Ao relento

Muito cedo, por volta das 06h40 minutos, do dia 17 do corrente, sábado, levei meu carro pra lavar, num posto aqui perto do meu apartamento na avenida dos Holandeses, na Ponta D’areia.

Levei comigo o meu notebook, no qual estavam os votos dos processos incluídos na pauta vindoura da 1ª Câmara Criminal. Era minha intenção de, ao tempo em que lavavam o meu carro, fazer uma releitura de todos os votos, bem assim as correções que entendesse devesse fazer.

Com a proposta de trabalho estabelecida na mente, fui surpreendido com a sala de espera do posto fechada. Pedi que a abrissem, mas não encontraram a chave da porta. Pensei: santa desorganização. Parece uma repartição pública, daquelas que, uma hora antes da assinatura do ponto, os funcionários cruzam os braços.

Fiquei um pouco desconcertado, em pé – já quase irritado – , com o notebook sob o braço e, na mente, a frustrada perspectiva de trabalhar.

Não sabia o que fazer com os planos que fiz – e muito menos com o notebook.

O notebook, para mim, só tinha sentido, naquela hora, se fosse para colocar em prática o que havia planejado. Sem um lugar para sentar, de nada valiam o notebook e a ideia que tinha na cabeça. Era como estar exposto a uma tempestade, sem um lugar para se abrigar.

Diante desse quadro, implorei paciência a mim mesmo. É assim que faça nessas ocasiões. Eu me concito a ter paciência. Conto até mil, se preciso. Brigar, esbravejar é a última hipótese. A minha condição de ser racional me impõe limite.

Não foi difícil retomar a minha quietude inicial. Era se conformar com a situação. Eu tenho essa capacidade. Era só praticar a lição dos sábios: o que não tem remédio, remediado está.

Fiquei em pé, olhando para o tempo, ainda um pouco desolado, com o computador às mãos, as idéias queimando o meu cérebro – louco pra trabalhar.

Eu estava decidido a aproveitar o tempo. Estava tudo programado. Era lamentável que, por um detalhe, eu não tivesse realizado o que planejei. Conquanto em paz, sem avidez, sem irritação, eu ainda tinha esperança de fazer o que tinha planejado. Era simples: bastava que achassem a chave da porta da sala de espera.

O tempo passava. Meu carro seria o primeiro a ser lavado. Já estavam iniciando os procedimentos. E nada de chave. Era preciso aceitar o fato. Fato quase consumado. Nada mais a fazer. Agora, era partir para outra. Fazer o quê?

Enredado nesse impasse, vi, ao lado da banca de revista incrustada na área do posto, um jovem, aparentando ter a idade dos meus filhos, dormindo no chão, sobre um pedaço de papelão, de lado, com as pernas encolhidas, e mãos sob a cabeça, fazendo as vezes de travesseiro.

Em condições normais, talvez eu não tivesse dado nenhuma importância a esse jovem. É que estamos tão calejados de injustiças sociais que, muitas vezes, elas passam sob os nossos olhos e não nos damos conta.

Mas agora a situação era outra. Eu tinha todo o tempo para pensar sobre a situação daquele jovem. Agradeci por não terem achado a chave da sala de espera. Era usar o tempo, agora, para refletir sobre a situação das pessoas que vivem nas mesmas condições do desditoso jovem.

Fiquei um bom tempo olhando o desconhecido em questão. Foi inevitável a comparação entre mundo dele – que eu podia vislumbrar, em face da que via agora – e o mundo dos meus filhos.

Fiquei a especular. Teria esse jovem a quem se socorrer na hora da dor? Existiria a quem recorrer quando precisasse de palavras de conforto? Quem cuidava da sua vida? Quem ficava à espreita, vigilante, atento, para ajudá-lo, em face das circunstâncias desfavoráveis. Teria ele a quem reclamar, em face dos dores que lhes são infligidas pelo mundo?

Com essas indagações, fiquei a pensar, com uma certa indignação, inquieto mesmo, soturno, quase em estão de torpor, por que tem que ser assim. Por que uns têm tanto e outros tão pouco, ou quase nada? Por que, no mesmo mundo, filhos do mesmo pai Criador, são tratados de forma tão díspare? O que uns fizeram para merecer tanto e o que outros fizeram para merecer tão pouco – ou quase nada?

