Ação Penal Pública
Acusado : F. W. A.V.
Vítima: H. N.
Vistos, etc.
Cuida-se de ação penal que move o Ministério Público contra F. W. A. V., vulgo “Chicão”, brasileiro, solteiro, filho de J. R. V. e M. O. A.V., residente e domiciliado à Rua 18, Qd.64, nº 08, Conjunto São Raimundo, nesta cidade, por incidência comportamental no artigo 214, c/c o artigo 14, II, do CP, em face de, no dia 21 de abril de 2002, ter tentado manter relação sexual com H. N., sem o seu consentimento.
A persecução criminal teve início mediante portaria. (fls.06).
Termo de representação às fls. 08.
Declaração de pobreza às fls.13.
Recebimento da denúncia às fls. 35.
Exame de conjunção carnal às fls. 75.
O acusado foi qualificado e interrogado às fls. 39/41.
Durante a instrução criminal foram ouvidas a H. N. (fls.69/70) e S. M. N. B. (fls.102/103).
Na fase de diligências, nada foi requerido pelo Ministério Público e pela defesa(fls.110V.).
Em alegações finais, o Ministério Público requer a ABSOLVIÇÃO do acusado.(fls.113/116).
A defesa, de seu lado, pediu a absolvição do acusado, por atipicidade do fato.(fls.121/125)
Relatados. Decido.
1. Nos autos sub examine o réu foi denunciado à alegação de ter tentado manter relação sexual com H. N., sem o seu consentimento, em razão de que teria malferido o preceito primário do artigo 213 do Código Penal.
2. A prova, nos autos sub examine, foi produzida nos dois momentos da persecutio criminis – sedes administrativa e judicial.
3. Na sede extrajudicial, colho de relevante o depoimento da ofendida, a qual informou que, no dia do fato, estando em sua residência dormindo, foi acordada pelo acusado, completamente nu, dizendo que estava apaixonado por ela.(fls.10)
3.1. Adiante a ofendida disse que o acusado, usando de força física, passou a beijá-la e acariciá-la, tentando lhe envolver para que mantivesse com ele relação sexual.(ibidem)
3.2 Noutro excerto, a ofendida afirmou que o acusado lhe ameaçou bater se não aquiescesse, tendo, no entanto, conseguido escapar do seu domínio, saindo de casa e pedindo socorro a sua irmã S. M.N. B..(ibidem)
4. Na mesma sede foi ouvida a testemunha J. R. P. L. F., o qual informou que, por volta das 2h00 do dia do fato, estava dormindo, com a irmã da vítima, S. M. N. B., quando ouviram os gritos de socorro da ofendida, dizendo um homem havia entrado em sua casa e tentado lhe estuprar.(fls.22)
5. O depoimento de J.R. P. L. F. foi roborado, em parte, pelo depoimento de S. M. N. B..
5.1 S. M. N. B. confirmou que, realmente, estava dormindo em companhia de J. R.P. L.F., quando ouviu os gritos da ofendida, batendo em sua porta.(fls.14)
5.2 S. M. N. B. aduziu que foi ver o que estava acontecendo, tendo sido informada pela vítima que havia um homem dentro de sua residência.(ibidem)
5.3 Adiante S. M. N. B. acrescentou que foram até a residência da ofendida, porém não encontraram ninguém.(ibidem)
5.4 Acrescentou a testemunha S. M. N. B. que o autor do fato foi encontrado na Rua 19, no bairro São Raimundo, tratando-se do acusado F. W. A. V.. (ibidem)
5.5 A testemunha S. M. N. B. ajuntou dizendo ter ouvido da ofendida que tinha sido estuprada.(ibidem)
6. Com esses dados colacionados em sede extrajudicial, o MINISTÉRIO PÚBLICO deflagrou a ação penal, imputando ao acusado a autoria do crime de estupro, na sua forma tentada.
7. Nesta sede, ao acusado foi dado ciência da imputação, tendo sido ouvido na forma da lei, em homenagem ao contraditório e à ampla defesa.
