos “maus”, convictos que se encontram de estarem vivendo em um imaginário Estado de Sítio, de forma criminosa aos poucos estão transformando o processo penal em um perigoso “vale-tudo” onde tudo é permitido, principalmente o atropelo aos direitos e garantias fundamentais do ser humano, adquiridos às duras penas pelos grandes pensadores através de séculos de luta. Para estes justiceiros de beca, existem tão somente duas palavras, quais sejam: prisão e condenação. Fora isso nada é permitido, tudo que não seja isso é imoral. Eminente MAGISTRADO, como poucos entendo sua inquietação, que reputo totalmente pertinente, a mim resta dizer que tenho como razão da minha existência a abnegada sede de justiça na defesa de seres humanos da ignorância dos que chamo de justiceiros de toga. “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente. Essa desenfreada vocação à substituição de justiça por vingança denuncia aquela que em outra ocasião referi como estirpe dos torpes delinqüentes enrustidos que, impunemente, sentam à nossa mesa, como se fossem homens de bem” Evandro Lins e Silva. Sucesso grande homem.
Desembargador,
Concordo com o senhor. encaminhei esse seu artigo, para uma prima minha que é desembargadora no RJ e aprecia bons textos, como este.O ministro marco aurelio em julgado sobre lei da ficha limpa, proferiu: ” Não me pressiona a iniciativa do projeto, o fato de ter se logrado em 1,7 milhão de assinaturas. Não me pressiona porque o povo se submete à Carta da República, a menos que o povo vire a mesa e proceda à revolução rasgando a Carta “.
Uma das melhores reflexões que li nos últimos tempos, sobretudo se levarmos em consideração que o senso comum é desprovido de crítica, de aprofundamento, de tecnicidade. Ao reverso, ele (o senso comum) é instável, volátil, vulgar.
Vai uma citação com o qual o hidratado texto tanto se afina: “Há mais coragem em ser justo, parecendo ser injusto, do que ser injusto para salvaguardar as aparências da justiça” – Piero Calamandrei
Dr. José Luiz.
Sempre defendi que a Magistratura fosse respeitada por todos, advogados, promotores, defensores, pois enquanto acreditarmos na Justiça poderemos dormir melhor.
Mas o que temos visto e presenciado é a injustiça prepoderando. Nunca estive tão indignado como agora com a Justiça. Veja bem. A pretexto de corrigir eventuais erros cometidos, o CNJ indisfarçavelmente tem cometido os maiores absurdos contra os Magistrados que hoje são desmoralizados pela sociedade.
Esse momento de engano, de cegueira conduzirá a sociedade ao absurdo de proclamar a morte do direito. É só vê a lei complementar nº 135 (ficha limpa) pra vê a que ponto chegamos.
O STF está longe do direito, hora um Ministro suspende a lei noutra hora um Ministro repulta válida o diploma inconstitucional. A lei é boa, mas não pode retroagir pra prejudicar o réu, mas a CF é posta à margem e se vê que isto acontece por causo do clamor público.
E o direito onde fica? No lixo.