Claro que não tenho respostas prontas e acabadas para estas indagações. Ninguém as tem. Mas posso concluir, numa obviedade quase irritante, que mundo é mesmo muito desigual. É só a reafirmação do óbvio.

Haverá que argumente, simplificando a questão, que este jovem apenas colhe o que plantou ou o que plantaram os seus pais.

Mas a questão não é tão simples assim. Não quero aqui especular sobre os erros que ele ou seus pais tenham cometido. Não devo fazê-lo. Não gosto de simplificar essas questões, que estão a exigir de nós exame mais profundo.

O que importa, para mim, é constatação, mais uma vez, de que vivemos num mundo absolutamente contraditório, desigual e injusto.

O que importa mesmo é o que eu vi – e o que todos vêem, afinal – , ou seja, as estúpidas contradições das sociedades capitalistas; contradições que estão, como o exemplo abordado, em cada esquina das grandes cidades, bem na nossa cara, a desafiar a nossa consciência.

O certo é que somos, sim, um mundo desigual – e desumano, muitas vezes.

Fiquei ali pensando, perscrutando, diante daquela cena que, decerto, a muitos não faz refletir, porque, afinal, estamos quase anestesiados, entorpecidos diante de tantas tragédias que se noticiam todos os dias.

Depois de algum tempo, por volta das 07h00 horas, o jovem acordou – atordoado, como se tivesse despertado de um pesadelo. Era como se não soubesse onde estava. E, ao que parece, não sabia mesmo. Olhou em volta e viu um mundo que lhe parecia, no primeiro momento, desconhecido.

Assustado – olhos esbugalhados e cabelo assanhado -, levantou-se, num salto, passou as duas mãos sobre o rosto, esfregou os olhos, para acostumá-los à claridade do sol que já raiava no horizonte, e saiu, quase correndo – sem rumo, sem direção, sem prumo, se equilibrando nas pernas cambaleantes, trôpegas, para iniciar mais um dia desventuras. Saiu não se sabe pra onde. É quase certo que não tenha um lar, que não saiba o que é uma família, por isso, saiu sem direção. Na direção da visão, para (sobre)viver por aí: pedindo, fazendo, aprontando, implorando, até que a noite chegue, para, mais uma vez, sair a procura de um abrigo improvisado, onde possa dormir e, quem sabe?, sonhar , com um mundo melhor. Sem ter a quem relatar as suas angústias, seguiu em frente, no rumo que os olhos apontavam, sem saber onde vai chegar. Seguramente, não terá a quem reclamar de suas desditas, embora tenha muito a lamentar. É provável que não tenha a quem pedir um afago para lhe tranquilizar a alma. Talvez tenha carinho para dar, mas não sabe a quem. Carinho para receber? Parece-me pouco provável.

Não sei, você não sabe, talvez ninguém saiba, talvez nem ele saiba, para onde ir – e para onde foi. Sei, no entanto, que não foi a um banheiro fazer a assepsia matinal e nem ao encontro de uma mesa de café para saciar a fome. Mesa de café pressupõe um lar; lar que, ao que tudo indica, ele não tem.

O certo é que ele se foi. Ficou dele em mim apenas a lembrança. Vejo, com nitidez, o seu olhar de espanto, ao acordar e deparar-se com o sol nascendo, como lhe chamando para enfrentar os dissabores do novo dia que começava.

Dormiu ao relento, não teve com quem conversar antes de dormir, não teve a quem abraçar ao acordar, quiçá não tenha parentes e nem amigos.

Diriam os mais insensíveis: é vida. Cada um é responsável pelo que veste e come. Cada um faz a sua cama e nela se deita.

Será assim mesmo? As coisas podem ser simplificadas dessa forma?

Fiquem as indagações para quem quiser responder.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

4 comentários em “Ao relento”

  1. Gostei muito de ler sua reflexão Des. José Luiz.

    Explico: em síntese, a maioria dos seres humanos é assim, egocêntrica, egoísta, interessada unicamente com seus problemas. Às vezes nos preocupamos exageradamente com o que estamos fazendo e nos esquecemos completamente em que direção estamos seguindo. Julgamos que nossos afazeres e preocupações são as coisas mais importantes do universo e não percebemos que ao nosso redor (muitas vezes, bem ao nosso lado) existem pormenores mais significativos do que possamos imaginar. Frequentemente sofremos por determinadas situações, mas esquecemos o quanto deveríamos agradecer por tudo aquilo que já conquistamos e que próximo a nós existem pessoas que dariam tudo para obter ao menos um pouco daquilo que temos o privilégio de usufruir…

    Esse comentário é uma autocrítica, deflagrada pela leitura das verdades escritas por Vossa Excelência. Obrigado pelo momento de reflexão e análise.

