Estou acabando de ler o livro “Eu não sou cachorro, não”, de Paulo César de Araújo, mesmo autor do livro “Roberto Carlos em Detalhes”. No livro autor faz uma análise pormenorizada de fatos relevantes do período revolucionário e sua relação com as músicas ditas cafonas (hoje, bregas) que se faziam à época.
Num determinado momento do livro o autor faz remissão aos casos de tortura recém noticiados na imprensa. Num dos casos noticiados o autor informa que um jovem negro, Luciano Francisco Jorge, suspeito de ter participado de um assalto, foi torturado para confessar a sua participação no crime. O suspeito tomou choque na língua, foi pendurado, recebeu pancadas na cabeça e ferradas nas costas. Depois, deitado, enfiaram-lhe no ânus um pedaço de madeira em forma cilíndrica e envernizado, de 20 centímetros, melado de graxa.
Adiante o autor constata que essa tragédia que envolveu esse – e outros jovens – é uma prova eloqüente de que não se pode circunscrever os casos de tortura apenas ao período ditatorial. E obtempera adiante: talvez seja mais correto dizer que no período da ditadura houve a democratização do arbítrio. Todo mundo podia ser torturado, fosse branco ou preto, pobre ou rico, bonito ou feio, alto ou baixo, letrado ou iletrado.
Essa constatação do autor é absolutamente lúcida e verdadeira. Quem vive próximo ao mundo do crime como eu vivo, em face da minha função judicante, sabe que os casos de tortura ainda persistem. Infelizmente, pese noticiem esses fatos vários acusados – e algumas testetemunhas – não se tem notícias de providências eficazes e exemplares para coibir esse tipo de abuso.
Claro que muitas denúncias são falaciosas. Muitas delas os acusados fazem apenas para se defenderem, para minimizarem os efeitos da confissão extrajudicial. A contrario sensu pode-se dizer, no entanto, que muitas dessas denúncias são verdadeiras. E não é difícil perceber quando o réu denuncia para se defender e quando o faz porque efetivamente sofreu violência física.
De relevo que se consigne, na esteira da conclusão do autor mencionado, que as torturas são infligidas precipuamente em pessoas das classes menos favorecidas. Os torturadores elegeram os pobres, os cidadãos das periferias para torturar, como se fossem cidadãos de terceira categoria. Os torturadores agem como se os pobres não tivessem alma, como se a dor deles doesse menos.
Devo dizer, como já o fiz reiteradas vezes, que sou radicalmente contra qualquer tipo de violência – física ou psicológica. Entendo que os agentes públicos têm que ser capazes de buscar a verdade, sem que tenha que torturar, de arrancar a fórceps uma confissão. A confissão alcançada dessa forma de nada adiante, não pode servir de base para uma condenação. E é inconstitucional, demais.
Compreendo, noutro giro de avaliação, que não se deve sequer insistir numa confissão, depois que o acusado negou a autoria do crime. Insistir, preparar armadilhas para o acusado confessar o crime por via obliqua também não é correto. Um interrogatório bem conduzido alcança, muitas vezes, a verdade, sem que se faça necessário colocar o acusado contra a parede, sem que se faça necessário tortura-lo – psicológica ou fisicamente.
Mas se, apesar de tudo, o acusado não confessa o crime, não se pode deslembrar que há outras provas a ser buscadas, através das quais pode-se, sim, chegar à autoria do crime.
O pior caminho é a tortura, o maltrato físico ou psicológico. Torturar é a mais legítima e indiscutível prova de incompetência.