É PRECISO RESISTIR

Para ilustrar, um fato histórico.

Adolf Eichmann, como sabido, foi o principal responsável pelo transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. Ele estava radicado em Buenos Aires desde 1950, onde vivia com identidade falsa sob o nome Ricardo Klement.

Contra Eichmann, no entanto, havia um inquérito instaurado com provas de sua contribuição para o massacre do povo judeu. Ao lado disso, havia a determinação de David Ben-Gurion – primeiro chefe de governo de Israel, como sabido – de levar todos os nazistas a julgamento no território israelense. Com esse objetivo, Ben-Gurion encarregou a polícia secreta israelense (A Mossad) de sequestrar e levar Adolf EIchmann para ser julgado em Israel, o que efetivamente foi feito.

O julgamento de Adolf Eichmann, no entanto, em face de suas peculiaridades, recebeu inúmeras críticas, dentre elas a falta de legitimidade de se submeter alguém a julgamento, sendo conduzido à força ao Tribunal, contra as vigentes regas de Direito Internacional. Além da questão atinente à violação das normas, o governo argentino protestou formalmente pela violação de sua soberania.

Na Alemanda Ocidental, o chancelar Konrad Adenaur repreendeu publicamente Israel pelo sequestro, e os editores dos principais jornais do país exigiram que o criminoso nazista fosse extraditado e julgado por juízes e não por vingadores. Como sabido, o caso foi levado pela Argentina à Organização das Nações Unidas, cujo Conselho de Segurança condenou a ação israelense e recomendou que fosse feita a devida reparação.

Contudo, de nada adiantou, pois, apesar de lamentar a violação das leis argentinas, Ben-Gurion anunciou que Eichmann seria, sim, julgado em Israel, o que efetivamente ocorreu.

Mas o questionamento mais importante em face desse fato histórico, e que me levou a essas reflexões, foi a posição assumida por Hannah Arendt, judia de origem alemã, filósofa política e uma das pessoas mais influentes do século XX. Ela sustentou, com efeito, que o réu não era propriamente um monstro, mas um homem que se considerava mero cumpridor de ordens ou uma simples engrenagem da máquina estatal que produziu o Holocausto.

Na visão de Arendt, qualquer pessoa poderia agir como Eichmann, desde que se encontrasse imersa num ambiente destituído de questionamentos quanto à violação dos direitos humanos, pois nesse ambiente há uma inversão de valores, e a brutalidade passa a ser vista como algo normal. Nesse sentido, estaria consolidada a banalização do mal, uma espécie de letargia na qual a pessoa se exime da capacidade de pensar e de questionar tudo o que se passa em sua volta.

Na visão particular de Arendt sobre essa questão, a referida passividade pode produzir uma massa de seres incapazes de formular juízos críticos (Os Grandes Julgamentos da Historia, by José Roberto de Castro Neves), o que me leva a algumas reflexões, como anotei acima, em face da realidade que se descortina sob os meus olhos.

No caso brasileiro, por exemplo, em face da corrupção endêmica que tomou conta do país, o cidadão, diante desse cenário moral devastador, estaria autorizado a também se engajar nesse processo, impedido de exercer um juízo crítico e de se insurgir em face dele?

A engrenagem estatal brasileira que institucionalizou a corrupção impediria que as pessoas de bem resistissem as investidas dos corruptores, em face de, contaminadas pelo ambiente pernicioso, terem perdido o juízo crítico?

Num ambiente contaminado pelos desvios de conduta, todos que nele vivessem teriam, inapelavelmente, que a ele aderir, segundo se pode inferir – num juízo preliminar, claro -, em face das conclusões de Arendt?

Nas pugnas eleitorais, onde prevalece o uso de expediente pouco recomendáveis, para dizer o mínimo – compra de votos, falsas promessas, acordos espúrios etc –, todos estariam compelidos à adesão como um imperativo moral, impedidos, assim, de pensar, em face de um gravíssimo estado de letargia e degeneração moral?

Diante de tais questionamentos, eu, de meu lado, compreendo, inobstante, que a história está aí para provar em sentido diverso do que pensou Arendt, pois não foram poucos os que, mesmo sob pressão, não cederam à tentação de desviar a conduta, refutando, nesse afã, as práticas morais reprováveis.

 E os exemplos são vários, não comportando mencioná-los nesse espaço, bastando dizer, entrementes, para ilustrar, que no ambiente moral devastador revelado pela Lava-Jato, não foram poucos os que, tendo oportunidade, se abstiveram das práticas morais condenáveis

Posso dizer, com convicção, que não foram poucos – e não são poucos nos dias atuais – os brasileiros que, mesmo vivendo em ambientes impregnados de desvios morais, exerceram – e exercem –  um juízo crítico atilado, se recusando a aderir às práticas imorais que contaminam vários ambientes corporativos em nossa sociedade.

Portanto, diante dessa constatação, eu, cá do meu lado, sem pretender parecer arrogante e prepotente, me permito discordar, respeitosamente, da grande Arendt, por entender que se não formos capazes de resistir, mesmo em ambientes onde preponderam os desvios de conduta, não mudaremos o curso da história, pois, mesmo entre os contaminados pelo ambiente nazista, para ficar no exemplo que me levou a essas reflexões, houve os que emprestaram o seu dissenso em face do holocausto.

Nós não devemos, sob qualquer pretexto, emprestar a nossa aquiescência em face do errado. Errado é errado e ponto, e em face do erro, mesmo estando contaminado o ambiente, devemos reagir sempre, com a necessária obstinação.

Logo, é preciso, sim, resistir. E resistir com tenacidade, sob pena de banalizarmos o errado.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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