7.1 O acusado, acerca do fato, disse que, antes do fato, estivera na casa da ofendida, onde tem um bar, em companhia de “Negão” e outros amigos, cujos nomes não se recordava.(fls.39/41)
7.2 O acusado acrescentou que, depois que saiu do bar da ofendida, passou no bar do Miranda, onde tomou mais algumas cervejas, ainda em companhia de “Negão”. (ibidem)
7.3 Adiante, o acusado aduziu que, já estando em sua residência, constatou ter perdido a sua carteira porta-cédulas, tendo convidado “Negão” para, juntos, procurarem sua carteira, tendo retornado ao bar do Miranda, onde perdeu a noção de tudo, não se recordando, a partir daí, de mais nada. (ibidem)
7.4 Finalizando, o acusado disse que, depois de retomar os sentidos, foi para residência de sua mãe, no Pão de Açúcar e, lá chegando, foi informado por sua esposa que a polícia estava à sua procura.(ibidem)
8. Além do acusado, foi ouvida nesta sede a vítima.(fls. 69/70)
8.1 A ofendida, em depoimento diferente do que o que prestara em sede administrativa, afirmou que o acusado tentou tirar a sua calcinha, para, sem violência, tentar com ela manter relações sexuais.(fls.69)
8.2 A ofendida acrescentou que simulou que ia aceitar a relação sexual com o acusado, pedindo-lhe para ir ao banheiro no que o acusado consentiu.(ibidem)
8.3 Mais à frente, noutro excerto, a ofendida disse que aproveitou o ensejo de ir ao banheiro, para fugir do acusado, indo para casa de sua irmã, que fica no mesmo terreno de sua casa.(ibidem)
9. Além da ofendida, foi ouvida nesta sede a irmã da ofendida, S.M.N. B., a qual disse que, depois do pedido de socorro, foi à residência da ofendida, tendo, lá, encontrado o acusado, que demonstrou estar, em verdade, em socorro da ofendida, cumprindo anotar que, em sede administrativa, a mesma informante disse que na casa da vítima não havia ninguém. (fls.102)
10. Analisada a prova amealhada, passo à decisão.
11. Diante de tudo que restou apurado, diante de tantas contradições que se avolumam nos depoimentos da ofendida e de sua irmã, S. M. N. B., concluo que nos autos não há provas idôneas, sérias para condenar o acusado.
12. Até admito que o acusado tenha mantido relação sexual com a ofendida, todavia, em vista das contradições que se avolumam nos depoimentos da ofendida e da principal testemunha, S. M. N. B., posso afirmar, na mesma linha de entendimento da defesa e do MINISTÉRIO PÚBLICO, que a absolvição do acusado é medida que se impõe.
13. Releva anotar, só pelo prazer de argumentar, que a própria vítima, em sede judicial, afirmou que o acusado tentou manter com ela relação sexual, mas sem violência.(cf. fls.69)
13.1 É a própria vítima quem afirma, ademais, que, com a aquiescência do acusado, foi ao banheiro, para, de lá, empreender fuga, com o que sinaliza que, efetivamente, não estava submetida a nenhum constrangimento.
14. Convenhamos, se o acusado tentou manter relação sexual com a ofendida sem violência e se, ademais, concordou que ela fosse ao banheiro, resta claro que não está tipificado o crime de estupro, à falta de constrangimento mediante violência ou grave ameaça.
15. Todos sabemos que a ação tipificada no tipo penal em que se acha incurso o acusado é constranger, ou seja, forçar, compelir mediante violência (vis corporalis) ou grave ameaça (vis compulsiva), à conjunção carnal (cópula vagínica); sem constrangimento, sem violência física ou ameaça à conjunção carnal, não há crime de estupro.
16. A ofendida, é verdade, afirmou em sede administrativa que o acusado ameaçou bater-lhe para que com ele mantivesse conjunção carnal.
16.1 Ocorreu, nada obstante, que aqui, sede judicial, a ofendida apresentou outra versão, declinando, inclusive, não ter sofrido nenhuma violência.
17. A ofendida, sobreleva reafirmar, em face das provas consolidadas, para o mesmo fato apresentou versões diferentes, com o que desprestigia a sua palavra. De efeito. Na sede extrajudicial disse que o acusado lhe ameaçou bater. Aqui, sob todas as garantias, não confirmou essa versão.
17.1 Noutro fragmento do seu depoimento, colho que a ofendida, para a sua irmã, disse que o acusado manteve com ela conjunção carnal normal e que, depois, tentou praticar relação anal. Aqui, na sede das garantias constitucionais, a ofendida disse não ter certeza se houve penetração.
