Falsas verdades

 

Para definir uma situação dramática, as pessoas costumam dizer que estamos no olho do furacão. Segundo os livros científicos, o olho do furacão é o único lugar onde reina a calma, enquanto o furacão vai se expandindo por todos os lados, o que evidencia o equívoco da formulação.
Noutro giro, quando as pessoas têm uma desinteligência qualquer, uma pendência a ser solucionada e uma vez superadas as formas de composição amigáveis, as outras costumam aconselhar a procurar a Justiça. Mas aí confundem tudo. Esquecem que a Justiça, como sabemos, é o lugar próprio para um processo, com a observância de certos rigores formais.
Essas pessoas, em face de uma natural desinformação, costumam imaginar que a busca de qualquer instância de controle, mesmo as administrativas, e ainda que o façam informalmente, é o mesmo que procurar Justiça, ou seja, o Poder Judiciário, o que, certamente, só pode ser compreendido em face de uma descabida ampliação do seu conceito. E o mais grave nessa confusão entre o que seja Justiça e outras instâncias de controle, é que, quando não conseguem encontrar uma solução satisfatória aos seus pleitos nas instâncias percorridas, as pessoas, com natural descrença, costumam dizer que a justiça não funciona.
É natural que assim o seja, é natural que os leigos e desinformados façam esse tipo de confusão, afinal, são poucos os que têm o domínio dessas questões, daí por que a confusão é perdoável.
Tenho para mim, entretanto, que quando o equívoco – e dele a desinformação consequente -, sai da esfera restrita de alguém para alcançar a opinião pública, em face de uma matéria jornalística, aí a situação muda de figura, em face das consequências indesejáveis da confusão que se disseminará.
Explico. No dia 30 de junho do corrente, um articulista da Folha de S. Paulo, a propósito da diminuição da idade penal de 18 para 16 anos, disse o seguinte: “Ao invés de estarmos discutindo a diminuição desta população (refere-se à população carcerária), assim como a reversão de tal lógica e o uso mais sistemático de penas alternativas, estamos propondo aumentar os casos passíveis de encarceramento, mesmo sabendo que os adolescentes que serão encarcerados não são, em absoluto, apenas aqueles que praticarão crimes hediondos. Estamos falando de um país que, dependendo do juiz, prende pessoas que cometeram furtos de R$ 150,00 e que andam com alguns cigarros de maconha”.
Essa é uma afirmação falaciosa, que se inspira provavelmente em exceções. Não é verdade que se prenda alguém só porque furtou R$150,00. É preciso desmistificar esses equívocos de análise, já que a lei não autoriza esse tipo de prisão e nem há juiz que a pratique. É dizer: ninguém é preso só porque furtou R$150,00, como afirma simploriamente o articulista.
É preciso ter presente que quando uma prisão decorre de uma subtração desse porte, é implementada em face de outras razões: reincidência, recalcitrância, violência empregada na execução do crime, dentre outras.
Um réu primário, de bons antecedentes, de boa conduta, que tenha praticado um furto de valor irrelevante ou qualquer outro crime com resposta penal diminuta, sem violência ou ameaça, nunca fica preso, porquanto a prisão se dá em face da conjugação de outros fatores. O valor do bem subtraído não é, definitivamente, relevante para determinar uma prisão, como equivocadamente afirmou o articulista, sustentando as suas conclusões em dados isolados e que não condizem com o garantismo penal a que todos nós nos submetemos, sem perder de vista a necessidade de proteção da sociedade, a relativizar as garantias penais inseridas em nosso ordenamento jurídico.
No Judiciário há juízes de todas as tendências, de todos os perfis. Há, nesse sentido, os laxistas, os intervencionistas, os minimalistas, os radicais, os liberais e os conservadores. Apesar disso, todos – ou, pelo menos, a grande maioria – têm consciência de que a prisão é a ultima ratio, uma medida extrema que só deve ser praticada no caso de real e indiscutível necessidade.
O que pretendo fixar mesmo, em face dessas reflexões, é que, por equivoco, por desinformação ou por má fé, as pessoas vão interpretando os fatos, tirando conclusões erradas, porque partem de premissas equivocadas. É mais ou menos como acontece no mundo político. Criam-se fatos, na tentativa de destruir os adversários ou a pretexto de negar uma grave acusação, e vão se repetindo, à exaustão, essas “verdades”, que terminam se incorporando na nossa consciência.
A verdade que precisa ser dita é que nunca é o valor do bem subtraído, isoladamente, que autoriza uma prisão preventiva. Tudo depende, portanto, do contexto, à luz do qual é possível até que uma pessoa seja presa sem que tenha sido encontrado nenhum bem jurídico em seu poder, como acontece, por exemplo, nos crimes tentados.
A prisão de qualquer pessoa e a sua manutenção não decorre da forma simplista como propõe o articulista; se partimos do princípio de que o valor da res furtiva é suficiente para definir uma prisão, doravante, quando o réu, nos crimes tentados, não lograsse êxito na subtração, estar-se-ia desautorizado a prendê-lo, em face da inexistência de prejuízo material. Daí pode-se inferir o equívoco do articulista, a merecer essa reflexão.
É verdade, sim, que nunca se prendeu tanto no Brasil. Não é menos verdade, no entanto, que nunca se cometeu tantos crimes. Não é menos verdade, ademais, que essa corrente contra as prisões, sobretudo as provisórias, tem um claro objetivo, que é esvaziar as prisões, em face do colapso do nosso sistema carcerário, que decorre da inércia do Executivo.
Da minha parte, vou continuar mantendo a prisão dos que tenham convivência perigosa em sociedade, sempre o fazendo com discernimento e com a compreensão de que não se devem solapar os direitos do réu, ainda que a pretexto de combater a violência.
O que não podemos é aceitar a crítica de que banalizamos as prisões provisórias, pois que elas são implementadas sempre à luz da sua real necessidade, como, aliás, anotei no artigo intitulado “A sociedade precisa de proteção”, publicado nesse jornal e disponibilizado no meu blog (joseluizalmeida.com)
Antes da critica que se faz ao excessivo número de prisões, o que se mostra mais premente é a construção de presídios, e que, no mesmo passo, se tratem os presos, definitivos ou provisórios, com dignidade e respeito, o mesmo respeito que temos para com as vitimas em particular e à sociedade em geral.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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