O xis da questão

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“[…] Com efeito, só o processo e a prova nele consolidada servem, de alguma maneira, para afastar as incertezas propiciadas pela situação do momento. Daí se dizer, com acerto, que o processo é um instrumento de correção do caráter alucinatório da evidência[…]”

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Basta assistir ao noticiário televisivo ou impresso para se constatar que vivemos em estado de guerra: dos criminosos contras as vítimas; das vítimas – em potencial ou direta – contra os criminosos (linchamentos e vingança privada); do aparato estatal contra os criminosos; dos criminosos contra as agências de segurança do Estado.

É preciso ter em conta que a sociedade civil entra em colapso quando se descontrola e, por esse fato, todos nós perdemos. Perdem os culpados e os inocentes, os bons e os maus, os ricos e os pobres. Enfim, ninguém ganha quando, por omissão ou fraqueza, as instituições estatais são substituídas pela ação dos justiceiros e milicianos, por exemplo.

Vejo, nesse sentido, com muita preocupação, que os casos de linchamentos se multiplicam em todo o país; linchamentos que não significam nada mais do que vingança privada ou justiça com as próprias mãos, que se materializa, sempre, quando o Estado se mostra impotente e pusilânime.

É claro que todos nós estamos agastados com a criminalidade, nos seus mais variados matizes. É claro, ademais, que estamos perdendo a fé em tudo. Todavia, ainda assim, o pior caminho é o da vingança privada, conquanto eu reconheça que, muitas vezes, nos sentimos tentados a trilhar por esse caminho que é, indiscutivelmente, fruto da descrença em nossas instituições, sobretudo nas instâncias persecutórias.

Nesse cenário, ainda que agastados pela criminalidade recorrente, não se deve perder de vista que o problema da justiça feita com as próprias mãos é que, como regra, os justiceiros partem apenas de uma evidência para, a partir dela, substituir o Estado no seu desiderato de processar e punir os criminosos. E evidência, eis o xis da questão, não é o mesmo que verdade.

Como todos sabem, evidência é ponto de partida, e verdade é ponto de chegada. Todavia, para se chegar a uma verdade, um longo caminho deve ser percorrido, convindo consignar que, ainda assim, podemos não chegar à verdade, a impor a absolvição de um acusado.

A busca da verdade sempre atormentou os homens, já que os filósofos sempre a colocaram no centro das suas reflexões. Mas a verdade é sempre algo muito complexo; daí que não são poucos os que a confundem com evidências, que dela se aproxima, mas verdade não é, conquanto possa contaminá-la, levando o sujeito do conhecimento a uma alucinação e, até mesmo à comoção, que precisam, profilaticamente, ser exorcizadas do ambiente, sob pena de induzir o sujeito do conhecimento a erros graves de avaliação e julgamento.

Ao lado disso, é preciso ter presente que as verdades que são indiscutíveis para alguns podem não sê-lo para outros. Tudo vai depender do ponto de observação do sujeito do conhecimento, da sua visão de mundo, das suas idiossincrasias, da sua ideologia, do meio em que vive. Por isso se diz, como Protágoras, que o homem é a medida de todas as coisas.

Só pelo prazer de argumentar, registro que o fato, por exemplo, de uma pessoa ser flagrada com o produto de um roubo não significa, necessariamente, que ela tenha praticado o crime. Daí a temeridade da vingança privada, que pode levar à punição de um inocente, pois, se flagrante fosse verdade, seria desnecessária a formalização de um processo.

Definitivamente, não devemos nos deixar iludir pelas evidências e deixá-las, nesse passo, contaminar a verdade que, reafirmo, deve ser construída e buscada num processo, verdadeiro instrumento de correção da alucinação e da comoção (Aury Lopes).

Com efeito, só o processo e a prova nele consolidada servem, de alguma maneira, para afastar as incertezas propiciadas pela situação do momento. Daí se dizer, com acerto, que o processo é um instrumento de correção do caráter alucinatório da evidência.

O particular, salvo situações especialíssimas, não pode substituir o Estado, pois é impensável uma sociedade sem agências de controle social. Até os minimalistas, os que pregam um enfraquecimento do Direito Penal, concordam ser ele um mal necessário.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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