O juiz garantidor

É sempre assim! Noticia-se um malfeito de determinado magistrado, e o mundo desaba sobre a corporação como um todo.  Todos somos, de forma inclemente e leviana, jogados na mesma vala. Impiedosamente nos atacam, espezinham, assacam contra nós toda sorte de aleivosias. Isso é fato! Basta ler os blogs de maior repercussão. Não nos respeitam! Tratam-nos, a todos, indistintitamente, como se fôssemos a própria Geni, como se o Poder Judiciário fosse uma casamata de calhordas.

Em face do que leio, sou tomado pela estranha  sensação de que as pessoas não têm apreço pela  nossa honra. É como se tivéssemos que pagar pela ascenção social, pelo cargo que ocupamos.  É como se o nosso trabalho não tivesse importância; como se fôssemos, enfim,  responsáveis pelas mazelas do mundo.

Mas não é só em razão de eventual deslize ético que o mundo desaba sobre nossa cabeça, muitas vezes a alcançar até mesmo a nossa própria família. É de fácil percepção, com efeito,  que até mesmo em face de uma decisão – daí a gravidade da intolerância -,   sobretudo dos que militam na área criminal –  que é a mais sensível para a população,  agastada com tanta violência -,  há os que, mesmo desinformados, se sentem no direito de aderir à malhação.

Nesse cenário, nesse campo fértil, onde vicejam a incompreensão e a crítica desabrida, é de rigor que se compreenda – ou tente-se compreender, pelo menos – que o magistrado não está obrigado a decidir de acordo com as aspirações dos mais açodados, à luz dos desejos dos que pregam, sem nenhuma sensatez,  a qualquer custo, ainda que em desarmonia com a ordem constitucional,  uma limpeza moral.

Tenho dito que a nós magistrados não nos  é dado o direito de aderir às pretensões dos que  clamam por prisões a qualquer preço,  dos antigarantistas, dos que se sentem à vontade diante de conceitos vagos e oportunistas, para justificar os excessos do Estado diante do cidadão, sobretudo dos egressos das classes menos favorecidas.

O magistrado, quando decide, não custa reiterar o que já é da sabença comum, decide, tão somente, à luz da sua consciência e em face dos dados objetivos albergados nos pleitos formulados;  decide, enfim, em face do contido num processo, desde que, claro, se tenha respeitado, sem tergiversação, todas as franquias constitucionais do acusado, ainda que seja o mais vil dos criminosos.

O juiz, tenho pregado a toda hora,  não pode vestir a indumentária do justiceiro. Ao juiz não é dado o direito  de  desconsiderar os estatutos legais, para ser simpático, para ser aplaudido pelos que não têm apreço pelos direitos do semelhante.

O  juiz  antigarantista faz um tremendo mal à sociedade, pois esse tipo de magistrado se compraz com o elogio fácil e com o afago que recebe dos que, como ele, pensam que tudo se pode, em nome, por exemplo, do combate à criminalidade.

O magistrado, nunca é demais repetir, tem, no processo penal, o papel relevantíssimo de garantidor. E nessa condição, não pode tergirversar, não pode fazer tabula rasa, não pode fingir que não viu, não pode, enfim, quedar-se inerte diante de uma afronta, de um desrespeito ao direito do cidadão, máxime ao direito de ir e vir.

Só o juiz independente, garantista e consciente do seu papel ( de garantidor) merece o respeito do cidadão.

Pouco importa, para o juiz que tenha consciência do seu papel, as increpações assacadas, as críticas feitas com o objetivo claro de intimidar.

Juiz que decide ao sabor das circunstâncias, ávido para ser simpático perante aos olhos dos seus jurisdicionados, constuma tangenciar as suas decisões, flertando, perigosamente, com a arbitrariedade.

O juiz independente, não custa reafirmar, não decide para ser agradável,   porque se  assim o faz,  deixará transparecer que não é digno das talares que tem sobre os ombros.

Da mesma forma, não é independente e nem é digno das talares quem decide para agradar aos Tribunais, objetivando uma futura promoção. Esse tipo de magistrado, chamado “carreirista”, tende a fazer cortesia com o direito alheio.

Uma decisão vale pelo que ela tem de boa e não  em face de ter  sido gestada para  ser simpática e ao  agrado da maioria.

Diante de uma afronta ao direito de um cidadão, seja ele pobre ou rico, negro, moreno ou branco, o juiz não pode ficar inerte, com medo da reação popular. Deve, ao reverso, decidir,  para afastar eventual afronta a uma garantia constitucional, ainda que, em face disso, seja incompreendido.

