Sentença absolutória. Homicídio culposo. Culpa exclusiva da vítima.

Processo nº 11717/2000

Ação Penal Pública

Acusado: E.. de J. A. P.

Vítima:  P. dos S. P.

Vistos, etc.

Cuida-se de ação penal que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra E. DE J. A. P., brasileiro, casado, filho de R. P. P. e B. A. P., residente na Rua Armando Vieira da Silva, s/n, bairro de Fátima, nesta cidade, por incidência comportamental no artigo 302, parágrafo único, III, do CTB, em face, no dia 22 de julho de 1999, por volta das 10h30min, quando trafegava na Av. Presidente Médice, atual Africanos, conduzindo o veículo VW gol, de placas 2606, no sentido Coroadinho/Sacavém, ter atropelado e matado o senhor P. DOS S., tendo, depois, deixado o local, sem prestar socorro à vítima.

A persecução criminal teve início mediante portaria. (fls.08)

Exame Cadavérico às fls. 12

Laudo Exame de Vistoria em Veículo às fls.25.

Recebimento da denúncia às fls. 44

O acusado foi qualificado e interrogado às fls.50/51.

Defesa prévia às fls.54.

Durante a instrução criminal foram ouvidas as testemunhas M. B. N. (fls. 95), J. A. B. (fls.96) e L. B. R.M. (fls.105).

O MINISTÉRIO PÚBLICO e a defesa, na fase de diligências nada requereram. (fls. 107v. e 116)

A representante do MINISTÉRIO PÚBLICO, em sede de alegações finais, pediu a absolvição do por insuficiência de provas.(fls. 118/121), no que foi secundada pela defesa.(fls.125/126).

Relatados. Decido.

1.Os autos sub examine albergam a pretensão do MINISTÉRIO PÚBLICO no sentido de infligir pena ao acusado E. DE J. A. P., por incidência comportamental no artigo 302, parágrafo único, do Código de Trânsito Brasileiro.

2Colho da prefacial que o acusado, no dia 22 de julho de 1999, teria atropelado o senhor P. DOS S. P., o qual, em face das lesões recebidas, faleceu.

3.A persecução criminal teve início mediante portaria. (fls. 98)

4.Na sede administrativa foram coligidos os depoimentos de M. B. N. (fls.14), L. B. R. M.(fls.15) e J. A. B. (fls. 41 e 46) e o interrogatório do então indiciado (fls.16 ).

5.Além dos depoimentos de testemunhas e do interrogatório do indiciado, foram acostados aos autos o EXAME CADAVÉRICO do ofendido (fls.12) e o LAUDO DE EXAME DE VISTORIA EM VEÍCULO. (fls. 25/29)

6.O acusado, em sede policial, admitiu ter atropelado a vítima, alegando, no entanto, ter sido surpreendido com a tentativa da vítima de voltar para o meio-fio da avenida, depois de ter tentado atravessá-la, dessa indecisão resultando o atropelamento. (fls.16)

7.Com os dados consolidados em sede administrativa, o MINISTÉRIO PÚBLICO propôs a presente ação penal contra E. DE J. A. P., imputando a ele o açoitamento ao artigo 302, parágrafo único, da Lei 9.503/97, postulando do Estado-Juiz a inflição de pena, na medida da culpabilidade do acusado.

8.A função jurisdicional do Estado, especificamente no que concerne à aplicação da lei ao caso concreto, é exercida pelo PODER JUDICIÁRIO, que é a quem cabe, todos sabemos, aplicar a lei a uma hipótese controvertida, mediante processo regular, com o que substituiu a vontade das partes.

9.O crime, é da sabença comum, é um fato que lesa direitos dos indivíduos e da sociedade. Cabe ao Estado, diante de uma violação de direito, reprimi-lo através do jus puniendi, afinal, é a Carta Política brasileira que dispõe que “ a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

9.1 Devo dizer, entretanto, que é necessário, para inflição de pena, que a lesão seja provada legal e judicialmente, sem o que não se pode punir à pessoa apontada como autora do fato, razão pela qual foi deflagrada a persecutio criminis in judicio.

10. Deflagrada a persecutio criminis pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, órgão oficial do Estado (art. 129, I, da CF)(ne procedeta judex ex officio e nemo judex sine actore), produziram-me provas, sob o pálio do contraditório e da ampla defesa, corolários do dwe processo f law.

