Nulidade e extinção da punibilidade

D. de J. P. manejou um pedido de habeas corpus ( nº 26168/2010), alegando, dentre outras coisas, a ilegalidade de sua prisão.

Ocorreu, entrementes, que a autoridade coatora, ao prestar as informações que foram solicitadas, informou que já tinha colocado o paciente em liberdade.

Com essa informação, entendi devesse decidir pela prejudicialidade do mandamus.

Em face dessa decisão, o impetrante interpôs embargos de declaração, alegando que as nulidades que apontou no processo a que responde o paciente não tinham sido enfrentadas no mandamus.

Provocado o reexame da quaestio, pude concluir pela procedência dos embargos, daí por que a ele dei provimento.

Do provimento dos embargos resultou a extinção da punibilidade do impetrante, em face da prescrição.

A matéria é interessante e merece que se reflita sobre ela, razão pela qual decidi-me pela publicação do voto.

Acho que vale a pena a sua leitura, ainda que o seja para dele discordar.

A seguir, o voto, por inteiro.

PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

Nº Único: 0016234-58.2010.8.10.0000

Embargos de Declaração n. 029381-2010

Embargante(s):  D. de J. P.

Advogados: A. J. M.; G. P. S.

Embargado(s): Ministério Público Estadual

Autoridade Coatora: Juízo de Direito da 2ª Vara do Júri de São Luís-MA

Incidência penal:  Art. 129, § 3º, do CPB

Relator: Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Acórdão nº ___________

Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO ENTRE A DENÚNCIA E A SENTENÇA. MUTATIO LIBELLI. INOBSERVÂNCIA. NULIDADE. PRESCRIÇÃO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1. Os embargos de declaração servem ao aprimoramento do julgado, quando constatada, eventualmente, a existência de omissão, contradição ou obscuridade, que comprometeu o exame do recurso.

2. A decisão de pronúncia fundamentada em circunstância elementar não contida na denúncia é manifestamente nula, pois vilipendia o postulado constitucional do devido processo legal e seus consectários (contraditório e ampla defesa), bem como o princípio da correlação entre a imputação e a sentença. Inteligência do art. 384, do CPP, e da súmula 453, do STF.

3. Recurso conhecido e provido, para anular a decisão de pronúncia, e declarar, ex officio, a extinção da punibilidade, pelo advento da prescrição.

Acórdão – Vistos, relatados e discutidos os autos do presente Embargos de Declaração em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Senhores Desembargadores, por unanimidade, em dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Votaram os Senhores Desembargadores José Luiz Oliveira de Almeida (Relator), Antonio Araújo Bayma e Raimundo Nonato Magalhães Melo. A sessão foi presidida pelo Desembargador Antonio Araújo Bayma. Presente pela Procuradoria Geral de Justiça o Dr………………….

São Luís (MA), de de 2010.


DESEMBARGADOR Antonio Araújo Bayma

PRESIDENTE

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR


Embargos de Declaração n. 029381-2010


Relatório – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Cuida-se de embargos declaratórios, interpostos por D. de J. P., em face da decisão monocrática de fls. 59/60, a qual julgou prejudicado o habeas corpus n. 26168/2010, face à informação prestada às fls. 57 pela autoridade coatora, de que a prisão preventiva do paciente já havia sido revogada.

O embargante aponta a existência de omissão na decisão de fls. 59/60, segundo a qual as nulidades processuais suscitadas na inicial da impetração não foram analisadas.

Em primeva análise dos presentes embargos, vislumbrei que a linha argumentativa expendida no recurso poderia, eventualmente, ensejar a nulidade do feito, o que me levou a solicitar cópia integral dos autos correspondentes à instância de origem (fls. 66), que estão em anexo, para uma análise mais detida.

Os autos vieram-me conclusos.

É o sucinto relatório.


Voto – o Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço dos presentes embargos declaratórios.

O embargante argumenta, sucintamente, que não foram enfrentadas as diversas nulidades apontadas na impetração, quais sejam:

I – que o paciente foi denunciado pelo crime de lesões corporais seguida de morte (art. 129, § 3º, do CP), entretanto, outro Promotor de Justiça, ao ofertar as alegações finais, pugnou pela desclassificação do delito para homicídio qualificado (art. 121, § 2º, II e IV, do CP), o que foi acolhido pelo juízo a quo, pronunciando-o;

II – que referido ato judicial feriu o princípio da congruência;

III – que, face à reprimenda mais grave, deveria o juízo a quo ter dado vista dos autos à acusação, para proceder ao aditamento da denúncia, diante da descrição de circunstância elementar não contida na denúncia, aplicando-se, no caso, a mutatio libelli – art. 384, parágrafo único, do CPP (preceito legal vigente à época);