19. Todos sabemos que crimes desse jaez, quase sempre praticados às escondidas, a palavra da ofendida é a pedra de toque para definição da autoria. Mas a palavra da ofendida, claro, tem que ser verossímil, crível, coerente e em harmonia com as demais provas produzidas.
19.1 O depoimento da ofendida, pode-se ver, está permeado de contradições, razão pela qual não deve se levado em conta, para edição de um decreto de preceito sancionatório.
20. Do que infiro da prova produzida, o acusado esteve mesmo em companhia da ofendida. Acredito, até, que o acusado tenha mantido relação sexual com a ofendida. À relação sexual, nada obstante, não me parece que a vítima tenha emprestado o seu dissenso. É dizer, em síntese: a prova produzida não é esclarecedora e, sabe-se, emergindo dúvidas do acervo probatório, está-se autorizado a absolver o acusado, com a invocação da parêmia in dubio pro reo. Condenação, sabe-se, somente com prova plena da autoria do crime.
21. Se o fato existiu- e existiu, me parece – mas a prova não é capaz de precisar o que realmente ocorreu, o réu deve ser absolvido com fundamento no artigo 386, VI, do CPP.
22. A culpabilidade do acusado, sabe-se, deve ser provada legal e judicialmente. Quando argumento que a prova deve ser judicial, quero dizer que as provas válidas são somente as produzidas perante um juiz, com todas as garantias do devido processo legal (contraditório, ampla defesa, proibição de prova ilícita etc.).
23. Nessa linha de entendimento, devo anotar que nos autos sub examine não há provas que autorizem a condenação do acusado.
24. É verdade que há provas produzidas em ambiente extrajudicial a fazer supor que o acusado tenha, efetivamente, compelido a ofendida a com ele manter conjunção carnal. Tais provas, nada obstante, só tem alguma valia se, na fase judicial, aflorem dados que permitam a sua busca supletiva. É que as provas produzidas na fase policial, como regra, não valem em juízo, sem provas aqui produzidas a lhes emprestar conforto.
24. Admitir, para condenar, provas produzidas na fase administrativa, sem provas relevantes amealhados em sede judicial, traduzir-se-ia, não tenho dúvidas, numa hostilização abominável à Carta Política vigente.
25. Sem provas convincentes e seguras, sobreleva reafirmar, a presunção de inocência continua intacta.
26. As provas, para autorizarem a aplicação de uma pena, devem ultrapassar o umbral da dúvida razoável. Na dúvida, o juiz tem que absolver. Tem aplicação, às inteiras, o princípio in dubio pro reo.
27. A condenação exige certeza, quer do crime quer da autoria. Não basta a probabilidade desta ou daquela; certeza é sinônimo de evidente, de indiscutível. Havendo dúvida, a absolvição é medida que se impõe.
27.1 Condenação exige certeza absoluta, fundada em dados objetivos indiscutíveis, de caráter geral, que evidenciem o delito e a autoria, não bastando a alta probabilidade desta ou daquele; e não pode, deve-se convir, ser a certeza subjetiva, formada na consciência do julgador, sob pena de se transformar o princípio do livre convencimento em arbítrio.
28. Cabe ter presente que, se o espírito do magistrado é animado pelo incerteza, forçoso convir que outro caminho ele não terá senão o da absolvição, pois é máxima de processo penal que a dúvida, sentimento alternativo que inclui o sim e o não, sempre deve prevalecer em benefício do réu.
29. Admitindo-se, só pelo prazer de argumentar, que a prova da autoria se circunscrevesse ao apurado na fase administrativa, poder-se-ia, sim, editar um decreto de preceito condenatório, em face mesmo da palavra da ofendida.
29.1 Tem-se que convir, no entanto, que a instrução criminal, de lege lata, é contraditória, assegurada a ampla defesa, segundo prescreve a Carta Política em vigor. O contraditório e a ampla defesa, todos sabemos, só são observados, à evidência, no ambiente judicial.
30. Reitero, sem temer pela exaustão, que, nos autos sub examine, da prova colhida em sua fase judicial, não resulta a certeza de ter o acusado malferido o precptum iuris do artigo 213, pois que, a prova de maior relevância, a palavra da ofendida, apresentou-se claudicante, insegura e contraditória; imprestável, por isso, para legitimar a condenação do acusado.
