Estupro e a relevância da palavra da ofendida.

Cuida-se de voto em face de uma  apelação crminal,  em face da decisão que condenou  A. L.V. da C., por incidência comportamental no art. 214,  c/c art. 224, “a”, ambos do Código Penal, em razão de, no dia 19 de janeiro de 2004, ter praticado ato libidinoso diverso da conjunção carnal com L. de A. F., de 10 (dez) anos de idade.

Não há matéria controvertida.  O que há de mais relevante neste acórdão é, pura e simplesmente,  a constatação de que a palavra da vítima, ainda que menor dez anos, foi suficiente para definição da existência do crime de sua autoria,  tanto no juízo de base, quanto em segunda instância.

Antecipo, a seguir, excertos do voto que proferi, verbis:

Cumpre consignar que do exame do depoimento pessoal vítima, em que pese sua pouca idade, pude concluir, na esteira do entendimento do douto juiz de base, que os fatos narrados são, sim, verdadeiros, na medida em que sua declaração se manteve clara e segura, tanto na fase de inquérito, quanto na instrução processual.

A verdade é que, diante das provas que restaram consolidadas, não há qualquer dúvida que tenha sido o recorrente o autor do delito em exame, legitimando, assim, desfecho condenatório.

Não há que se falar em fragilidade dos depoimentos, ou que a única prova relevante seria a declaração da vítima e de sua avó, sabido que, em crimes desse jaez, a vítima é, quase sempre, a principal testemunha, daí que o seu depoimento deve, sim, ser valorado na sua real dimensão.

A palavra da vítima, cumpre reafirmar, assume especial papel em crimes desse matiz, praticados, reafirmo, na clandestinidade.  Forçoso concluir, portanto, que não merecem acolhida os argumentos trazidos à lume pelo apelante, tanto no que pertine à ausência de testemunhas oculares da prática delituosa, quanto no que diz respeito à relevância das declarações da vítima e de sua avó, os quais, reafirmo, se mostraram aptos a comprovar a existência do crime e sua autoria.

A seguir,o voto, por inteiro.


PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

Sessão do dia 28 de setembro de 2010.

Nº Único: 0012466-27.2010.8.10.0000

Apelação Criminal Nº 15381/2010 – Coelho Neto

Apelante : A. L. V. da C.
Advogado : M. A. da S. V.
Apelado : Ministério Público Estadual
Incidência Penal : Art. 214, c/c art. 224, a, ambos do CPB
Relator : Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida
Acórdão nº   ____________

 

 

 

 

Ementa. PROCESSUAL PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. CONJUNTO PROBATÓRIO HARMÔNICO E COESO. IMPROVIMENTO DO APELO. REDUÇÃO DE OFÍCIO DA PENA FIXADA EM SENTENÇA.

1. Em que pese a negativa de autoria do apelante, a declaração prestada pela vítima avulta com especial relevância para definição da autoria, vez que encontra apoio no acervo probatório amealhado ao longo da jornada probatória, inviabiliziando a pretendida absolvição por insuficiência de provas.

2. Em crimes desse matiz, geralmente praticados na clandestinidade, a palavra da vitima assume especial relevância, máxime se do seu cotejo com as demais provas com elas não conflita.

3. Desprovimento da apelação.

 

Acórdão – Vistos, relatados e discutidos os presentes autos em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Senhores Desembargadores da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por unanimidade e de acordo com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, em negar provimento ao recurso, para manter a sentença a quo em todos os seus termos, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Participaram do julgamento os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Raimundo Nonato Magalhães Melo (Presidente), José Luiz Oliveira de Almeida e José Ribamar Froz Sobrinho. Presente pela Procuradoria Geral de Justiça o Dr Suvamy Vivekananda Meireles.

São Luís(MA), 28 de setembro de 2010.

 

 

DESEMBARGADOR Raimundo Nonato Magalhães Melo

PRESIDENTE

 

 

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR


Apelação Criminal Nº 15381/2010 – Coelho Neto

 

Relatório – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Trata-se de recurso de apelação, interposto por A. L. V. da C., por meio do seu procurador, contra a sentença de fls. 67/74, que o condenou a uma pena definitiva de 07 (sete) anos e 08 (oito) meses de reclusão, pela prática do crime previsto no art. 214,  c/c art. 224, “a”, ambos do Código Penal, a ser cumprida em regime inicialmente fechado.

