A VERSÃO DO DIABO

Samuel Butler, escritor britânico, do século 19, disse, certa feita, que Deus escreveu todos os livros, mas ninguém se preocupou em ouvir a versão do diabo sobre o que realmente aconteceu. E assim, não foram poucos os que já tentaram decifrar o que efetivamente o escritor pretendeu dizer.

Os que circunscrevem a análise do seu pensamento sob o aspecto puramente religioso o fizeram apenas opondo Deus ao diabo, numa clara visão reducionista do seu pensamento.

Nesse sentido, há os que afirmam, por exemplo, que a frase traduz tão somente que Deus é a verdade, e o diabo, a mentira. Já outros concluem, simplesmente, à luz do pensamento do autor consolidado na frase, que o pensamento do diabo foi colocado de lado porque Deus não gosta dele. Além desses, há, também, os radicais que, por outro lado, concluem, tão somente, que ouvir a versão do diabo vai fazê-los queimar no inferno.

Como muitos já tiraram as suas conclusões sobre a pretensão do autor, penso que também posso apresentar as minhas, na certeza de que será apenas mais uma, no universo amplo e mais inteligente das que já foram apresentadas.

Pois bem. Cá do meu lado, entendo que uma das conclusões que se pode tirar do pensamento do autor é que ele pretendeu chamar a atenção para a necessidade de que, para se tirar uma conclusão, para se fazer um julgamento justo, devem ser ouvidos os dois lados, isto é, faz-se necessário que se estabeleça o contraditório, para que não julguemos as pessoas sem dar a elas a oportunidade de se contraporem à versão apresentada em seu desfavor.

É dizer: é preciso ter cuidado com os prejulgamentos, com os julgamentos precipitados, com as conclusões de chofre, pois, somente quando se oferece à parte contrária a possibilidade de se manifestar sobre tal ou qual assunto, é que se pode inferir, tirar uma conclusão tão justa quanto possível, pois, se assim é no processo, assim é na vida também. Logo, é preciso ter presente que uma coisa é o fato, ou seja, o que efetivamente ocorreu. Outra, bem diferente, é a versão, a impressão, a conclusão que outrem tira do fato, à luz de suas idiossincrasias.

Em face da inobservância dessas cautelas mínimas de convivência, é que, muitas vezes, somos julgados injustamente. E as pessoas, lamentável dizer, parecem ter uma especial capacidade de julgar antes de ouvir a parte contrária, antes de dar a ela o direito de sobre tal ou qual acusação se manifestar. E quando, finalmente, se dá ao imputado o direito de se contrapor às acusações, a malquerença, a má repercussão e a má impressão sobre a sua conduta já se instauraram. Aí, de nada adiante dar a ela o direito de se defender, pois já está definitivamente condenada pela opinião pública.

O bom seria mesmo, mas aí já seria esperar muito do ser humano, que ninguém se precipitasse diante de uma informação, de uma censura, que, muitas vezes, contata-se ter sido apenas mais uma leviandade, própria dos dias que estamos vivendo.

A constatação óbvia é que, num mundo povoado de halters, permeado de notícias falsas, onde se dissemina o ódio gratuitamente, mais do que nunca é preciso ouvir o outro lado. Daí a necessidade de checar, perscrutar, avaliar a informação, ver a credibilidade da fonte, uma vez que não se pode dar ouvidos e acreditar na primeira informação.

Tenho reafirmado essa prudência, sobretudo na condição de Ouvidor do Poder Judiciário do Maranhão. Ouço as reclamações para, como sói ocorrer, ter o cuidado de, antes de adiantar uma posição, ouvir o reclamado, estabelecendo assim o necessário contraditório. E como acontece regularmente, depois de ouvir a parte adversa, tirar uma conclusão diferente daquela que poderia ter alcançado se não tivesse tido a cautela de, antes, ouvir o reclamado. Dessa forma, na itinerância da Ouvidoria, em várias comarcas, tenho podido reafirmar a necessidade de checarem-se as informações.

Para usar a expressão do escritor antes mencionado: preciso, sim, ouvir também o diabo, antes de chegar a uma conclusão. É preciso, pois, receber com cautela a primeira informação. Eu, de meu lado, prudente, checo tudo; tanto no trabalho quanto na vida pessoal, pois não me aventuro, com efeito, a acreditar na primeira informação, ainda que ela pareça fidedigna, real, levando o incauto, muitas vezes, a enganar-se.

Não é o que temos testemunhado, no entanto. As pessoas, sem nenhum pudor, sem nenhum cuidado, não só acreditam na primeira versão, como tratam logo de levá-la adiante, as vezes por pura maldade, por espírito mesmo de emulação, sobretudo quando se trata de informação contra as pessoas eleitas como desafetas ou em relação às quais nutrem alguma antipatia.
Todavia, repito, é preciso ouvir a versão do diabo, estabelecer o necessário e prudente contraditório, se se pretende formar um juízo minimamente justo em face dessa ou daquela informação.

É isso.

 

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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