A PERIGOSA SENSAÇÃO DE QUE VALE A PENA TRANSGREDIR

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“[…]É de se compreender, com efeito, que sempre que as instâncias de controle atuam efetivamente, elas não só alcançam os transgressores, como desestimulam os que têm propensão para o ilícito, ante o receio de que possam ser alcançados por elas, o que não ocorre, infelizmente, no Brasil, já que somente uma parcela diminuta, quase insignificante dos transgressores, recebe a devida resposta penal; e quando a recebe, os criminosos sabem que o tempo de prisão é muito pequeno e que, logo, logo, estarão na rua para, mais uma vez, transgredirem a ordem, com grande probabilidade de não serem alcançados novamente pelas instâncias persecutórias[…]”

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Dou início a essas reflexões anotando que elas têm como ponto de partida a minha conclusão de que a lei penal se constitui um imperativo categórico (Kant), que deve ser aplicada como um fim em si mesmo, em face da necessidade de se castigar quem cometeu um delito, na perspectiva de sua utilidade, como medida de defesa social.
Nesse sentido, para cada delito deve(ria) corresponder, efetiva e eficazmente, à imposição de uma pena, como uma resposta ao sentimento de justiça, como uma retribuição mora, que, em face de sua exemplaridade, atuaria sobre o espírito sensível da população, afastando dela a atraente sensação de que é vantajosa a prática delituosa ( Miguel Reale Júnior), como se deu, por exemplo, como a política de Tolerância Zero, sobre a qual me deterei a seguir.
Pois bem. Antes da implantação da política de Tolerância Zero, nos EUA, baseada na Teoria das Janelas Quebradas, Nova York convivia com uma epidemia de crimes. Nesse ambiente, para ficar apenas num dos exemplos mais expressivos, a cidade arcava com prejuízos, só com passagens de metrô, anualmente, da ordem US$ 80,000, 000.00.
Com esteio na Broken Windows Theory, o prefeito de Nova York passou a combater essa situação, colocando policiais à paisana junto às catracas do metrô. Assim é que, quando um grupo pulava as catracas sem pagar, todos recebiam imediatamente voz de prisão. Em seguida, eram conduzidos à delegacia, identificados, revistados, fichados, intimados para depor e então liberados.
O simples fato de pular uma catraca de acesso ao metrô, para eximir-se do pagamento da passagem, não era motivo suficiente para manter alguém detido. Desobedecer a uma intimação para depor, entretanto, autorizava a prisão. Assim sendo, aquele que descumprisse a intimação para prestar depoimento, que precedia a soltura, em uma segunda detenção, agora sim, poderia ser preso e assim permanecer.
A população que pagava regularmente a sua passagem, começou a aplaudir cada vez que aconteciam essas conduções em massa. Daí, foi-se disseminando a compreensão de que valia a pena agir dentro da lei, valia a pena agir corretamente, pois, afinal, a Polícia estava agindo de acordo com a lei e garantindo o seu cumprimento.
Com essa simples medida e com a percepção das pessoas de que valia a pena agir de acordo com a lei – o que não ocorria antes, num ambiente de verdadeira anarquia -, o número de pessoas que pulavam as catracas diminuiu drasticamente, sob os aplausos das pessoas de bem.
Digno de registro é que uma parcela significativa dos que pulavam as catracas portava armas ou drogas, ou estava sendo procurada por crimes anteriores. É dizer, as pessoas que optavam pelo expediente de pular as catracas para não pagar as passagens, já tinham um histórico de transgressão; contudo, não pagar as passagens, para elas, acostumadas a outros desvios de conduta, era apenas mais um desvio, que, decerto, não sendo combatido com tenacidade, servia de estímulo às pessoas com propensão à transgressão.
O certo é que, com o combate efetivo e eficaz de uma pequena transgressão – pular as catracas do metrô para não pagar – as autoridades responsáveis pela política de Tolerância Zero fizeram com que criminosos refluíssem da prática de outras transgressões mais graves, como porte ilegal de armas de fogo e de drogas, assaltos e homicídios, tudo isso em face da percepção de que os órgãos de controle estavam agindo e, principalmente, em face da percepção de outras pessoas potencialmente perigosas de que não valia a pena transgredir.
Com o Tolerância Zero, compreendeu-se que o melhor mesmo é andar de acordo com a lei, a evidenciar que, com a ação efetiva e eficaz das instâncias de controle, desestimula-se a criminalidade, porque as pessoas acabam por se convencer de que o ideal mesmo é andar na linha, é fazer o correto, é não transgredir, não vilipendiar a ordem.
É de se compreender, com efeito, que sempre que as instâncias de controle atuam efetivamente, elas não só alcançam os transgressores, como desestimulam os que têm propensão para o ilícito, ante o receio de que possam ser alcançados por elas, o que não ocorre, infelizmente, no Brasil, já que somente uma parcela diminuta, quase insignificante dos transgressores, recebe a devida resposta penal; e quando a recebe, os criminosos sabem que o tempo de prisão é muito pequeno e que, logo, logo, estarão na rua para, mais uma vez, transgredirem a ordem, com grande probabilidade de não serem alcançados novamente pelas instâncias persecutórias.
De mais a mais, é de se reconhecer que o Brasil sofre de um mal crônico, que estimula a grande delinquência, que condiz com a seletividade do sistema, que só pune mesmo os miseráveis, deixando impune a quase totalidade dos criminosos de colarinho branco, para os quais prisão é apenas uma quimera, uma hipótese excepcional, que de tão excepcional só mesmo o azar os faria ser alcançados. Daí que, tenho dito, a persistir, como ocorre no Brasil, salvo uma ou outra exceção, o combate seletivo e discriminatório da criminalidade não mudará o rumo da nossa história, pois, nesse cenário, não há como se criar a necessária e profilática cultura de que fazer o correto é o melhor caminho.
A continuar as coisas como sempre foram, haverá sempre os que tendem a seguir transgredindo, estimulados pela impunidade, cientes, enfim, de que as instâncias de controle não os alcançarão, porque, afinal, essa é a regra, constatação que se pode inferir em face, por exemplo, das incontáveis fraudes aos processos licitatórios, das quais decorrem significativo desvio de dinheiro público, sem que os fraudadores sejam punidos exemplarmente.
E não o são porque a interpretação que se dá ao comando legal é sempre em benefício dos transgressores e em detrimento do interesse público, pois sempre haverá quem argumente que não houve prejuízo ao erário, em face da aprovação das contas do gestor, ou que, noutro viés, não restou provado o dolo específico, como se uma aprovação de contas tivesse o condão de provar a inexistência de mau uso dos recursos públicos, ou como se, no caso do dolo, algum transgressor viesse a juízo, num rasco de sinceridade, admitir que fraudou uma licitação com o fim específico de desviar dinheiro público.
É de sabença que todo e qualquer transgressor – e falo aqui dos que têm capacidade cognitiva – avalia os riscos e o sucesso de uma empreitada criminosa. Sopesado os prós e os contras, ele se decide pelo crime ou aborta a empreitada.
No Brasil, no entanto, a quase certeza da impunidade, a proverbial tolerância das instâncias de controle, a probabilidade de, ao fim e ao cabo, receber o criminoso uma pena diminuta, e a certeza, finalmente, de que em breve tempo estará em liberdade para novamente delinquir, funcionam, definitivamente, como um estimulo à prática de ilícito e fazem de nós uma nação marcadamente frouxa quando o assunto é combate à criminalidade, a incutir nas pessoas – dentre elas uma enormidade de gestores públicos – a sensação de que transgredir vale a pena.
É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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