Sapatos furados

A minha história de vida se confunde com a história de muitos que, como eu, tiverem que superar dificuldades para vencer na vida. Lembro, por exemplo, que meus pais compravam sapatos (bem) maiores que a pontuação recomendada, ao argumento de que estávamos ( eu e meus irmãos) crescendo e que, assim, os sapatos serviriam por mais tempo. Em face do desconforto propiciado pela pontuação excessiva dos meus sapatos, eu colocava jornal nas pontas, para tentar ajustá-los aos pés. Mesmo assim, eu andava e os sapatos teimavam em sair dos pés, me compelindo a, com os dedos, tentar segurá-los, para que as pessoas não dessem conta do desconforto. Alguns colegas, os mais gozadores, davam-se conta da desproporção dos meus sapatos, e os apelidavam de sapatos de palhaço. Não preciso dizer do quanto isso me incomodava.

O mais grave, além do desconforto propiciado pelo tamanho dos sapatos, é que eles furavam antes de se ajustavam aos meus pés, fazendo cair por terra o argumento de que, por serem maiores, durariam muito mais, a justificar o desconforto a mim infligido.

Quando os sapatos furavam, não tinha alternativa: eu os forrava com papelão; papelão que não suportava a primeira chuva, sobretudo quando eu decidia voltar para casa a pé ( eu morava no Monte Castelo, em frente ao cinema) para, com o dinheiro da passagem, comprar manuê, de dona Martinha, que servia na cantina do colégio José Augusto Correa, onde fiz todo o primário, e que ficava por trás do ginásio Costa Rodrigues.

Essas lembranças me vieram a propósito das lembranças de Evaristo de Moraes, cujo excerto publico a seguir, a guisa de ilustração.

“…eu caminhava, todo dia da Hadock Lobo até o fim da Rua Primeiro de Março, onde está o Mosteiro de São Bento. Quando nas mãos me caía um níquel de duzentos réis,eu ficava sem saber se devia gastá-lo numa empada para merendar e voltar a pé para casa, ou devia voltar de bonde para casa e ficar sem merenda”.

Mais adiante:

“…quando chovia voltava com os sapatos encharcados. Minha mãe ia pô-los ao fogo para secar. Secavam aparentemente. E no dia seguinte, pela manhã, eu que só tinha aqueles, calçava-os de novo e lá vinha com a umidade dos pés por essa imensa extensão que vai da Hadock Lobo ao Mosteiro. Isso durante quatro anos seguidos, de 1883 a 87.

Não sou capaz de descrever quantas vezes coloquei para secar o meu único par de sapatos, e nem quantas vezes sequei o meu único par de meias pretas enrolando-as numa toalha de banho e torcendo até que ficassem apenas úmidas.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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