A atuação de um juiz, todos sabem, não é política, mas constitucional, cuja obrigação primordial é proteger os direitos fundamentais do cidadão, ainda que, repito, contrarie a maioria.

Segundo Amilton Bueno de Carvalho, emérito desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a lei é o limite ao poder desmensurado, é o limite à dominação. Diz mais: a lei, eticamente considerada, é a proteção do débil. E aquele  que é preso, de forma arbitrária,por exemplo, é, no sentido da expressão, o débil, aquele a merecer a  proteção do Estado-juiz.

Digo eu: o débil é  aquele para quem o magistrado deve fazer valer a máxima efetividade das garantias constitucionais albergadas na Carta Politica, ainda que não seja compreendido pelo que pregam o encarceramento a qualquer custo.

Ferrajoli, nessa linha de raciocínio, adverte que ao juiz cumpre buscar a máxima eficácia da “ley del más débil”, com isso dizendo que, diante do Estado, o acusado, depois do crime, é o mais frágil, a quem não se deve abandonar à violência do processo e, posteriormemte, da pena, com receio do que possam pensar os seguidores do Direito Penal do Terror.

Guarnieri lembra, nessa balada,  que o sujeito passivo do processo criminal, depois do crime, passa a ser o seu protagonista, porque ele é o eixo em torno do qual giram todos os atos do processo, daí que, nessa condição, deve sim merecer a ação profilática dos juizes garantidores, de modo a não permitir que os seus direitos sejam violados.

É assim que penso. É assim que tenho decidido, na certeza de que somente sob o império da lei se pode construir uma verdadeira democracia.


Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “O juiz garantidor”

  1. Desembargador José Luiz,

    Na qualidade de sua leitora assídua (perdoe-me invocar este fato, sabedora de que milhares de outros também o são), quero externar mais uma vez minha admiração por seus textos. Chamou-me bastante a atenção o post “O juiz garantidor” em seu blog, e entendo que se trata de uma visão baseada em anos profícuos na seara do judiciário, lastreada ainda por leituras de alto nível como Ferrajoli.
    Como estudante de Direito do sexto período ainda (muitos anos de leitura e prática nos separam, reconheço isso), não consigo (ainda, penso eu) vislumbrar na faculdade uma visão coerente sobre o garantismo penal. Já li Vera Andrade, Alessandro Baratta, Louk Houslman (tem ideias, a meu ver, inaplicáveis no Brasil), Foucault, Bauman, Galeano e mais recentemente, deparei-me com o pensamento de Aury Lopes Jr.
    O Estado não pode ser carrasco: concordo. O juiz não pode ser justiceiro: perfeito. Mas como conciliar na prática uma ordem crescente de violência, intolerância e banalização do mal (só para lembrar Hannah Arendt, maravilhosa) com a sensação permanente de injustiça, principalmente quando vemos aqueles que deveriam estar na cadeia e que vivem tranquilos amparados na defesa de caros profissionais do Direito?
    Sempre debato com os professores quando estes afirmam que culpada é a mídia. Como jornalista (formada, pois Gilmar Mendes não tem o direito de rasgar meu diploma), sou consciente de que à mídia cabe o papel de informar, cobrar e dar retorno à sociedade, sempre numa postura ética e comprometida (infelizmente, sabemos que nem sempre é assim). Porque os defensores de direitos humanos que alardeam o fim das prisões e do excesso de punitivismo não dão a mesma atenção para o direito também das famílias das vítimas?
    O juiz aplica o Direito, sei disso. E deve estar sempre vigilante para que o “clamor” das ruas não intefira em sua nobre arte de julgar seus semelhantes, sem paixão, de preferência. Que bom, para lembrar Dworkin, vivemos no império das leis.
    Talvez tenho que ler mais (e viver mais) para achar um caminho conciliador. Só não sei (ainda) como encontrá-lo.
    Também gostaria de saber se o senhor pode me auxiliar numa informação, esta para consolidar um texto que estou desenvolvendo, que nada tem a ver com meu comentário inicial: qual é a posição do TJ MA sobre a a cobrança de assinatura básica na conta de telefone? Desculpe-me por incomodá-lo com uma uma ninharia desta, mas é que já tentei descobrir em outros meios e não consegui.
    Um abraço,
    Kátia Persovisan

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