A seletividade do Direito Penal no Brasil sempre esteve presente em nossas vidas, como uma chaga difícil de ser expungida.
Antes, para ilustrar, um dado histórico, para reafirmar a seletividade do sistema penal no Brasil, ao que tudo indica, tende, depois de um período de alvíssaras (Lava Jato), a se perpetuar, em face de algumas posições adotadas nas mais diferentes esferas de poder e sobre as quais farei menção adiante.
Pois bem. No Brasil colônia, a seletividade da Justiça não era apenas escancarada, mas também prevista em lei. Assim sendo, em 1731 foi criada em Vila Rica (olhem só) uma Junta dedicada exclusivamente “aos“ delinquentes bastardos, carijós, mulatos e negros”. Trinta e oito anos depois, o governador de Minas Gerais baixou instruções determinando a prisão imediata dos “vadios e facinorosos” sem qualquer formalidade anterior. Já os “homens bons”, os “bem reputados” e as “pessoas bem morigeradas”, esses não deveriam ser incomodados com processos judiciais e muito menos com prisão, mesmo que por algum “caso acidental” tivessem cometido crimes. (from “O Tiradentes: Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier” by Lucas Figueiredo).
Em que difere o país atual do Brasil de antanho? No que se refere à seletividade do Direito Penal, estou convicto, muito pouco. É que por aqui a igualdade penal é mera formalidade, para ludibriar mesmo. Dessa forma, tudo está como sempre foi; prende-se muito e prende-se mal – preferencial, e prioritariamente, os miseráveis.
Aos miseráveis, reconheçamos, destinamos, quase com exclusividade e até com certa obsessão, as nossas forças, as nossas energias, sem o menor constrangimento, e com isso incutimos nos desavisados a falsa sensação de que estamos operando para combater a criminalidade.
Depois do período de esperança sobre o qual me reportei acima, é bom que não nos iludamos quanto à expectativa que criamos de combate linear criminalidade, de destinação da lei penal a todos indiscriminadamente.
É que há, sim, nos dias atuais, à vista de todos, um panorama que permite entrever que, doravante, será quase impossível – a não ser excepcionalmente – punir os tubarões da criminalidade. E os exemplos estão aí, à vista de todos: fim da prisão em segunda instância; lei de abuso de autoridade; limitação das deleções premiadas; restrições à prisão preventiva; juiz de garantias etc.
A prisão, tão somente depois de esgotadas as vias recursais, por exemplo – uma jaboticaba brasileira – inviabilizará inapelavelmente, a punição dos criminosos do andar de cima, ainda que se considere a relevância da recente decisão do STF, num caso isolado, de interrupção do prazo prescricional após a condenação em segunda instância.
Diante de tudo isso, é bom encarar a realidade: nenhum criminoso que disponha de condições financeiras será preso no Brasil, a não ser, repito, excepcionalmente, a persistir – como tudo indica persistirá – a necessidade de esgotamento das instâncias recursais.
A propósito da prisão em segunda instância, que tanto contribuiu nos anos pretéritos no combate aos crimes de colarinho branco, importa anotar, à guisa de ilustração, que nações do mundo civilizado a contempla – Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, França e Espanha. Daí a minha conclusão de que a sua implementação no Brasil, antes de se constituir um abespinhamento de garantias penais, como se tenta fazer crer, se constitui, sim, num excepcional instrumento a serviço do tratamento igualitário aos transgressores da ordem.
Noutro giro, no que condiz com o juiz das garantias, o que se pretende, da mesma forma, é dificultar o combate à criminalidade graúda, pois com ele cria-se uma esdrúxula instância que contribuirá para a postergação dos processos. Ademais, pondere-se que esse famigerado juiz das garantias jamais seria cogitado se as instâncias persecutórias não tivessem ousado atingir os criminosos do andar de cima, uma vez que a sua implementação, só não ver quem não quer, não passa mesmo de mais um antídoto a inviabilizar o tratamento igualitário de todos perante a lei penal.
Chamo a atenção para o fato de que a prova antes produzida pelo mesmo juiz a quem cabia julgar a causa penal, aos olhos dos mais destacados juristas, nunca tinha sido, antes da Lava Jato, alvo de preocupação de ninguém, até que, finalmente, chegou-se ao andar superior da criminalidade; e lá chegando, descobriu-se que o juiz que produz a prova com ela se contamina.
É bom que se diga, e aqui falo em face da experiência acumulada em mais de três décadas julgando na área criminal, que em face do mau julgador, do julgador venal, faccioso e descomprometido, nada se pode fazer. E não será com a figura do já famigerado juiz das garantias que se assegurará a sua imparcialidade, que já nasce comprometida em face do seu caráter.
O juiz das garantias, podem crer, é apenas mais um engodo, um instrumento por meio do qual obstáculos serão criados à persecução penal, em face dos grandes criminosos, cumprindo lembrar, a propósito, o que disse o Ministro aposentado Carlos Veloso, segundo o qual tratar-se-ia de uma excrescência surgida sabe Deus ou o diabo por quê.
Sob ataques inauditos, é bom que se diga à guisa de alerta, que a primeira instância, de onde ainda saem decisões corajosas de combate à corrupção, nunca mais será a mesma, sobretudo se for aprovada, como parece que será, a proibição a juízes de primeiro grau de decretarem medidas cautelares contra deputados e senadores, outra excrescência também gestada para perpetuar a impunidade da classe de cima.
No Brasil, infelizmente, ainda prepondera – e preponderará por muitos anos – a velha máxima de que quem pode mais chora menos.
É isso.