Um homem obstinado

 

O meu discurso é a minha prática de vida. No meu dia-a-dia, os que me conhecem sabem que tenho sido um renitente enfrentador da criminalidade, máxime a violenta. Nem sempre, ou melhor, quase sempre, deixo de concretizar os meus intentos, por absoluta falta de condições de trabalho.

Nas vezes que vou à minha Secretaria e vejo a quantidade de mandados de prisão para serem cumpridos, me sinto como com um filho órfão. Olho para os lados e não vejo a quem recorrer.

Tenho dito, sem arrogância, mas apenas para ser enfático, que, se cumprissem todos os mandados de prisão que expedi ao longo dos meus quinze anos de atuação nesta capital, ter-se-iam que construir uma nova penitenciária só para abrigar os réus condenados na sétima vara criminal. Numa conta grosseira, se se considerar que nunca se deixa de condenar – constristado, registre-se, pois um juiz nunca pode estar feliz por ter condenado esse ou aquele acusado – pelo menos 5(cinco) réus por mês, num ano são cerca de 50(cinqüenta) os condenados. Considerando que estou judicando na 7ª Vara Criminal há quize anos, ter-se-á de convir que pelo menos 825 réus já foram condenados aqui. Para abrigá-los, só mesmo se se construisse uma nova Penitenciárias.

Infelizmente, ainda é pouco. Se a nós nos fossem dadas as condições mínimas de trabalho que precisamos, muito mais ter-se-ia feito. Falta-nos carros para diligências, impressora, papel para impressora, toner para impressora, espaço físico para trabalhar, às vezes àgua para beber, dentre outras coisas. Agora mesmo estão nos obrigando a trabalhar com papel ofício, muito maior que o A4. Somos, por isso, obrigados a destacar uma funcionária apenas para cortar papel. E já recebemos um recado: não adianta reclamar: só se comprará papel A4 quando acabar o papel ofício.

Enquanto há dois Promotores na 7ª Vara Criminal, cada um fazendo audiências apenas 10(dez) dias no mês, o magistrado tem uma carga hercúlea de pleitos para examinar: a)são informações em face de habeas corpus; b) são pedidos de liberdade provisória para despachar; c) são decretos de prisão preventiva para editar; d) são incidentes processuais para processar e decidir; e) são recursos para processar; f) são pedidos de revogação de prisão preventiva para analisar. Além do mais: g) há os parentes aflitos dos acusados presos para orientar e aconselhar; h) os advogados para questionar; h) os inquéritos baixados para acompanhar; i) processos em poder de advogado para cobrar; j) pessoas amigas pedindo para mendigarmos um despacho em outra vara. Não bastasse tudo isso, tem-se outros tantos obstaculos a enfrentar: i) são os advogados que, intimados, deixam de comparecer; j) são os presos que, requisitados, não são apresentados; k)são, muitas vezes, as testemunhas – policiais civis e militares – que não são apresentadas, etc; l) são os laudos médicos que nunca foram encaminhados;) são as informações requisitadas que não chegam a tempo e hora; n) é a fotocopiadora que não funciona, etc.

Além de tudo o que foi exposto acima, o mais grave: tem-se que decidir a sorte de um criminoso, cuja decisão, por via oblígua, atinge toda a sua família. Essa sensação – de estar punindo quem não cometeu o ilícito – me agasta, faz muito mal à minha alma, mas deixa a minha consciência em paz.

Não é fácil a vida de juiz. Mas ela seria muito menos espinhosa se nos fossem dadas condições de trabalho.

Será que a associação dos magistrados não deveria abraçar essa causa?

Alguma coisa precisa ser feita. E com urgência. E não só no âmbito do Poder Judiciário. O Ministério Público e a Polícia também precisam se arejar.

A inércia está minando as nossas instituições. Os agentes públicos precisam, com urgência, esquecer um pouco os seus interesses pessoais e pensar mais um pouco no seu mister.

Sei que essas colocações me colocam muito mal diante daqueles que ficam sentado no trono de um apartamento, com a boca aberta cheio de dente, esperando a morte chegar, como disse Raul Zeixas. Não estou preocupado, no entanto. Afinal, tenho que faz por merecer o título de arrogante. Santa arrigância que faz de mim um homem obstinado.


Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “Um homem obstinado”

  1. Vivo o dia-a-dia da 7ª Vara Criminal há um ano e posso confirmar o que foi escrito. Todo o esforço empreendido para que as audiências aconteçam, a agenda lotada, a falta de material e de condiçoes de trabalho, a felicidade quando se consegue encerrar uma instrução e a felicidade maior de quando os autos são conclusos para sentença. Porém, com todos os obstáculos enfrentados, é um local onde temos orgulho de trabalhar, pois nos espelhamos num magistrado que possui qualidades não observadas no restante da classe, com raríssimas exceções. Um juiz que se preocupa em estar sempre atualizado com a doutrina e jurisprudência para embasar suas decisões, que trata todos que vão ao seu gabinete de forma gentil, independente de ser um colega de profissão ou um parente do encarcerado (aliás, até hoje não descobri de onde saiu a fama de “arrogante”), que não se importa de fazer pessoalmente o pregão quando não há funcionários suficientes etc.
    São por esses e outros motivos que não troco a 7ª Vara por outra!

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