    Cordialmente,

    João Henrique Maciel Gago Araújo.

  2. Dr. José Luiz.
    Suas reflexões mais uma vez é o eco de muitas vozes que se calam. Elas reforçam praticamente as convicções que temos e sabemos perceber ao nosso entorno quando existe um pouco de sentimento em relação aos nossos “irmãos” que não tiveram ou não tem as mesmas oportunidades.
    O exemplo dado e presenciado, é uma rotina na vida de tantos que não tem um caminho a seguir, não tem uma familia:base principal de tudo. No entanto, percebê-los é outra situação.Como dizia o Antoine de Saint-Exupéry
    “O verdadeiro homem mede a sua força, quando se defronta com o obstáculo”. E essa força é a sua sensibilidade no trato com as coisas “comuns” nossa de cada dia.
    Sua reflexão é muito importante em um mundo de tantas desigualdades e mazelas sociais que poucos na sua posição buscam reconhecer e principalmente entender, pois citando novamente Saint-Exupéry, essas pessoas não percebem que
    “É o mesmo sol que derrete a cera e seca a argila”.
    É bom ter alguém que possa falar a linguagem da compreesão que tanto faz falta no mundo dos que vivem ao relento por uma situação e tantos que não conseguem enxergar o que a vida lhes mostra.
    Atenciosamente,
    RIBAMAR SANTOS

  3. Dr. José Luiz,

    A sua preocupação é válida no mundo que vivemos. A desonestidade, a falta de amor, a falta de concórdia, de amizade tem sido a causa primária de todos os males que enfrentamos na sociedade.

    Advogo a quase dois anos e vejo que fazer Justiça é quase impossível para nós pobres mortais. O que será que acontece? Será incompetência? É o sistema como diriam alguns?
    Acredito que não. Francis Schaffer era um homem da época, erudito, formado em filosofia e antropologia.

    Ele escreveu um livro chamado a morte da razão da qual fala acerca da ruptura do homem moderno ao deixar de lado os valores que Deus colocou no homem.

    A analise que ele faz do pensamento do homem moderno demonstra que a sociedade em todas as suas formas tirou a referência maior que o homem necessita, a saber, Deus.

    Na música, na filosofia, na educação, na própria religião e outras formas e conceitos de vida.

    Acredito que quando Jesus veio a essa terra não quis somente deixar uma história bela e agradável para ser contada.

    Não! Ele queria que nós sobessemos o quando somos importante para Ele e da mesma maneira Ele seja para nós.

    Nesse sentido, as mazelas desapareceriam, a criminalidade, a corrupção tão presente na natureza humana, assim sendo, teriamos aquilo que JESUS DISSE NO LIVRO DE APOCALIPSE:

    21.3 Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles.
    ——————————————————————————–
    21.4 E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram.
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    21.5 E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras.
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    21.6 Disse-me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida.

    Que Deus nos abençoe!

  4. Caríssimo Dr. José Luiz,
    Os seus textos, mais uma vez, levam à reflexão todos aqueles que têm a oportunidade de lê-los. Na sua crônica “Ao relento” isso foi reforçado fortemente, principalmente quando se percebe a sua inquietação com o contraste existente entre a vida dos seus filhos e a daquele jovem. Melhor ainda foi perceber que a sua “quase irritação” com a “frustrada perspectiva de trabalhar” cedeu lugar a questionamentos que só as pessoas sensíveis os fazem. Na verdade, por mais que eu o admire e o respeite profissionalmente, orgulho-me por saber que, sempre que for preciso, o ser humano se sobrepõe ao magistrado, resultando disso textos dessa natureza, que nos tocam a alma, que nos convidam a pensar as diferenças e, consequentemente, nos tornam melhores enquanto pessoas.
    Um grande abraço
    Azenate

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