Segundo noticia a denúncia de fls. 02/05, A. L. V. da C., no dia 19/01/2004, teria praticado ato libidinoso diverso da conjunção carnal com a criança L. de A. F., ao inserir o seu órgão sexual na boca deste, segundo relatou a avó da vítima, Sra. R. N. de A. F..

Colhe-se da inaugural, ainda, que o denunciado era hóspede da pousada de propriedade da avó da vítima, tendo se aproveitado desse fato para praticar o crime, oferecendo ao ofendido, em troca do seu silêncio, materiais escolares e a quantia diária de R$ 0,50 (cinqüenta centavos), para fazer seu lanche na escola.

Recebimento da prefacial às fls. 27.

Termo de qualificação e interrogatório às fls. 32/34, no qual o apelante nega a autoria, e relata que já teria tido um relacionamento amoroso com a avó da vítima.

Durante a instrução criminal foram ouvidas a vítima L. de A. F. (fls. 46/47), e as testemunhas R. N. de A. F. (fls. 47) e A. C. S. (fls. 47/48), todas arroladas na inicial acusatória.

Após a instrução, o Ministério Público requereu uma diligência (fls. 49-v), solicitando a localização de uma testemunha, o que, sem êxito, resultou na desistência de sua inquirição (fls. 54). A defesa, se seu lado, nada requereu (fls. 55).

Seguindo-se às alegações finais, o Parquet Estadual pugnou pela condenação do apelante.(fls. 57/63)

A defesa, por seu turno, na mesma fase processual, alegou insuficiência de provas para a condenação, ressaltando a negativa de autoria por parte do réu (fls. 64/65).

A ação foi julgada procedente, como já exposto, para condenar A. L. V. da C., como incurso no art. 214, c/c art. 224, “a”, ambos do Código Penal, ora revogados, fixando-se a pena em 07 (sete) anos e 08 (oito) meses de reclusão, em caráter definitivo, a ser cumprida em regime inicialmente fechado.

Em suas razões recursais, o apelante novamente argumenta que as provas são insuficientes para a condenação, ante a negativa de autoria, requerendo, portanto, a sua absolvição (fls. 77/78).

Às contrarrazões de fls. 83/89, o Ministério Público Estadual, através do seu representante legal, requereu o improvimento do recurso, ratificando-se o r. decisum, em todos os seus termos.

Em seu parecer, a d. Procuradoria de Justiça, às fls. 103/108, opina pelo improvimento do recurso, no sentido de manter inalterada a sentença fustigada, por entender que os depoimentos são uníssonos e coerentes entre si, a comprovar a existência do crime e a autoria delitiva.

É o relatório.


 

Voto – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Infere-se dos autos que A. L. V. da C. foi denunciado pelo Ministério Público Estadual, por incidência comportamental no art. 214,  c/c art. 224, “a”, ambos do Código Penal, em razão de, no dia 19 de janeiro de 2004, ter praticado ato libidinoso diverso da conjunção carnal com L. de A. F., de 10 (dez) anos de idade.

Após analisar o quadro probatório, o MM. Juiz de Direito da comarca de Coelho Neto/MA julgou procedente a denúncia, condenando o denunciado, finalmente, a uma pena de 07 (sete) anos e 08 (oito) meses de reclusão, a ser cumprida em regime inicialmente fechado.

Irresignado, o sentenciado, por meio do seu procurador, apelou da decisão, aduzindo o seguinte:

I – que a condenação se baseou somente em conjecturas, suspeitas, sem nenhuma certeza, enfim, somente indícios;

II – que o próprio magistrado reconheceu que não havia nenhuma testemunha ocular dos fatos ou prova técnica que atribuísse a autoria certa ao condenado; e

III – que a prova resume-se à declaração da vítima e ao depoimento da sua avó.

Requer, à luz desses argumentos, a reforma da sentença, por não haver provas suficientes para a condenação.

Presentes estão os pressupostos de admissibilidade do recurso, razão pela qual dele conheço.

Analisando os presentes autos, entendo que razão não assiste ao apelante, como passarei a demonstrar.

A materialidade e autoria, vejo do acervo probatório, restaram sobejamente comprovadas.

