ABUSOS NA TRAVESSIA

Dou início a estas reflexões, como sempre faço, com a narrativa de um fato histórico, a partir do qual passo a esgrimir as minhas compreensões sobre determinados fatos da vida, um dos quais protagonizei no último final de semana, na travessia Cujupe-Ponta da Espera.

Os fragmentos abaixo foram apanhados na biografia de Tiradentes, magistralmente escrita por Lucas Figueiredo, na passagem que cuida da cobrança de impostos em face da produção do ouro em Minas Gerais. Os excertos são uma oportuna advertência quanto aos abusos a que todos nós somos submetidos, nas mais diversas esferas de atividades, nos mais diversos ambientes, em face dos mais diversos atores.

Aspas para o autor, na parte que interessa às reflexões:

“Um burocrata zeloso e astuto observador da cena mineira, o desembargador português José João Teixeira Coelho, tinha matado a charada: A falta do quinto do ouro [imposto sobre a produção do metal precioso] não procede dos extravios, como se entende; procede, sim, da decadência das minas, e esta decadência tem suas origens físicas. O magistrado ia adiante: fazer o diagnóstico errado, ou seja, insistir na repressão como forma de aumentar a arrecadação, traria consequências as mais perigosas e as mais funestas. Profético, Teixeira Coelho avisava: Os naturais de Minas e de toda a América são homens de espírito, e se a humanidade os pode fazer honestos e dóceis, o abuso do poder somente os fará criminosos”. (from “O Tiradentes: Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier” by Lucas Figueiredo).

Repito com o desembargador Teixeira Coelho, na parte que importa para o desenvolvimento do meu raciocínio: o abuso do poder pode perturbar o espírito, mesmo do homem mais dócil e honesto. Daí que, diante de um abuso, é preciso prudência e equilíbrio.

Agora, um fato protagonizado por mim, que justifica a ênfase que dou ao excerto.

Dia 12 de janeiro próximo passado eu retornava, com a minha família, de Cururupu, no ferry-boat das 14:30, operado pela Internacional Marítima.

No interior da embarcação, estacionei o veículo no local determinado pelos funcionários da referida empresa. Percebi, no entanto, que, estacionado o veículo, eu não tinha como abrir a porta para descer. Cuidei, então, de afastá-lo da lateral do Ferry, mas fui instado, pelo marinheiro, a não retirar o veículo do local que ele havia determinado, pois, se assim o fizesse, comprometeria o espaço destinado aos outros veículos.

Fiz ver a ele que somente afastando o veículo da lateral eu poderia abrir a porta e sair, mas ele me disse que o veículo tinha que ficar no local que ele determinou. E aduziu: o senhor teu direito à travessia porque comprou a passagem, mas o seu carro vai no local que eu determinar.

Eu insisti que, para sair do interior, tinha que deslocar o veículo. Começou um natural bate-boca: ele determinando que eu fizesse o que ele mandava, e eu insistindo para que respeitasse um espaço mínimo para eu sair do interior o veículo.

Nesse momento apareceram mais dois marinheiros, já exaltados e arrogantes. Um deles foi claro: tinha que ser como determinado. Um outro, menos exaltado, propôs que eu mudasse de lugar. Pensei em não fazê-lo, porém, constrangido com a arrogância dos marinheiros, aquiesci.

Senti medo. Eu estava com a minha família. Não queria causar-lhes sofrimento. Calei, olhei em volta e vi que não tinha a quem apelar. Decidi, então, obedecer à alternativa mais razoável: mudei de lugar, calado, sem dizer uma palavra. Mas o abuso, a arrogância e a prepotência com que fui tratado, claro, me agastaram.

Como o desembargador Teixeira Coelho, posso dizer: sou homem de espírito, sou honesto e sou dócil. Mas é certo também, como conclui o eminente magistrado, que o abuso de poder pode, sim, fazer nascer um criminoso, se ele não for capaz de se controlar.

Sei que se eu tivesse insistido para que respeitassem o meu direito de ter acesso ao exterior pela porta do motorista, como deve ser, eu poderia ser vítima de agressões – pelo menos verbais -, as quais, por óbvio, me fariam reagir. Mas preferi a prudência e recuei, pura e simplesmente.

Fiz o que eles determinaram os arrogantes marinheiros. Todavia, senti-me espezinhado, vilipendiado, desrespeitado. E, por isso, interiormente, me revoltei. Mas me contive, repito. É que, nessas situações não há muito o que fazer. Não há a quem recorrer.

Acho que fiz bem em não protagonizar uma reação que pudesse depois ser mal interpretada.

Tivesse eu reagido com a mesma arrogância, provavelmente seria manchete em jornais e blogs.

Os marinheiros? Bem, eles têm muito poder. E poder intimidatório, pois, confesso, senti pavor quando três deles partiram para cima do meu carro. Nessa hora, depois de contar até cem, fiz o que era prudente fazer: obedeci. O culpado de tudo, afinal, fui eu.

E por que assumo a culpa? Porque ousei reivindicar um elementar direito que ninguém respeita e que ninguém reclama, qual seja, entrar e sair do veículo com o mínimo de comodidade, direito que nos sonegam por pura ganância, pois para a empresa é mais lucrativo o espaço destinado aos veículos que o mínimo de comodidade aos passageiros, ainda que esse passageiro seja o condutor do veículo.

Logo, reivindicar um direito elementar, sob a ótica de quem se acostumou a impor a sua autoridade sem ser contrariado, é sempre uma afronta, a reclamar uma reação abusiva.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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