11. O acusado, ouvido na sede judicial (audiatur et altera pars), a sede das franquias constitucionais, confessou a autoria do crime, aduzindo, no entanto, que a indecisão da vítima foi a causa do atropelamento.(fls.50/51)

11.1 Do depoimento do acusado recolho o seguinte excerto, verbis:

“…que encontrava-se dirigindo o veículo Gol, de placas HOX-2606, no sentido Coroadinho/Sacavém quando uma pessoa que se encontrava no meio fio atravessou a pista de rolamento e imediatamente voltou tentando atravessá-la e por mais que acionasse os feitos daquele veículo não foi possível evitar o acidente…”(fls.50)

11.2Adiante o acusado aduziu:

“…que a vítima P. dos S. P. nem chegou fazer a travessia da pista e observou um outro veículo que ia no mesmo sentido sendo que este em maior velocidade…” (ibidem)

11.3 Mais à frente, acrescentou:

“…que a vítima ao voltar foi atingida no lado direito do veículo Gol, junto do farol dianteiro, que a vítima foi pega nas pernas com o impacto subiu bateu no capo do carro, bateu no pára-brisa, sendo que sua cabeça bateu em uma parte de um ferro existente acima do para-brisa…(ibidem)

12.Além do acusado, foram ouvidas as testemunhas M. B. N.(fls.95), mulher da vítima, J. A. B. (fls. 96) e L. B. R. M. (fls.105).

13.Das testemunhas que depuseram em juízo apenas L. B. R. M. trouxe alguma informação relevante acerca do acidente.

13.1 A testemunha L. B. R.M. informou, com efeito, que percebeu que o ofendido cambaleava, provavelmente em face de bebida alcoólica e que anteviu que se tentasse atravessar a pista poderia ser atropelada.(fls.105)

14.Com esses dados, encerrou-se a produção probatória.

15.Posso inferir, agora, depois do exame percuciente da prova amealhada, que não há provas bastante a autorizar a edição de um decreto de preceito condenatório.

16.Vejo das provas amealhadas que a culpa pelo acidente foi exclusivamente da vítima, ao tentar atravessar uma avenida, para, depois, indecisa, tentar retornar ao meio-feio, quando, então foi atropelada pelo acusado, que não tinha condições de evitar o acidente.

16.1 Se as provas dos autos fazem concluir que a vítima foi a única culpada pelo acidente, não se pode, evidentemente, condenar o acusado.

17. É consabido que a primeira figura penal que passou a ser regulada pelo CÓDIGO DE TRÂNSITO foi o homicídio culposo, que consiste na eliminação da vida de uma pessoa por ato de outra, através de uma causa gerada por culpa, nas espécies imprudência, negligência ou imperícia.

17.1As modalidades de culpa podem ser traduzidas assim: a) na imprudência há a prática de ato perigoso; b) na negligência há falta de precaução ou cuidados; c) na imperícia, há uma omissão em aptidão técnica, teórica ou prática.

17.1.1 Aduzo que a imprudência é a prática de uma conduta arriscada ou perigosa e tem caráter comissivo. É a imprevisão ativa( culpa in faciendo ou in committendo). Conduta imprudente é aquela que se caracteriza pela intempestividade, precipitação, insensatez ou imoderação.

17.1.2 Negligência é a displicência no agir, a falta de precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar as cautelas necessárias, não o faz. É a imprecisão passiva, o desleixo, a inação (culpa in ommittendo). É não fazer o que deveria ter feito.

17.1.3 Imperícia é a falta de capacidade, despreparo ou insuficiência de conhecimentos técnicos para o exercício da arte, profissão ou ofício. Imperícia não se confunde com erro profissional. O erro profissional é um acidente escusável.

18.Os limites da norma imperativa encontram-se no poder de seu cumprimento pelo sujeito. Por isso, o dever de cuidado não pode ir além desses limites. A inevitabilidade do resultado exclui a própria tipicidade. Em outros termos, é indispensável que a inobservância do cuidado devido seja a causa do resultado tipificado como crime culposo.

19.A forma culposa de homicídio só restará tipificada, pois, se presentes estiverem os seguintes requisitos: a) comportamento humano voluntário; b) descumprimento de dever de cuidado objetivo;c) previsibilidade objetiva do resultado; e d) morte involuntária.

20.A par dessas considerações posso afirmar que ação do acusado não se amolda ao tipo penal do artigo 302 do CTB, tendo em vista que não descumpriu com o dever de cuidado objetivo, não tendo, pois, nenhuma responsabilidade pelo acidente ocorrido, atribuível exclusivamente à vítima.