30.1 Cediço, assim, que, sem a produção de provas sérias no ambiente judicial, no processo se avoluma, tão somente, a definir a culpabilidade do acusado, dados amealhados na fase pré-processual, onde, sabe-se, não se observam o contraditório e a ampla defesa, corolários do dwe process of law.
31. Segue-se do exposto, que, despontando nos autos com alguma relevância a palavra da ofendida, ratificada aos atropelos em juízo, não há possibilidade de editar-se um decreto de preceito sancionatório, sob pena de malferir-se o regramento constitucional previsto artigo 5º, LV, da Carta Política em vigor.
32. A instrução probatória pode ser definida como o conjunto de atos processuais que têm por objeto recolher dados, em razão das quais deve ser decidido o litígio colocado à intelecção do julgador. Sem a prática de tais autos, ou se eles se apresentam, como no caso presente, sem convicção, capengas, incertos, claudicantes e parciais, é curial compreender que o desfecho do litígio é, sem hesitação, a absolvição do acusado.
32.1 Nessa linha de argumentação, posso afirmar, na esteira de raciocínio desenvolvido pela defesa do acusado e pelo próprio representante do MINISTÉRIO PÚBLICO, que não despontam nos autos sub examine, dados que possibilitem a condenação do acusado, pela singela constatação de que, na fase judicial, nenhuma prova relevante e séria foi produzida.
33. Não é excesso reafirmar que o caderno extrajudicial, que serve de fundamento para a opinio delicti, não pode, com suas provas, constituir-se em base para edição de uma sentença definitiva, muito embora contenha, como sabido, elementos indiciários e circunstâncias complementares que podem esclarecer, reforçar ou consolidar a convicção do julgador. Convicção esta que só assoma em face de provas consolidadas em juízo, com a observância do contraditório e da ampla defesa.
34. O magistrado só pode formar a sua convicção, quando a pretensão das partes litigantes resulte embasada em dados tomados na fase judicial da persecução, sem o que não há como configurar-se a realidade dos fatos.
35. O objeto da prova, ou o thema probandum, é o fato, a circunstância, ou o acontecimento que deva ser demonstrado no processo – portanto, na segunda fase da persecutio -, para que o julgador possa, convictamente motivado, decidir acerca da quaestio iuris.
36. À vista do quadro que se descortina nos autos, não há outro caminho que não seja a absolvição do acusado, por imperativo legal.
36.1 Em conjuntura semelhante os Tribunais têm decidido, reiteradamente, que “a prova colhida no inquérito policial não serve, sabidamente, para dar respaldo a um decreto condenatório, à falta de garantia do contraditório”.
37. Devo grafar, ad argumentandum, que a regra da livre convicção não desvincula o julgador das provas dos autos: quod non est in actis non est in mundo.
38. As provas eventualmente produzidas na fase pré-processual, devem, sim, ser repetidas em juízo, salvo em se tratando de perícia técnica.
38.1 As provas produzidas no ambiente administrativo, sem conforto em provas produzidas em juízo, de nada valem, sabido que, nessa fase, as provas são produzidas sem publicidade, de maneira não contraditória e unilateral.
39. À luz do exposto, julgo improcedente a denúncia, para, de conseqüência, absolver o acusado F. W.A. V. o fazendo com espeque no inciso VI, do artigo 386, do Digesto de Processo Penal.
P.R.I.
Com o trânsito em julgado, arquivem-se, com a baixa em nossos registros.
Sem custas.
São Luís, 13 de agosto de 2007.
Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal
Encantado com o grau de respeito aos princípios constitucionais. Sou advogado e por vezes tenho me decepcionado com magistrados de primeiro grau, que emprestam credibilidade plena naquilo que foi colhido em sede de procedimento administrativo- policial – ferindo gravemente os direitos dos acusados.
Dias atrás me vi diante de uma acusação de tráfico, feita a uma cozinheira, e mesmo comprovando o ânimo do policial, contra quem ela havia representado dias antes, não consegui inocentá-la.
A impressão que passa é que, na dúvida, os juízes de primeiro grau preferem ficar do lado da polícia, até mesmo como uma garantia pessoal.
Isso é grave, mas acontece.
Parabens pela decisão justa. JUSTÍSSIMA!!!! Oxalá pudessemos tê-lo por aqui.
n.d.