Pesadelo

Não costumo sair da minha rotina. A  rotina, diferente de muitos, me faz um grande bem. Se vou a um evento   qualquer que me compila a deitar  fora da minha hora habitual, costumo perder o sono; algumas vezes até pesadelo tenho. Não raro, por isso mesmo, acordo indisposto. Por isso, gosto da minha rotina. Ela me proporciona qualidade de vida.

Deitando e  levantando na hora habitual, fazendo as refeições na hora certa, vivo mais feliz. Também por isso, detesto solenidade. Também por isso, deixei de lecionarr. Também por isso, quase me isolei do mundo, me afastei dos meus amigos, criei um mundo quase só meu –  quase impenetrável, quase imperturbável, quase esquizofrênico. Todavia, é nele que me realizo, que enfrento o estresse, que recarrego as baterias, que me preparo para enfrentar as intempéries, onde, enfim, vivo feliz.

É cediço que, tratando-se de carnaval,  no qual, por circunstâncias várias,  nos confraternizamos  muito mais com a família – e, até, com os amigos -,  passada a folia,   com a rotina  descurada,  ao tentar voltar à situação anterior, tivesse  eu dificuldades  de conciliar o sono.  Ter pesadelo,  nesse contexto, é uma consequência mais que natural.

Pois bem. De ontem para hoje,  vi-me assombrado por um pesadelo –  de tal intensidade, que, ao acordar, estava trêmulo e quase em estado de exaustão.

Sonhei que o Tribunal tinha decidido subtrair do meu contracheque a importância  de R$ 5.000,00(cinco mil reais)  que havia sido depositada em minha conta, no mês anterior, por descuido.

Entrei em desespero. Imaginei os jornais noticiando o fato. Pensei: como vai ficar a minha reputação, se souberem que fui capaz de me apropriar de cinco mil reais que não me pertenciam?

Pensei, ademais: como era possível que a minha mulher, tão zelosa das nossas finanças, sempre tão cautelosa  com os nossos gastos, tudo anotado na ponta do lápis, com uma calculadora  a ajudar, tenha aceitado a inclusão, em nosso orçamento, de um dinheiro que não nos pertencia?

Entrei em desespero.  Uma profusão de pensamentos negativos se apossou de mim e da minha alma. Em estado de descontrole emocional, acordei. Ufa! Não era verdade! Era tudo sonho! Ainda bem!

Era madrugada,  ainda. Depois de algum tempo, voltei a dormir. Para meu desconforto, o sonho voltou. Foi retomado exatamente de onde estava quando acordei.

Eu estava, outra vez, desesperado,  em busca de uma explicação para o fato de não ter-nos dado conta de que gastamos, sem nos pertencer, cinco mil reais a mais.

Em quê?  Com o quê?  Não sabia. Só tinha  certeza de que estava angustiado com a situação.

Sentei com a minha mulher e passamos a refazer contas. E nada! Nada  de encontrar o dinheiro.

Maldito dinheiro, dizia a mim mesmo! Eu nunca me dei bem com dinheiro, pensava a toda hora!

E, agora, exatamente agora, o dinheiro

A cada nova operação nos convencia, ainda mais, que não tínhamos nos apropriado da referida importância.

Mas como convencer o Tribunal? Como convencer o cidadão comum a quem fosse dado ciência desse meu descuido? Como convencer as pessoas que confiavam que eu não tinha me apropriado do que não me pertencia?

Eu tinha certeza,  convicção mesmo, e por isso me desesperava,  de não ter gastado  esse dinheiro; e me desesperava, ainda mais,  diante da iminência de descontarem a importância  do meu holerite, afinal, cinco mil reais a menos me faria muita falta, significava desorganizar as minhas finanças, tão zelosamente cuidadas.

Como pagar as minhas contas, com cinco mil reais a menos, era a indagação que me atormentava. Me atordoava saber que as minhas contas, com esse valor  subtraído dos meus vencimentos, não fechariam e que eu teria que, inevitavelmente, lançar mãos do meu cheque especial.

Depois de muito sofrer, em busca de uma solução, atormentado pela “acusação” de ter lançado mãos do que não me pertencia,  o setor de recursos humanos do Tribunal me informou que, em verdade, o dinheiro havia  sido depositado na conta de outro magistrado.

Ufa! Que alivio!

Acordei, finalmente, sem dever os cinco mil reais. Graças a Deus,  eles não foram depositados em minha conta, mesmo porque, com o rígido controle que tenho sobre os meus gastos, seria muito pouco provável que cinco mil a mais entrassem na minha conta, sem que eu e minha mulher percebêssemos.

Pela manhã, ainda zonzo,  em face do pesadelo, abro os jornais, como de hábito,  e vejo a noticia de que uma deputada federal, filha do ex-senador Joaquim Roriz, havia  sido flagrada recebendo R$ 50.000,00 de proprina.

Estranho isso. Enquanto eu me desespero em sonho ante a acusação de ter gasto cinco mil reais que teria  sido depositado a mais, por equívoco,  em minha conta, a deputada em questão, sem nenhuma cerimônia, recebe cinquenta mil reais, com a maior naturalidade do mundo, e ainda expede uma nota enaltecendo o seu espírito público.

Não me perguntem por que, no sonho, não  descobriram, logo,  que os cinco reais não tinham sido depositados em minha conta,  e nem como, depois, apareceram na conta de um outro colega. Os sonhos são assim mesmo. Eles não têm lógica.  Se lógica tivessem, bastava que eu apresentasse o meu contracheque, para provar que não havia recebido os cinco mil reais a mais.

Mas o que importa mesmo para essas reflexões é a convicção de que há os que se desesperam ante uma acusação, ainda que em sonho,  de ter se apossado do alheio, e há os que  não estão nem aí.

Os homens são assim mesmo, dirão. Os homens são assim mesmo, direi.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.