IV – que, embora patente o erro de procedimento, segundo alega, não seria o caso de nulidade do processo, porque implicaria agravamento da situação do embargante submetê-lo à novo julgamento, aventando, na espécie, a possibilidade de absolvição;

V – que a regra estampada no art. 384, parágrafo único, do CPP, não tem aplicação em sede recursal;

VI – que o embargante nunca fora intimado pessoalmente da pronúncia de fls.93/95, exigência legal então vigente à época em que fora pronunciado (20 de janeiro de 1995), a qual não foi observada, conforme asseverou, acarretando nulidade insanável; e,

VII – que foi intimado pela via editalícia, conforme permissivo legal da atual sistemática do CPP (art. 392, incisos IV, V e VI), em 14/09/2009 (DJ de fls. 32), reputando, também, nulo referido ato, por não ser a regra processual vigente à época da pronúncia.

Fundamentou sem pleito em farta jurisprudência, e nas súmulas 160 e 453 do STF.

Postula a defesa, ao final, que seja declarada nula a decisão de pronúncia, absolvendo o paciente, ou, sucessivamente, que seja extinta a sua punibilidade, pelo advento da prescrição punitiva do crime de lesões corporais.

Pois bem.

O art. 648, do CPP, elenca em seu inciso VI, a hipótese de coação a ensejar a impetração do remédio heróico, “quando o processo for manifestamente nulo”. Analiso, pois, se as apontadas nulidades processuais amoldam-se ao preceito normativo em comento.

Ao que entrevejo da inicial e, sobretudo, da cópia integral processo nº 2761/87, em anexo, que tramitou perante à 3ª Vara Criminal da Comarca de São Luís, o embargante foi denunciado, em 1987, pelo crime de lesões corporais qualificadas pelo resultado morte (inicial acusatória às fls. 02/03). Contudo, nas alegações finais ofertadas por outro membro do Ministério Público, às fls. 83/86, houve pedido de desclassificação para o crime de homicídio doloso qualificado, o que foi acolhido pelo juízo a quo, através da decisão de fls. 93/95, sendo o embargante então pronunciado, em 20 de janeiro de 1995.

Primeiramente, o embargante argumenta que o juízo de base, face o pleito desclassificatório formulado pelo Parquet, em alegações finais, deveria possibilitar o aditamento da denúncia, e abrir vista para a defesa manifestar-se, nos termos em que preconizados, atualmente, pelo art. 384, parágrafo único, do CPP – mutatio libelli –, aduzindo que se tratava de circunstância elementar não contida explicita ou implicitamente na denúncia, qual seja, o dolo de matar.

Após analisar, com detença e vagar, as peças processuais em anexo, que instruem a impetração, sou compelido a reconhecer: a denúncia de fls. 02/03, em nenhum momento, descreve que o embargante agiu com a intenção de matar, tanto que o denunciou pela infração penal descrita no art. 129, § 3º, do CPB.

Reafirmo, não há narrativa fática na denúncia, quiçá implícita, conducente a concluir que o embargante, em tese, teria praticado crime de homicídio, porquanto a circunstância elementar – animus necandi -, não se deflui da inicial acusatória.

Diante de tal constatação, deveria o membro do Parquet proceder na forma do art. 384, do CPP, litteris:

Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.

(Sem destaques no original).

De outra sorte, observo, outrossim, que o juízo a quo, em total inobservância às regras do art. 384, (à época, art. 384, parágrafo único), acolheu a nova elementar suscitada pelo Parquet apenas em sede de alegações finais, pronunciando o paciente, indevidamente, pela prática de crime doloso contra a vida, formulação esta que sequer estava contida na denúncia.

Na esteira do entendimento esposado no STJ[1]:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. QUALIFICADORA. TORPEZA. AUSÊNCIA DE CORRELAÇÃO ENTRE A DENÚNCIA E A PRONÚNCIA.

1. É defeso ao magistrado fundamentar a pronúncia com elementos que não constavam na exordial acusatória em violação ao princípio da correlação da denúncia e a pronúncia.

2. Recurso conhecido e provido para reformar o acórdão recorrido, determinando a anulação da pronúncia para que outra seja proferida, em obediência ao princípio da correlação.

(Sem destaques no original).

