Eu, incendiário?

Uma das mais encenadas peças de Nelson Rodrigues é, seguramente, Beijo no Asfalto. Na peça um pedestre é atropelado por um ônibus e fica agonizando na rua. Nessa hora passa um transeunte, o segura nos braços e o beija nos lábios. O beijo, a maldade humana não percebeu, era apenas um beijo de despedida, de solidariedade.

Ocorreu, entrementes, que um repórter, inescrupuloso e mal intencionado, sedento por um escândalo, noticia que os homens eram amantes.

Pronto! Estava feito o estrago. Nem mesmo a mulher do homem solidário acreditou mais nele. Passou a duvidar de sua masculinidade. O homem, casado, pai de filhos, passou, de repente, a ser homossexual. Estava feito o estrago na vida dele -e da família. Estrago, sim, por causa de sua condição, sabida de todos, de hetero, e não apenas porque tenha sido apresentado como homossexual, vez que nada há de estranho na opção sexual de cada um.

É assim mesmo que se estigmatizam as pessoas. Etiquetam-nas, maldosamente, a partir de uma inverdade; e essa inverdade, fruto da maldade do ser humano, fica grudada na testa como uma etiqueta.

Estereotipado, carimbado pela maldade humana, o homem jamais se livrará da pecha, do apodo. É com se fosse uma daquelas marcas que são produzidas nos semoventes para identificar o proprietário.

O homem etiquetado, sobretudo em uma instituição, nunca mais se libertará do estereótipo. Daí em diante a sua personalidade, o seu nome, a sua história passarão a se confundir com a etiqueta.

É, mais ou menos, como ocorre com os bens de consumo, quando a marca se confunde com o produto. Todos lembram que, outrora, quando se pretendia comprar uma lâmina de barbear se procurava no comércio por gillete, que todos sabem, é a marca de uma lâmina de barbear.

Não é de hoje, não é de ontem que, à falta de argumento para me diminuir enquanto pai de família e magistrado, alegam, sem nenhum dado concreto, que sou arrogante e criador de caso. Havia até os que pregavam que quando chegasse ao Tribunal, iria incendiá-lo.

Não bastava me etiquetarem de arrogante. Alguns anos antes de chegar ao Tribunal passei à condição de incendiário.

Mas eu encarei – e encaro – tudo isso com equilíbrio. O homem é maldoso mesmo. Eu sou muito exibido. Eu gosto de ler, de escrever e de pensar. E, pra completar, me entrego totalmente ao trabalho. Isso é péssimo nas corporações.

Numa corporação, ter independência, ter lucidez, decidir com retidão é muito mais que arrogância, é puro exercício de pirotecnia, daí, quiçá, a etiqueta de incendiário.

Quando se quer diminuir, desmerecer, desacreditar uma pessoa, é assim que se faz: gruda-se nela uma etiqueta na testa, para que nunca ninguém esqueça que ela pode até ter virtudes, mas também tem graves defeitos que as tornam desinteressantes, desprezíveis, desimportantes.

Aos poucos vou mostrando aos meus colegas de Tribunal de Justiça que sou muito diferente do que pregavam.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

4 comentários em “Eu, incendiário?”

  1. Eu sei o que é um homem com os meus anos de vida. Principalmente aqueles que tem a coragem de expor suas fragilidades e virtudes escrevendo-as. Um homem quando fala só expõe no momento. O escrito é eterno, não é vazio quando escreve, assume sua verdadeira honestidade. O Maranhão um dia acorda dessa mesmice, Ilustre Desembargador. Não acho que o operador do direito de seu quilate tem que fazer justiça somente para agradar A ou B. É muito poder na vida de uma magistrado quando decide a vida de outrem. Deus lhe abençoe e o mantenha a retidão de caráter que é a única coisa que um ser humano pode ter na vida.

  2. vc é o cara desembargador!(brilhante)
    do fundo do meu coração excelentíssima,eu tenho um orgulho tremendo de vc.
    um grande beijo e um forte abraço…………

  3. Caríssimo Dr. José Luiz,
    Mais uma vez, obrigada pela excelência de texto e, principalmente, pelo equílíbrio de não se deixar levar pelos falatórios maldosos a seu respeito, proferidos por pessoas que ainda não tiveram o privilégio de conhecer a sua essência. Quanto a nós, que o conhecemos de perto, e estamos ligados a sua pessoa por um sentimento enorme de amizade, admiração e respeito, vamos continuar torcendo para que essa “arrogância” e essa “exibição” possam se tornar perenes em sua vida, a fim de que o nosso orgulho de tê-lo em nossas vidas possa ser cada vez maior.
    Um grande abraço,
    Azenate

  4. Uma árvore se conhece pelos frutos que ela dá…O que dizer de vossa excelência?..Árvore frondosa cujo verde salta os olhos e seus frutos são melhores possiveis. Parabêns pelo profissionalismo.

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