Sentença condenatória. Porte ilegal de arma de fogo

Cuida-se de sentença condenatória, em face do crime de porte ilegal de arma de fogo.
Na decisão, chamei à colação as provas administrativas.
Antevendo eventual discussão acerca da quaestio, anotei, verbis:

  1. Convém sublinhar, em face do exposto, que as provas produzidas em ambiente extrajudicial podem e devem ser buscadas para compor o quadro de provas, como, aliás, têm sido proclamado pelos nossos Tribunais, à exaustão.
  2. É ressabido que as provas administrativas são submetidas ao crivo do contraditório na ambiência judicial, oportunidade em que se abrem ensanchas para que as partes acerca delas expendam as suas considerações e as suas impugnações.
  3. Cediço, assim, que tais provas, ainda que produzidas em ocasião anterior ao due proces of law, podem e devem ser buscadas para integrar e fortalecer o conjunto de provas, sem que, com isso, se atente contra os princípios constitucionais que oxigenam o processo judicial.
  4. Nesse passo, posso reafirmar, como já fiz algures, que à prova administrativa não se pode negar valor probatório, inclusive para que outorguem supedâneo a um decreto de preceito condenatório.

 

A seguir, a sentença, integralmente.

PROCESSO Nº 201252007
AÇÃO PENAL PÚBLICA
ACUSADO: J.
VÍTIMA: INCOLUMIDADE PÚBLICA

Vistos, etc.
Cuida-se de ação penal que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra J., devidamente qualificado nos autos, por incidência comportamental no artigo 14, da Lei 10.826/2003-ESTATUTO DO DESARMAMENTO, em face de, no dia 27 de agosto de 2007, por volta das 00h30, ter sido preso em flagrante portando um revólver marca Taurus, calibre 38, nº 27825, com quatro cartuchos intactos.
A persecução criminal teve início com a prisão em flagrante do acusado (fls.05/10).
Termo de apresentação e apreensão às fls. 10.
Laudo de Exame em Arma de Fogo às fls. 76/77.
Recebimento da denúncia às fls.78/79
O acusado foi citado, qualificado e interrogado às fls.94/97
Durante a instrução criminal foram ouvidas as testemunhas R. A. L. (fls. 122/123), C. DE M. T.(fls.124/125) e A. DE J. S.(fls. 126)
Na fase de diligências, nada foi requerido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO e pela defesa (fls117/118).
O MINISTÉRIO PÚBLICO, em alegações finais, pediu a condenação do nos termos da denúncia(fls.).
A defesa, de sua parte, pediu a absolvição do acusado ou que, no caso de condenação, lhe seja substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direito.(fls. )
Relatados. Decido.