Nesse sentido, importante destacar o seguinte excerto, da declaração da vítima L. de A. F. em juízo (fls. 46/47), in litteris:

[…]

– Que mora na hospedaria de avó R.;

– no dia em que aconteceram os fatos, o depoente estava assistindo televisão no quarto de um dos hóspedes, pois como sua mãe não gostava que vivesse na rua o hóspede todos os dias que saia para trabalhar deixava a porta de seu quarto aberta para que o informante pudesse assistir desenho animado em sua televisão;

– como de costume nesse dia estava assistindo, quando por volta das onze horas o acusado chegou e começou a lhe abraçar e passar a mão no seu bumbum, no que o informante reclamou e mandou que o denunciado se retirasse senão a sua mãe iria reclamar;

– mais tarde a tia do depoente saiu e sua avó foi lavar roupa no quintal, que é bem longe de onde estava, nessa ocasião o acusado retornou e colocou o informante em seu colo, botando o seu pênis para fora e mandou o menor tocar punheta;

– em seguida o acusado foi lá fora e verificou que a mãe do depoente não tinha chegado, retornando para o quarto e mandou que a criança colocasse o pênis dele em sua boca, o que foi feita a força;

– o denunciado deu ao depoente um reais e setenta e cinco centavos mais um caderno, e prometeu lhe dar uma bolsa e uma coleção de brinquedos;

– o informante sentiu dores na barriga, no que o próprio denunciado lhe deu remédio que não sabe o nome;

– em seguida o informante saiu para onde estava a sua avó que já estava na cozinha e sempre que começa a falar visando contar tudo para sua avó o denunciado cortava a conversa;

– em seguida sua avó colocou almoço para o denunciado que era hóspede, e o informante foi para o quarto ainda sentindo dores na barriga;

– o acusado voltou a ir ao quarto e entregou o remédio para sua avó para que lhe desse, e nessa ocasião voltou a falar baixinho para que o informante não contasse para sua avó;

– quando o acusado saiu do quarto o informante contou para sua avó, que chama de mãe;

[…].

Relevante destacar, ainda, o depoimento de R. N. de A. F. (fls. 47), avó da vítima, do qual destaco o trecho abaixo transcrito:

[…]

– num dado momento em que a depoente foi mostrar o novo cômodo da casa para a senhora A. o menor se encontrava assistindo televisão na salinha ao lado e estranhamente a declarante percebeu que o acusado estava sentado no sofar assistindo televisão junto com o menor;

– mostrado o cômodo para A. a declarante foi para o quintal e foi atrás para saber o que estava acontecendo e respondeu que não era nada;

– em seguida chega o acusado atrás da casa e pergunta se tinha comida pedindo para colocar um reais e cinqüenta centavos pra ele almoçar;

– a declarante colocou almoço na mesa e foi para o quarto onde já estava o menor, momento em que lhe contou que o acusado teria colocado o pênis na boca da criança;

– o menor lhe contou ainda que sua boca ficou cheia de esperma;

– em seguida o acusado entrou no quarto e como o menor estava sentindo dores de barriga o próprio denunciado foi ao seu quarto e lhe trouxe um vidro de remédio, porém a declarante o jogou fora;

– em seguida a declarante esculhambou co o acusado e pediu pra ele ir embora naquele momento;

[…]

Em harmonia com os demais é o depoimento de A. C. da S. (fls. 47/48), no qual consta:

[…]

– No dia em que os fatos aconteceram a depoente passou e encostou na hospedaria de dona R., a qual foi mostrar os novos cômodos da casa;

– que entrou em um dos quartos com a dona R. e percebeu o acusado assistindo televisão junto com o menor, mas naquele momento não desconfiou de nada;

[…]

O apelante, insta observar, negou a autoria do crime em juízo (fls. 32/34), afirmando, dentre outras coisas, que já havia se relacionado amorosamente com a avó do ofendido, dado que, bem posso ver, não tem o condão de fragilizar as provas colacionadas.

A verdade é que, diante das provas que restaram consolidadas, não há qualquer dúvida que tenha sido o recorrente o autor do delito em exame, legitimando, assim, desfecho condenatório.

Não há que se falar em fragilidade dos depoimentos, ou que a única prova relevante seria a declaração da vítima e de sua avó, sabido que, em crimes desse jaez, a vítima é, quase sempre, a principal testemunha, daí que o seu depoimento deve, sim, ser valorado na sua real dimensão.