Na mesma alheta[2]:

PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA POR CRIMES DE LESÕES CORPORAIS E DE PERIGO PARA A VIDA OU SAÚDE DE OUTREM. SENTENÇA DE PRONÚNCIA POR CRIME DE HOMICÍDIO TENTADO QUALIFICADO PELO MOTIVO FÚTIL. PRELIMINAR DE NULIDADE DA DECISÃO. DESCRIÇÃO DA INICIAL INCOMPATÍVEL COM A NOVA CAPITULAÇÃO. QUEBRA DO PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO ENTRE DENÚNCIA E SENTENÇA. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. INOBSERVÂNCIA DA REGRA DO ARTIGO 384 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. MANIFESTAÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO SENTIDO DA ANULAÇÃO DA SENTENÇA. PRELIMINAR ACOLHIDA. SENTENÇA ANULADA. – Conquanto a capitulação contida na denúncia seja sempre provisória, não vinculando, evidentemente, o Magistrado na sentença, a decisão judicial está jungida à descrição do fato contida na referida peça acusatória. Rompida a correlação entre a imputação e a sentença, estarão irremediavelmente violados os princípios do contraditório e da ampla defesa – e, consequentemente, o princípio do devido processo legal.

(Sem destaques no original).

Portanto, a inobservância do art. 384, do CPP, é patente, e enseja o reconhecimento de manifesta nulidade processual, porquanto vilipendia o princípio constitucional do devido processo legal e seus consectários (contraditório e ampla defesa), bem como o princípio da congruência, ou correlação, entre a acusação e a sentença.

De outra sorte, estando preclusa a decisão de pronúncia, não resta alternativa, senão a nulificação do ato, face à expressa vedação da mutatio libelli em sede recursal (sob pena de supressão de instância), nos termos em que preconizados na súmula 453, do STF, verbis:

Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou queixa.

(Sem destaques no original).

Nesse passo, cumpre consignar que, qualquer nulidade processual que resvale em postulados constitucionais, como é sabido, não se convalida com o decurso do tempo, sendo, portanto, insanável, devendo ser decretada, inclusive, de ofício, por representar ofensa ao próprio interesse público na condução do processo, de acordo com os postulados constitucionais regentes.

Assim, no lapidar magistério doutrinário[3]:

Sendo a norma constitucional-processual norma de garantia, estabelecida no interesse público, (…) o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre absolutamente nulo, devendo a nulidade ser decretada de ofício, independentemente de provocação da parte interessada. (…)

É que as garantias constitucionais-processuais, mesmo quando aparentemente postas em benefício da parte, visam em primeiro lugar ao interesse publico na condução do processo segundo as regras do devido processo legal.

Resulta daí que o ato processual, praticado em infringência à norma ou ao princípio constitucional de garantia, poderá ser juridicamente inexistente ou absolutamente nulo; não há espaço, nesse campo, para atos irregulares sem sanção, nem para nulidades relativas.

(Sem destaques no original).

Logo, forçoso reconhecer, in casu, a nulidade ora apontada pelo embargante.

Outrossim, reputo desnecessária a análise das demais questões levantadas pelo embargante, tendo em vista que se referem à nulidades eventualmente ocorridas após a pronúncia.

Com efeito, nulificada a decisão de pronúncia de fls. 28/29, forçoso reconhecer, ainda, a extinção da punibilidade pelo advento da prescrição. Isso porque:

I – o primeiro marco interruptivo da prescrição – recebimento da denúncia -, ocorreu em 20 de março de 1987;

II – o exercício do jus puniendi, pelo crime descrito na denúncia – lesões corporais qualificadas pelo resultado morte, cuja pena máxima cominada é de 12 (doze) anos de reclusão –, prescreve “em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze” (art. 109, II, do CPB); e,

III – nulificado o último marco interruptivo da prescrição – decisão de pronúncia de fls. 28/29 -, que fora prolatado em 20 de janeiro de 1995, o termo a quo do prazo prescricional retrocede à data do recebimento da denúncia, em 20 de março de 1987, cujo lapso temporal, até a presente data (cerca de vinte e três anos), ultrapassa o prazo de 16 (dezesseis) anos estabelecido no art. 109, II, do CPB.

Por conseguinte, forçoso reconhecer, in casu, que a pretensão punitiva estatal está fulminada pelo advento da prescrição.

Ao lume dessas considerações, conheço dos presentes embargos declaratórios, para dar-lhe provimento, a fim de, reconhecida a omissão apontada, declarar nula a decisão de pronúncia de fls. 93/95, e, em consequência, extinguir, ex officio, a punibilidade do paciente, pelo advento da prescrição, do delito descrito na denúncia (art. 129, § 3º, do CPB), o que faço com base no art. 109, II, do CPB.

É como voto.

Sala das Sessões da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, ____ de ________________ 2010.

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR



[1] REsp 703.030/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 29/11/2007, DJe 07/04/2008.

[2] RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N° 1.0209.02.020141-1/001. RELATOR: EXMO. SR. DES. HERCULANO RODRIGUES. DJ: 07/05/2009.

[3] GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no Processo Penal. 11. ed. RT, 2009, p. 23.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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