01.00. J. foi denunciado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, à alegação de ter malferido o preceptum iuris do artigo 14, da Lei 10.826/2003, por ter sido preso em flagrante de posse de arma de fogo, ou seja, uma revólver calibre 32, taurus, nº 828423, contendo seis cartuchos intactos.
02.00. Os fatos narrados na denúncia nortearam todo o procedimento, possibilitando, assim, o exercício da defesa do acusado, sabido que o réu se defende da descrição fática, em observância aos princípios da correlação, da ampla defesa e do contraditório.
03.00. Sob a rubrica ” porte ilegal de arma de fogo”, o legislador previu treze diferentes condutas típicas, que não se restringe ao porte do artefato. São elas: portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar.
04.00. Trata-se, como se pode inferir, do tipo misto alternativo, no qual a realização de mais de um comportamento pelo mesmo agente implicará sempre um único delito, por aplicação do princípio da alternatividade.
05.00. Três são os objetos materiais: a) arma de fogo, b) acessórios ou c) munição.
06.00. Assim, haverá a configuração típica sempre que as ações de portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob a guarda ou ocultar arma de fogo, acessórios ou munições forem praticadas sem autorização e com desrespeito à determinação legal ou regulamentar.
07.00. Convém notar, com efeito, que aquele que pratica uma dessas condutas típicas sem autorização já está automaticamente violando a lei ou o regulamento.
08.00. O delito se consuma com a realização da conduta e as condutas previstas pelo legislador são todas dolosas, tratando-se de dolo simples, direto, não tendo o legislador exigido nenhum motivo.
09.00. A objetividade jurídica é a incolumidade pública, cuidando-se de crime de perigo, já que para caracterização da tipicidade não se exige o dano ( o resultado da conduta) e sim o perigo.
10.00. A par dessas diretrizes, passo ao exame das provas consolidadas nos autos, para aferir, alfim e ao cabo do exame, se o acusado, efetivamente, fez subsumir a sua ação no tipo penal referido a denúncia.
11.00. A persecução criminal, no sistema acusatório brasileiro, em regra, se divide em duas etapas distintas, nas quais são produzidas as provas da existência do crime e de sua autoria: uma, a chamada fase administrativa (informatio delict) é procedimento meramente administrativo, cujo objeto de apuração se destina à formação da opinio delicti pelo órgão oficial do Estado; a outra, a nominada fase judicial (persecutio criminis in judicio), visa amealhar dados que possibilitem, a inflição de pena ao autor do ilícito, garantido o livre exercício do contraditório e da ampla defesa.
12.00. A par dos distintos momentos da persecução, passo ao exame do quadro de provas que se avoluma nos autos
13.00. Pois bem, a primeira fase, teve início com a prisão em flagrante do acusado(fls.05/10).
14.00. O acusado – aqui indiciado – ouvido pela autoridade policial, confessou o crime, sem tergiversar, sem hesitação. (fls. 08)
15.00. Na mesma face foi apreendida a arma que portava o acusado (fls.10).
16.00. A arma foi apreendida e periciada, tendo os senhores peritos concluído pela sua eficiência(fls.35/36).
17.00. Vê-se que, já no primeiro momento da persecução, a prova consolidada, com destaque para a confissão suso mencionada e para apreensão da arma de fogo, emergiam os claros contornos da ação ilícita do acusado.
18.00. Com os dados acima mencionados posso afirmar, prima facie, que o acusado, com sua ação, malferiu, sim, a ordem jurídica.
19.00. Faz-se necessário, no entanto, continuar analisando o quadro probatório, pois que, sabe-se, a prova administrativa, isolada, não serve à edição de um decreto de preceito sancionatório.
20.00. Encerrada a primeira fase, o MINISTÉRIO PÚBLICO, de posse dos dados colacionados na fase extrajudicial ( informatio delicti), ofertou denúncia (nemo judex sine actore) contra o acusado, imputando ao mesmo o malferimento do artigo 14, da Lei 10.826/2003 fixando, dessarte, os contornos da re in judicio deducta.
21.00. Aqui, no ambiente judicial, com procedimento arejado pela ampla defesa e pelo contraditório, produziram-se provas, donde emerge, com singular importância, a confissão do acusado (audiatur et altera pars), o qual, inclusive, admite, tergiversando, a existência de quatro cartuchos intactos. (fls. 94/97)
22.00. Indagado acerca da eficiência da arma, o acusado disse que a mesma não estava em condições de efetuar disparos.(ibidem)
23.00. O acusado aduziu que, vindo de uma festa, achou a arma e a levou consigo para vendê-la.(ibidem)
