Reminiscência – I

O exercício do Poder, ainda que seja apenas um pequeno fragmento, determina, muitas vezes, o nosso destino, o nosso modo de ser, de pensar e de agir. 

O exercício do poder seleciona, até, as nossas “amizades”. O exercício do poder nos leva, muitas vezes, a navegar em águas revoltas.

Lembro, nesse sentido, que quando assumi a comarca de Presidente Dutra – minha primeira e mais difícil comarca – , fui obrigado a conviver com pessoas com as quais não nutria a mínima simpatia, para, no mesmo passo, afastar-me de pessoas pelas quais nutria um misto de admiração e respeito.

 

Ossos do ofício, dirão. Cruzes que carreguei – e carrego – direi! Nunca mais tive o direito de escolher as pessoas com as quais desejo estabelecer relações.

A par dessa constatação, vou narrar um história que a mim me parece exemplar, para demonstrar quão pesada é a cruz que carrega um magistrado que tenha o mínimo de responsabilidade e respeito pelo seu nome e pelo cargo que exerce.

Pois bem. Ao assumir a comarca de Presidente Dutra, 340 km da capital do estado, no já distante ano de 1986, o prefeito do município era o senhor Remi Soares, pessoa de fino trato e que me pareceu, logo no primeiro contato, diferenciada dos políticos que havia conhecido antes.

Por essas coincidências que não sabemos explicar, Remi tinha sido colega de faculdade de um irmão meu. Decorreu disso que, no nosso primeiro encontro – não sei onde e em quais circunstâncias, sinceramente – , descobrimos esse ponto em comum, ou seja, nos gostávamos de uma mesma pessoa.

Diante dessa descoberta e da simpatia que nutri, no primeiro contato, por Remi Soares, não foi difícil descobrirmos outros pontos em comum.

Mas a sua condição de prefeito e a minha, de juiz, era óbice intransponível para estabelecermos uma relação de amizade, que, sinceramente direi,acho inconveniente entre um juiz e um alcaide municipal, por razões que transcendem à nossa compreensão.

Conquanto gostasse e admirasse Remi Soares, durante os quase quatro anos que fui juiz em Presidente Dutra, ele esteve duas vezes na minha residência: uma, no aniversário do meu filho, quando ainda era prefeito; outra, no meu aniversário, já ex-alcaide.

Por prudência – excessiva prudência, quiçá – nunca estive na residência de Remi. Nem quando ele era prefeito, nem quando deixou de sê-lo. Aliás, Remi Soares faleceu e eu nunca fui a sua casa, nem em Presidente Dutra e nem em São Luis.

A minha posição de magistrado e a sua condição de alcaide municipal – e mesmo de ex-prefeito – nos impediram de estabelecer uma relação de amizade.

Mas eu gostava de Remi. Minha mulher gostava de Remi. Eu admirava o comportamento dele como prefeito, como pai de família e como cidadão. E sentia que ele e sua esposa nutriam carinho por mim e pela minha família. Contudo não podíamos ser amigos. O poder, pelo qual tanto lutamos, nos impediu, inclemente, de ser amigos.

Todas as pessoas com as quais dialoguei em Presidente Dutra, de todos os matizes, apontavam Remi como um prefeito diferenciado. Contudo, apesar de nutrir por ele, repito, uma forte simpatia, pelo que transparecia para mim, como ser humano e como homem público, nunca pudemos estar próximos.

Eu e minha mulher nos limitávamos a gostar de Remi e de sua esposa Irene, mas à distância. Ele, creio, se limitava a gostar de mim, mas também à distância. Não podia ser de outra forma.

Remi faleceu, dramaticamente, num desastre de automóvel. Quando tive a notícia, só lamentei. Os nossos caminhos já não mais se cruzavam. Eu já estava em São Luis, depois de uma breve passagem por Imperatriz. Ele, ao que me recorde, continuava fazendo política em Presidente Dutra.

Remi faleceu sem que eu tivesse a oportunidade de conviver com ele mais de perto, porque, infelizmente, a minha posição de magistrado e a dele, de alcaide municipal, se constituíram em impedimentos insuperáveis, em óbices intransponíveis.

São os ossos do ofício. Talvez, se eu não fosse magistrado e/ou se ele não fosse prefeito municipal, tivéssemos sido dois grandes amigos. Mas o poder que ambos exercíamos nos impossibilitou essa convivência.

Remi seguiu o seu curso, o seu destino, até falecer. Eu, da mesma forma, também segui a minha trilha.

Nos dias atuais, com os cabelos encanecidos pelo labor diário, pela preocupação que o cargo me impõe, impiedosamente, vou envelhecendo no cargo, lutando contra as dificuldades para exercer bem o meu mister e para superar as incompreensões.

Remi se foi num acidente trágico. Ele não merecia esse triste fim. Dele guardo a lembrança de um político que me parecia diferente dos muitos que estão por aí.

Mas, agora, é tarde. Exercer o poder, ainda que seja pequeno, nos impõe sacrifícios. Um dos sacrifícios que o poder nos impõe e o de, muitas vezes, não ter o direito de escolher os amigos.

O poder, muitas vezes, nos afasta das pessoas que queremos bem. Essa é uma triste realidade.

O poder, outras vezes, nos aproxima de pessoas que abominamos, das quais, no fundo, queríamos mesmo era distância.

Como é difícil exercer o poder. Mínimo que seja o naco de poder, ele nos impõe sacrifícios; sacrifícios que, às vezes, pensamos não merecer.

Mas não poder conviver com as pessoas que admiramos em face do poder que exercemos é apenas uma das muitas dificuldades pelas quais passa quem exerce o poder com responsabilidade.

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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