O poeta e o boquirroto

 

Em 1979 comprei o meu primeiro aparelho de som. Era um Três em Um – rádio, toca discos e fita cassete – , da Sony; grande novidade à época. Era o que havia de mais compacto no mercado, mesmo assim, comparado aos aparelhos de hoje, era um trambolhão, difícil de ser transportado, mas excelente para ser exibido.

Recém-casado, recém-formado, iniciando a construção da minha história, fixei domicílio no Conjunto Habitacional Turu, conjunto de casas populares, localizado no bairro do mesmo nome. Era uma casa simples, com piso de cimento, sem muro, sem forro, mas com o mínimo de conforto, onde vivi momentos de rara e intensa felicidade, ciente e consciente de que era tudo que eu podia oferecer a mim mesmo e à pessoa que escolhi para viver a minha história de amor e de vida.

Com o aparelho Três em Um, vivendo a bela e desafiante aventura de constituir uma família e de construir a minha própria história, fixei, embevecido e embalado pelo desafio, o meu próprio domicilio, curtindo os meus cantores e cantoras favoritos, ouvindo-os nos antigos long plays, os antigos discos de vinil.

Tendo sido o meu primeiro aparelho de som de qualidade, claro que eu tinha muita afeição pelo Três em Um. Pensei até guardá-lo para posteridade. Juro! O cuidado era tanto  que, como não havia forro na casa, por precaução, mandei fazer uma estranhíssima capa de flanela, com a qual o cobria por inteiro, desfigurando-o, mas, na minha visão, protegendo-o das intempéries, sabido que não seria fácil adquirir outro.

Com o Três em Um a me fazer companhia, colocado em lugar de destaque na minha sala de visitas, sob a estranha capa de flanela, que só era retirada em momentos especiais, eu esperava, com singular expectativa,  a chegado do sábado, para, mais uma vez, reunir a parentalha para ouvir músicas, sobretudo as canções do ídolo maior Roberto Carlos, cujos discos, sempre lançados nas proximidades do Natal, a gente ouvia o ano inteiro, repetidamente, exaustivamente, até estourar a paciência dos menos afeiçoados ao seu canto e voz.

Sempre gostei de músicas. Gosto até hoje. Os meus dias sem música não seriam os mesmos. Com música enfrento até engarrafamento sem me irritar. Nesse sentido, é compreensível que várias músicas tenham marcado a minha vida, especialmente as que falavam – e falam –  ao coração, em cuja arte destaco os inigualáveis Roberto Carlos, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran,  Maysa,  e a dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim,  dentre outros, sem deixar de curtir, em outras circunstâncias, as obras mais intelectualizadas de compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque.

Todos, de certa forma, compuseram ou cantaram  músicas que marcaram, com tintas fortes, a minha vida. De Gilberto Gil, que ponho em destaque nessas reflexões, me chamou a atenção, entre tantas obras primorosas, a música intitulada Metáfora, da qual destaco a seguinte passagem: “Uma lata existe para conter algo, mas quando o poeta diz lata pode estar querendo dizer o incontível. Uma meta existe para ser um alvo. Mas quando o poeta diz meta pode estar querendo dizer o inatingível.”.

O que quero refletir, aqui e agora,  a propósito da letra da música de Gilberto Gil,  é o óbvio:  o poeta tem licença para dizer o que quiser, e deve, sim, ser compreendido e respeitado em face do que diz, conquanto possa ser criticado em face da qualidade da sua poesia. Todavia, ainda assim, está autorizado a dizer o que pensa, sem ser censurado pelo que pensa e diz.

Inobstante, nós, nas nossas relações, sobretudo nas atividades profissionais,  sem exercitar a veia poética, posto que não a possuímos, não temos licença para dizer o que bem entendemos. Temos, sim, ao reverso, que  pensar, repensar, contar até dez, refletir, enfim,  sobre as consequências que decorram das nossas palavras; na repercussão daquilo que dizemos ou fazemos, sobretudo quando exercemos uma posição de destaque e temos ciência da repercussão daquilo que falamos.

O juiz, por exemplo, não pode, nas suas decisões – ou mesmo fora dos autos – dizer o que bem entende, fugir do exame da provas, vilipendiar o bom-senso, concluir precipitadamente, sem estar autorizado em face das provas produzidas ou pela conveniência.

O juiz não pode ser um fanfarrão, um falastrão, um boquirroto, dizer tudo que lhe vem à mente, como não pode, de resto, qualquer um cujas palavras possam repercutir.

Não pode e não deve o juiz, ademais, antecipar seus julgamentos, agir como agem os que estão numa mesa de bar ou num campo de futebol. É preciso ter postura, portar-se de acordo com as exigências e liturgia do cargo, assertiva que vale, de mais a mais, para quem exerça uma liderança.

Da mesma forma, não pode o representante da parte em juízo, na defesa do seu cliente ou do Estado, ser desleal na produção e no exame  das provas que dão base à sua postulação, numa vã tentativa de ludibriar, de levar o juiz na conversa, para levar vantagem, para se sair bem, para vencer a contenda, a qualquer custo, de qualquer forma, sejam quais forem os meios e as consequências, pois tudo isso equivale, em proporção e consequência, a dizer além do que deve e pode.

Lado outro, não pode o advogado ou representante do Ministério Público,  sob qualquer argumento, ainda que em nome da ampla defesa, da plenitude de defesa ou do interesse público, ser desleal com a parte adversa, fazer uso de meios impróprios para alcançar os seus objetivos, indo além ou aquém da expectativa que se guarda em relação à sua atuação.

No nosso mundo, diferente do mundo do poeta, não temos licença para dizer o que nos vem à cabeça, sem medir as consequências.  Não podemos alegar o que não podemos provar. Não podemos fazer acusação ou afirmação levianas, sob pena de pagarmos um elevado preço pela ousadia.

Se é verdade que o juiz não pode decidir em face de suas intimas convicções, que não deve argumentar com o que lhe vem à mente, sem base em provas regularmente produzidas,  não é menos verdadeiro que o advogado não deve se valer de sua capacidade postulatória para formular alegações infundadas, para formular pleitos que sabe destituídos de base legal ou para achincalhar, desrespeitar, afrontar o magistrado em face de uma decisão que lhe tenha sido desfavorável.

É preciso, pois, medir as palavras, pois se ao poeta se concede licença para o uso das palavras, ao boquirroto, dependendo da afirmação que faz, podem ser reservados os rigores da lei.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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