Tenho dito, sem surpresa, para os que me conhecem, que não sou do tipo que se entrega ao primeiro afago, ao primeiro aceno. Esse é um traço da minha personalidade que muitos não compreendem. Assim sendo, se deixo transparecer que me entreguei, pode ser – e na maioria das vezes é mesmo -, uma entrega apenas aparente. Nessas questões sou muito resistente. Se é certo ou errado não sei dizer. Sei, no entanto, que, se me entrego mesmo, sou levado ao paroxismo, quase sem meio-termo; sou intenso, tenaz, incondicionado. Antes as os ditames do coração sou quase sem limites, impetuoso, sem perder a racionalidade.
A vida – pessoal e profissional – me ensinou a ser assim, a ter cautelas nas minhas relações, por isso pareço – e sou mesmo – do tipo ermitão, ensimesmado, opção de vida que fui compelido a fazer, depois de mais de trinta anos lidando com criminosos dos mais variados matizes, em cuja lida deparei-me, muitas vezes, com acusados que supunha, num primeiro e precipitado olhar, ser culpados, mas que eram inocentes, conquanto do tipo repulsivos, aparentando ser o que não era, me levando, como levaria qualquer um, a equívocos que conduzem um juízo precipitado.
Lado outro, a justificar o meu ressabiamento, deparei-me com acusados que imaginei inocentes, do tipo de afago fácil, conquistador, envolvente, mas que, ao fim e ao cabo, era culpado, os quais, constatei depois, tratava-se mesmo de pessoas dissimuladas, forjadas para enganar, escamotear, fingir, ludibriar, dessas com as quais todos nos deparamos por aí, cuja maior “virtude” é a capacidade de passar as penas do semelhante.
Com esses tipos extremados e enganadores aprendi muito do que sei da vida. Aprendi, nesse mundo, que a condição de juiz nos ensina a confiar desconfiando, a crer descrendo, procurando, no entanto, apenas por prevenção, sem amarguras, pois o homem existe mesmo é para provocar em nós esse sentimento contraditório que só ele é capaz de proporcionar, conviver amistosamente, mas com a cautela necessária.
Por ter vivido intensamente os momentos marcantes que me foram proporcionados pelo meu trabalho e por ter, no mesmo passo, me defrontado com as personalidades mais díspares e mais surpreendentes, é que, como uma defesa, aprendi a agir com cautelas nas minhas relações, sem me deixar envolver pelo primeiro aceno, sem me deixar impressionar com o primeiro gesto, sem me precipitar na primeira avalição, para não julgar precipitadamente, afinal, como tenho reafirmado, do ser humano se pode esperar qualquer coisa.
Reluto, olho, tergiverso, vou adiante ou dou um passo à frente, para, só depois, sedimentar as minhas relações. Reflito, pois, com muita intensidade, para, só depois, me entregar; entrega que, muitas vezes, se verifico tibieza no interlocutor, nem se concretiza definitivamente; mas se ela se concretiza, rompidas todas as barreiras, explodidas todas as pontes, vou ao extremo, me entrego por inteiro.
Como um gato, portanto – diferente do cão -, tenho uma enorme dificuldade para me afeiçoar ao estranho. Aliás, como os gatos, nem consigo mesmo me afeiçoar aos estranhos, por isso me identifico muito com esse animal, por quem tenho paixão, adoração. E quem não os conhece imagina, equivocadamente, tratar-se de um animal frio e calculista, dado a traições, o que, definitivamente, é um equívoco; equívoco que só se dissipa depois que se convive com eles, que são dóceis, amáveis, carinhosos, brincalhões, amigos, mas tudo na medida certa, sem exageros, sem fingimentos, daí a minha identificação com o bichano.
Não sou mesmo, repito, do tipo simpático, entregue ao primeiro afago. Aliás, tenha até uma certa restrição ao primeiro fago; tenho sempre a perturbadora sensação de que ele pode ser meramente protocolar – e, na maioria das vezes, é mesmo -, por isso prefiro primeiro a cautela para só depois, consolidar a relação. Preservo, nas minhas relações, uma distância de prudência, distância e prudência que me permitem me proteger dos afagos oportunistas.
É muito difícil para mim me apresentar como a pessoa que não sou. Por isso nunca trago as pessoas enganadas sobre mim. Nesse sentido, que tem que se decepcionar comigo o faz logo no primeiro momento, no primeiro contato, pois não sei dissimular.
Às vezes, na ânsia de ser simpático, forço a barra, até tento ser o que não sou verdadeiramente, apenas para preservar a fidalguia, o relacionamento. Mas não vendo essa falsa percepção de mim mesmo por muito tempo. Logo me revelo por inteiro. Em mim, devo dizer, causa até uma certa irritação o afago desmedido, os elogios obsequiosos, a conivência oportunista, o excesso de mesura, os gestos que parecem excessivos.
Quiçá em face da equivocada ideia de que gato deve ser desprezado por ser um animal ensimesmado, Albert Camus narra no livro A peste o comportamento de um dos personagens que, todos os dias, depois do almoço, nas horas em que a cidade inteira cochilava no calor, um velhinho aparecia numa varanda do outro lado da rua, com os cabelos brancos e bem penteados, ereto e austero nas suas roupas de corte militar, chamava os gatos com um “bichano…bichano” ao mesmo tempo meigo e distante. Os gatos, prossegue a narrativa, levantavam os olhos pálidos de sono, sem se perturbarem. O outro rasgava pedacinhos de papel e os jogava na rua; os bichos, atraídos por essa chuva de borboletas brancas, avançavam para o meio da calçada, estendendo uma para hesitante para os últimos pedaços de papel. O velhinho malvado escarra, então, sobre os atos, com força e precisão. Se um dos escarros atingia o alvo, ele ria. Para infelicidade do velhinho ranzinza, quando mais ele precisos dos gatos, em face da enormidade de ratos que apareceram durante a epidemia, eles tinham desaparecido. Não havia gatos para os ratos e nem para servirem de alvo para os escarros do personagem. (Albert Camus, ebook)
A lição se pode tirar do episódio, se comparado com o jeito esquisito de algumas pessoas, cautelosas, arredias como um gato, é que não se deve julgá-las e nem escarrar sobre elas as suas iras, apenas porque elas não são como gostaríamos que fossem.
Aprecio as mesmas virtudes do bichano, e o encorajo [em rara ousadia] a nelas persistirem, na medida em que tais mais ajudam do que atrapalham em ocasiões de tentativa de exploração e oportunismo.
Ao fim, a estabilidade (próxima da idolência) do gato me parece mais apropriada na maioria das ocasiões do que a euforia ou irá do cão.