NELIO MACHADO
Se no regime de exceção havia a possibilidade de defesa, hoje, no regime democrático, com a escuta telefônica, resta ao advogado discurso simbólico |
A Polícia Federal tem lançado mão de operações de grande notoriedade na mídia, todas com denominações inusitadas, como Hurricane, Chacal, Satiagraha e Pandora. Em comum, um elemento emerge na Justiça, aclamado pela acusação, mas estarrecedor para a defesa do cidadão -os chamados “métodos modernos de investigação”.
Destaque para o uso da interceptação telefônica pela autoridade policial, com a concordância do Ministério Público e a indispensável permissão judicial, a despeito de tal prática ferir um dos princípios mais fundamentais e elementares do direito, o de não produzir prova contra si mesmo.
No regime de exceção, presenciamos graves situações de cerceamento dos direitos do cidadão.
Ninguém haverá de se esquecer do terror instalado e potencializado, sobretudo a partir do Ato Institucional nº 5, de 1968, em que se suprimiu, dentre outras tantas garantias, a mais elementar delas: o direito de habeas corpus.
Ao tempo do regime militar, a tortura era, lamentavelmente, o “método de investigação” empregado para a obtenção da “confissão de culpa” o quanto antes.
Todavia, mesmo no regime de exceção, a defesa judicial era compreendida como fundamental para a garantia do devido processo legal. Na prática, a defesa atuava como uma espécie de contrapoder ao Estado, a despeito de sua virulência na fase apuratória.
Em última análise, os advogados sustentavam, as mais das vezes com sucesso, que as provas colhidas por meio de violências não poderiam levar ninguém à condenação. Em juízo, os defensores clamavam e bradavam, sem receio, contra a tortura, e as vozes da resistência ultrapassavam as fronteiras do país.
Constatamos agora, porém, que, se no regime de exceção havia a possibilidade de defesa, pois a prova extrajudicial era muitas vezes invalidada, hoje, no regime democrático, com a proliferação da escuta telefônica, resta ao advogado discurso meramente simbólico.
Isso porque a decisão está, muitas vezes, tomada a partir de declarações interceptadas, de forma parcial, por vezes distorcidas, com despropositadas interpretações policiais. Atualmente, formou-se na estrutura da investigação criminal verdadeiro “triunvirato acusatório”: a polícia que “grampeia”, o Ministério Público que “chancela” e o juiz que “autoriza”, avalizando, passo a passo, o andamento das “investigações”. Não há mais contrapoder oponível ao Estado.
Os integrantes da cena processual ficam contaminados em seus convencimentos pela atuação direta no procedimento sigiloso e inquisitorial. No passado, pela hediondez da tortura, repudiava-se a prova assim colhida, o que não ocorre com a interceptação telefônica, apesar de ambas obterem a autoincriminação por via oblíqua.
Para os advogados, pasme-se, era menos difícil defender os então perseguidos políticos do que os atuais destinatários das “modernas técnicas de investigação”.
O ministro Eros Grau, em decisão proferida no Supremo Tribunal Federal, em feito de que foi relator, afirmou, com invulgar nitidez, em julgado de 2008:
“O acusado já então não se verá diante de um juiz independente e imparcial. Terá diante de si uma parte acusadora, um inquisidor a dizer-lhe algo como ‘já o investiguei, colhi todas as provas, já me convenci de sua culpa, não lhe dou crédito algum, mas estou a sua disposição para que me prove que estou errado!’ E isso sem sequer permitir que o acusado arrisque a sorte em ordálias…”.
Fica a indagação: até que ponto a prestação jurisdicional nesses moldes se adequa à possibilidade de um julgamento justo?
NELIO MACHADO, 60, é advogado criminal.