21.O acusado, colho das provas, a considerar os conceitos acima emitidos e as provas consolidadas nos autos, não foi imprudente, não foi negligente e nem provocou o acidente por imperícia, disso resultando a inevitabilidade de sua absolvição.

22.Em se tratando de delito culposo, sabe-se, mister se faz a existência da prova plena e inconteste da imprudência, negligência ou imperícia, desprezando-se para tal presunções e deduções que não se arrimem em provas concretas e induvidosas.

23.A verdade é que o contexto probatório dos autos não evidencia que o acusado dispunha de meios para evitar o gravame, nem que desenvolvia velocidade incompatível com a via, não assomando, in casu sub examine, por isso, a presença de provas do alegado na peça incoativa.

24.Tivesse agido o acusado fora das expectativas impostas pelas normas de trânsito, aí, sim, haveria que se falar em responsabilidade criminal pelo homicídio culposo que se viu materializar nos autos.

25. No tráfego viário, é ressabido, tem vigência o princípio da confiança, a ser observado pelos motoristas para a adequada aplicação das normas de direção, em homenagem à segurança na circulação de veículos. Deve-se, pois, confiar que o condutor segue as regulamentações e regras de trânsito, a fim de delimitar a esfera do previsível.

25.1O acusado, não se pode olvidar, cumpria as regras de trânsito quando se deu a ocorrência.

25.2O acusado, quando da ocorrência, não foi imprudente, negligente e nem imperito, daí poder-se afirmar que observou o dever de cuidado objetivo, a desautorizar a edição de um decreto condenatório.

25.3 A propósito do afirmado acima, leia-se, com proveito as decisões abaixo, verbis:

APELAÇÃO – HOMICÍDIO CULPOSO – DELITO DE TRÂNSITO – RESPONSABILIDADE DO RÉU – AMPLO CONJUNTO PROBATÓRIO – CULPA CONCORRENTE DA VÍTIMA – ABSOLVIÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – SUSPENSÃO DA CARTEIRA DE HABILITAÇÃO – PENA CUMULATIVA – PROPORCIONALIDADE COM A PRIVATIVA DE LIBERDADE – A inobservância do cuidado objetivo no trânsito, quando exteriorizada através de uma conduta imprudente, imperita ou negligente, devidamente comprovada nos autos, autoriza o decreto condenatório, para se evitar impunidades. Tratando-se do crime previsto no art. 302 da Lei nº 9.503/97, a fixação do prazo de suspensão da habilitação para dirigir veículo deve ser diretamente proporcional à infração cometida quando não houver justificativa para a imposição de prazo maior.

25.4 No mesmo sentido:

ACIDENTE DE TRÂNSITO – ATROPELAMENTO DE CICLISTA – HOMICÍDIO CULPOSO – VELOCIDADE INCOMPATÍVEL COM A VIA – IMPRUDÊNCIA CARACTERIZADA – SUSPENSÃO DA HABILITAÇÃO PARA DIRIGIR – FIXAÇÃO – PROPORCIONALIDADE – Viola o dever de cuidado objetivo o condutor que, desenvolvendo velocidade incompatível com a permitida para a via, colhe ciclista que atravessava a pista. Na conformidade do previsto nos artigos 302, c/c 293, ambos do Código de Trânsito Brasileiro, a suspensão temporária da carteira nacional de habilitação é pena cumulativa com a pena privativa de liberdade e, tendo esta sido fixada no mínimo legal, o mesmo deve ocorrer com a suspensão, pois a sua fixação é regulada pelos mesmos parâmetros – art. 59, do Código Penal. Recurso parcialmente provido.

26. O acusado, ao que assoma dos autos, não violou, repito, o dever de cuidado objetivo, daí não poder-se afirmar que tenha agido com negligência, imprudência ou imperícia resultando dessa constatação a improcedência da acusação formulada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.

27. À luz do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a DENÚNCIA formulada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO contra E. DE J. A.P., para, de conseqüência, absolvê-lo com espeque no inciso IV,do artigo 386, do Digesto de Processo Penal.

P.R.I.

Custas, ex lege.

Com o trânsito em julgado desta decisão,arquivem-se os autos, com a baixa em nossos registros.

São Luis, 20 de agosto de 2007.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

Notas:

 Artigo 5º, XXXV

 TAMG – AP 0400866-6 – (87507) – Nova Lima – 2ª Cam.Mista – Relª Juíza Maria Celeste Porto – J. 07.10.2003

 TAMG – AP 0406780-5 – (87512) – Viçosa – 2ª Cam.Mista – Rel. Juiz Antônio Armando dos Anjos – J. 07.10.2003) JCP.59

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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