24.00. Além da confissão do acusado, provas outras foram produzidas, a apontar-lhe a autoria do crime, sem a mais mínima dúvida.
25.00. R. A. L., ad exempli, afirmou ter prendido o acusado portando arma de fogo, com quatro balas intactas, sem autorização legal. (fls. 122/123)
26.00. As testemunhas ditas de defesa – C. DE M. T. (fls. 124/125 e A. DE J. S. (fls.126/127) – nada souberam acerca do crime.
27.00. Concluída a instrução criminal devo afirmar, agora definitivamente, que a ação do acusado se adéqua, perfeitamente, ao tipo penal do artigo 14, da Lei 10.826/2003.
28.00. A conduta do acusado, ao portar ilegalmente arma de fogo, é antinormativa e o fato, materialmente típico, devendo, por isso, ser responsabilizado pessoalmente pela ação reprochável.
29.00. O acusado, ao hostilizar à ordem pública, tinha plena consciência da situação fática em que se encontrava, sabia exatamente aquilo que fazia, daí poder-se imputar a ele, a título de dolo, o resultado lesivo.
30.00. O crime praticado pelo acusado, importa dizer, restou consumado, sabido que os delitos de atividade (formais e de mera conduta) consumam-se com a prática da conduta descrita no tipo, independentemente da produção de qualquer resultado natural.
31.00. In casu sub examine, cuida-se de crime formal , que se consumou com a realização da conduta, ou seja, com o porte ilegal de arma de fogo.
32.00. A confissão do acusado nas duas oportunidade em que foi ouvido – sedes administrativa e judicial -, a prova testemunhal amealhada em sede judicial e a apreensão da arma de fogo em seu poder, tornam induvidosas a existência do crime e sua autoria,
33.00. Além de todo o exposto, assoma dos autos, de mais a mais, a prova pericial realizada na arma de fogo apreendida em seu poder, donde se infere que estava em condições de efetuar disparos.
34.00. Importa assinalar, à guisa de reforço, que em poder do acusado também foram apreendidos quatro cartuchos intactos, a reafirmar a tipificação do ilícito.
35.00. Do conjunto de provas destacam-se as provas produzidas em sede extrajudicial.
36.00. Convém sublinhar, em face do exposto, que as provas produzidas em ambiente extrajudicial podem e devem ser buscadas para compor o quadro de provas, como, aliás, têm sido proclamado pelos nossos Tribunais, à exaustão.
37.00. É ressabido que as provas administrativas são submetidas ao crivo do contraditório na ambiência judicial, oportunidade em que se abrem ensanchas para que as partes acerca delas expendam as suas considerações e as suas impugnações.
38.00. Cediço, assim, que tais provas, ainda que produzidas em ocasião anterior ao due proces of law, podem e devem ser buscadas para integrar e fortalecer o conjunto de provas, sem que, com isso, se atente contra os princípios constitucionais que oxigenam o processo judicial.
38.01. Nesse passo, posso reafirmar, como já fiz algures, que à prova administrativa não se pode negar valor probatório, inclusive para que outorguem supedâneo a um decreto de preceito condenatório.
39.00. TUDO DE ESSENCIAL POSTO E ANALISADO, JULGO PROCEDENTE A DENÚNCIA, , para, de conseqüência, condenar J., por incidência comportamental no artigo 14, do Estatuto do Desarmamento, cuja pena-base fixo em 02(dois) anos de reclusão e 13(treze)DM, à razão de 1/30 do SM vigente à época do fato, penas que torno definitivas à inexistência de circunstâncias e/ou causas legais de que possam modificar o quantum, devendo a pena privativa de liberdade ser cumprida, inicialmente, em regime aberto, ex vi do artigo 33, §2º, c, do CP.
40.00. Anoto que a pena-base foi fixada no mínimo legal, daí por que deixei de considerar eventuais circunstâncias atenuantes e, pela mesma razão, deixei de fazer alusão às circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, sem que da omissão resulte qualquer nulidade, à falta de prejuízo.
41.00. O acusado faz jus à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, pois que a) a pena privativa de liberdade não é superior a quatro anos, b) o acusado não é reincidente; c) o crime não foi praticado com violência contra a pessoa, e d) as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP lhe são favoráveis.
42.00. Assim sendo, substituo a pena privativa de liberdade por prestação de serviços à comunidade (artigo 43, IV, do CP) , cujo programa deverá ser definido no juízo da execução, ex vi do artigo 149, I, da LEP.
P.R.I.
Custas, na forma da lei.
Com o trânsito em julgado, lance-se o nome do réu no rol dos culpados e expeça-se CARTA DE SENTENÇA.
Arquivem-se os autos, após, com a baixa em nossos registros.
São Luis, 23 de dezembro de 2008.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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