Sob o título “Ineficácia da aplicação da lei”, o artigo a seguir é de autoria de Sergio Fernando Moro, juiz federal da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba (*). O texto foi publicado originalmente no jornal “Gazeta do Povo”, de Curitiba (PR).
Tem sido objeto de polêmica a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 15/2011 oriunda de sugestão do ministro Cezar Peluso, Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e que objetiva retirar dos recursos aos tribunais superiores o seu efeito de impedir o trânsito em julgado. Na prática, possibilita que decisões dos tribunais de segunda instância sejam efetivadas de imediato, independentemente de recursos aos tribunais superiores.
Argumenta-se, no processo penal, que a PEC seria contrária à presunção de inocência pois permitiria que alguém fosse preso mesmo antes de um julgamento definitivo.
Ocorre que essa possibilidade já é uma realidade na Justiça Criminal brasileira e no mundo inteiro através dos conhecidos institutos das prisões cautelares, flagrante e preventiva entre elas.
É equivocado relacionar presunção de inocência com efeitos de recursos, pois o princípio está vinculado à questão probatória, no sentido de se exigir prova robusta, acima de qualquer dúvida razoável para condenação criminal. Também significa que a prisão antes do julgamento deve ser excepcional, mas não necessariamente excepcional depois de um primeiro julgamento. É dessa maneira, no mundo inteiro, que se previne a prisão ou a condenação de qualquer inocente.
Caso se entenda que a presunção de inocência exige um julgamento definitivo, não mais passível de revisão, chegar-se-ia à situação esdrúxula de nunca admitir-se a prisão, pois mesmo um julgamento final está sujeito, sem prazo, à revisão criminal em hipóteses específicas.
Chegar-se-ia ainda ao paradoxo de se considerar que países de larga tradição liberal-democrática e que constituem o berço histórico do princípio da presunção de inocência, como os Estados Unidos e a França, não respeitam a presunção de inocência. É que, nesses países, a regra é a de que, após uma condenação criminal, mesmo de primeira instância, responde o condenado preso, ainda que a condenação esteja sujeita a apelação e outros recursos. É o que dispõe a Seção 3.143, b, do Título 18 do USCode dos Estados Unidos e o artigo 367 do Code de Procédure Pénale francês.
De forma semelhante, o artigo 5.º, I, “a”, da Convenção Europeia de Direitos Humanos prevê que a condenação é, por si só, causa suficiente para justificar a prisão, sem exigir um julgamento não mais passível de revisão.
Condicionar a efetividade da condenação criminal e a prisão a um julgamento definitivo, não mais passível de revisão, é desastroso para a efetividade da Justiça criminal do Brasil, pois a morosidade do sistema processual faz com que os processos durem anos e até décadas. É impossível ser eficiente com quatro instâncias de julgamento e prodigalidade recursal.
Há ainda o grande risco de que, exigindo-se um julgamento definitivo, ocorra a prescrição da pretensão punitiva, com a utilização dos recursos não com a real expectativa de revisão da condenação no mérito, mas como instrumento para gerar prescrição e impunidade.
A aprovação da PEC não deixaria os condenados sem qualquer proteção. Diante de uma condenação em segunda instância, poderiam obter a revisão da prisão e da decisão através do instituto do habeas corpus. Para tanto, teriam que demonstrar a plausibilidade de seu direito perante as cortes superiores, o que é uma exigência razoável. O que não é razoável é o sistema atual no quais os recursos, em boa parte dos casos sem qualquer chance de sucesso, considerando por exemplo o índice de procedência destes no Supremo Tribunal Federal (menos de 5%), retardam automaticamente a efetividade por décadas de condenações e prisões criminais, não raras vezes tendo por objeto crimes graves e como sujeitos criminosos perigosos.
O Brasil, desde a década de 90, tem vivido avanços institucionais importantes, com o fim da hiperinflação, a retomada do crescimento e a consolidação da democracia. O sistema judicial brasileiro está deslocado nesse novo contexto, mostrando-se moroso, formalista e obsoleto. A ineficácia na aplicação da lei gera descrédito para o Judiciário, mina a confiança pública na Justiça e, por consequência, no Estado de Direito. A aprovação da PEC 15/2011 representaria grande avanço institucional a favor de uma Justiça mais célere, mas eficaz e, por esses motivos, igualmente mais justa.