Açúcar e café para velório

Há mais de vinte anos venho lidando com questões criminais, especificamente. Primeiro, em Imperatriz, na 2ª Vara Criminal, por mais de dois anos; depois, em São Luis, na 7ª Vara Criminal, por 19 anos, mais ou menos. Ao assumir  a  segunda instância, passei a integrar uma Câmara Criminal, onde estou desempenhando o meu ofício há mais de três, disso tudo inferindo-se que pelo menos experiência tenho bastante para fazer as reflexões que faço a seguir.

Com a experiência e o conhecimento acumulados durante tanto tempo  em face das questões criminais, posso afirmar, sem hesitação e sem surpreender, que uma das causas da criminalidade – quiçá a mais relevante – é, sim, a quase certeza da impunidade, no que se refere aos, digamos, pequenos transgressores (assaltantes, especialmente),  e a convicção dela, em face da criminalidade do colarinho branco.

Não é por outra razão que os assaltos se multiplicam, muitos dos quais à luz do dia, à vista de todos. Não é por outra razão, outrossim, que os meliantes das classes mais favorecidas continuam “assaltando” os cofres públicos, a inviabilizar programas essenciais de interesse da coletividade.

Todos sabem – do pequeno ao grande meliante – que punição é uma loteria e que só mesmo por falta de sorte um assaltante será punido pelos crimes que eventualmente cometa, daí o seu destemor, daí a sua ação descontrolada a infernizar a nossa vida.

As estatísticas em torno da questão, para a qual concito a reflexão do ilustrado leitor, não deixam mentir. É dizer: a possibilidade de um meliante vir a ser preso, processado e condenado em face de um roubo ou de um furto é remotíssima, daí a estonteante estatística de vítimas desse tipo de crime.

Lado outro, a possibilidade de um gangster de colarinho branco, desses que assaltam os cofres públicos, sem pena, sem dó e sem pudor, vir a ser preso e devolver o que subtraiu chega muito perto de zero.

Dessa constatação resulta que o meliante, seja de qual coloração for, não teme um revés. Quando eles, os transgressores, se decidem pela prática de um crime, sabem que a chance de virem a ser processados e punidos é, por assim dizer, nenhuma. Daí pensam: se é mais fácil adquirir dinheiro para consumir droga e/ou comprar um bom par de tênis e/ou um celular de última geração assaltando, por que vou trabalhar?  Os seus iguais de colarinho branco, do mesmo modo, concluem: se beltrano e sicrano, todos sabem, assaltaram os cofres públicos, estão ricos e vivem esbanjando, sem a mínima possibilidade de virem a ser molestados pelas agências de controle, por que eu, que agora tenho a chance de fazer o mesmo, certo de que também não serei alcançado,vou dar uma de otário?

Nesse cenário, não adiante exacerbar as reprimendas penais. Da mesma forma, não adiante criar novas figuras penais, se elas não saem, em face da maioria dos crimes, de sua abstração.

O ideal seria que todos que cometessem crimes tivessem a certeza de que, em face deles, seriam punidos. Não é o que ocorre, entrementes, sobretudo para os egressos das classes mais favorecidas, onde a impunidade é a regra.

A verdade é que, como está, de nada valerá a reforma penal que se limitar a criar novas figuras típicas ou que exasperem as penas, em face, repito, do sentimento, da sensação da impunidade; sensação que, não raro, desestimula as próprias vítimas de noticiarem a prática de crimes, cientes de que tudo pode ficar como dantes.

Eu mesmo, tendo sido assaltado recentemente, registrei a ocorrência por insistência de um conhecido, ciente de que as instâncias persecutórias nada fariam para a devolução do bem subtraído e para o processamento do meliante, que deve andar por aí praticando crimes do mesmo jaez, consciente de que nada lhe ocorrerá.

A propósito,até hoje não tenho notícia de nenhuma ação que tenha sido desenvolvida para identificar o meliante que me assaltou, convindo consignar que a câmara de segurança, que filmou o assalto que me vitimou, não capturou detalhes da ação criminosa, porque não havia ninguém na operação.

Recordo que, ao tempo em que atuava na 7ª Vara Criminal, condenei um assaltante que havia roubado,  várias vezes –  por cinco ou sete vezes, não me recordo bem –  a mesma vítima, no mesmo lugar, nas mesmas condições – à luz do dia, à vista de todos, sem enleio, sem receio, descaradamente, sem sequer se preocupar em esconder o rosto.

Lembro de ter ouvido da dona do comércio que quando avistava o meliante à distância, dirigindo-se ao seu comércio, se limitava a pedir a Deus que ele se decidisse apenas pela subtração dos bens materiais, e lhe poupasse a vida.

Intrigado com a petulância do assaltante, indaguei-lhe, no interrogatório, por que assaltar a mesma vítima tantas vezes, ao que me respondeu, candidamente, que o fazia por que, até então, não tinha sido punido, mas que, doravante, pretendia mudar de vida, em face da informação que tivera, ainda na Delegacia, de que, estando em minhas mãos, dificilmente escaparia de uma punição.

A dona do comércio reconheceu o meliante, que, claro, foi condenado. Só que, infelizmente, ela não teve mais condições de trabalhar, abalada psicologicamente em face dos crimes que a vitimaram durante tanto tempo; resolveu fechar o comércio, e partiu para outra atividade menos perigosa.

Esse fato serve para reafirmar a minha convicção de que a criminalidade não refluirá se os criminosos não tiverem a certeza de que serão punidos.

Os gestores públicos, da mesma forma, enquanto tiverem a certeza de que podem usar o dinheiro público como bem lhes aprouver, sem risco de punição e de devolução ao erário, também não refluirão. A certeza que eles têm  de que nada lhes acontecerá é o estímulo que precisam para continuar promovendo desvios de verbas públicas, sendo relevante anotar que desses desvios se beneficiam poucos em detrimento de muitos, que são exatamente os pagadores de impostos.

No caso dos gestores públicos municipais, o que é mais lamentável é que, culturalmente, a população acha normal que ele – e  grande parte dos acólitos –  enriqueça no exercício do cargo, ainda que, em face dos desvios de verbas, receba apenas as migalhas, traduzidas numa garrafa de cachaça, numa passagem de ônibus, no café e no açúcar para um velório ou no  aviamento de uma receita.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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