A palavra da vítima, cumpre reafirmar, assume especial papel em crimes desse matiz, praticados, reafirmo, na clandestinidade.

Nesse sentido o Supremo Tribunal tem decidido:

A doutrina e a jurisprudência, inclusive a desta Casa, são assentes no sentido de que “em se tratando de delito contra os costumes, a palavra da ofendida ganha especial relevo” (RHC 79.788/MG, Rel. Min. Nelson Jobim)[1]

Navegando nas mesmas águas:

Em crimes contra a liberdade sexual, comumente cometidos às ocultas, assume especial relevo a palavra da vítima, quando coerente e harmônica com os demais elementos de convicção que comprovam a autoria e a materialidade do delito.[2]

Dúvidas não há, pois, de que a palavra da vítima é considerada a pedra de toque em crimes dessa natureza, máxime se, como se deu no caso presente, se apresentou em harmonia com as demais provas carreadas aos autos.

Cumpre consignar que do exame do depoimento pessoal vítima, em que pese sua pouca idade, pude concluir, na esteira do entendimento do douto juiz de base, que os fatos narrados são, sim, verdadeiros, na medida em que sua declaração se manteve clara e segura, tanto na fase de inquérito, quanto na instrução processual.

Acerca do tema em debate, é de boa cepa registrar a lição de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar[3], da qual destaco o seguinte fragmento, in verbis:

“[…]O conteúdo das declarações, por partir de pessoa diretamente interessada, recomenda certa cautela. Contudo, não há dúvidas que tais declarações são meio de prova, fundamentais em crimes de pouca visibilidade, como, por exemplo, nos crime sexuais[…]”.

Convém ressaltar, também, que delitos dessa natureza, muitas vezes,  não deixam vestígios, do que resulta que a materialidade pode ser aferida por outros meios de provas, na linha de pensar do STJ, em caso semelhante, verbis:

“A ausência de laudo pericial não tem o condão de afastar os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, nos quais a palavra da vítima tem grande validade como prova, especialmente porque, na maior parte dos casos, esses delitos, por sua própria natureza, não contam com testemunhas e sequer deixam vestígios” (HC-47.212/MT, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ de 13.3.06).

2. Conforme a jurisprudência desta Corte, uma vez inexistente o exame de corpo de delito, tal fato não tem o condão de descaracterizar a tipicidade da conduta narrada na exordial acusatória, haja vista a possibilidade de ser suprido por depoimentos testemunhais, conforme previsão do art. 167, do Estatuto Repressivo.[4]

Na mesma alheta:

É de se registrar que tanto o crime de estupro quanto de atentado violento ao pudor, pode ser provado por várias maneiras e não apenas pelo laudo de exame de corpo de delito, já que não há dúvidas de que em alguns casos, esses crimes contra a liberdade sexual nem sempre deixam vestígios materiais visíveis na vítima, razão pela qual, se torna prescindível a sua comprovação por intermédio do laudo pericial.[5]

Forçoso concluir, portanto, que não merecem acolhida os argumentos trazidos à lume pelo apelante, tanto no que pertine à ausência de testemunhas oculares da prática delituosa, quanto no que diz respeito à relevância das declarações da vítima e de sua avó, os quais, reafirmo, se mostraram aptos a comprovar a existência do crime e sua autoria.

Ante as considerações supra, conheço do presente recurso, para, em conformidade com o parecer da d. Procuradoria de Justiça, negar-lhe provimento, mantendo-se a sentença de primeiro grau, em todos os seus termos.

É como voto.

Sala das Sessões da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, 28 de setembro de 2010.

 

 

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR



[1] STF – HC 95540, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 18/11/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-04 PP-00788 LEXSTF v. 31, n. 362, 2009, p. 447-455.

[2] TJDFT – 20070111250172APR, Relator MARIO MACHADO, 1ª Turma Criminal, julgado em 20/08/2009, DJ 30/09/2009 p. 115.

[3] Curdo de Direito Processual Penal. 4 ed. Bahia: Editora JusPodivm, 2010. p. 409.

[4] STJ – REsp 401.028/MA, Rel. Ministro  OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 23/02/2010, DJe 22/03/2010.

[5] TJDFT – 20051010006488APR, Relator SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS, 2ª Turma Criminal, julgado em 24/06/2010, DJ 14/07/2010 p. 150.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.