A justiça criminal que somos obrigados a (não) fazer.

Devo dizer, preliminarmente, para que não se dê a esse artigo o elastério que não tem, que nele expendo apenas conclusões que decorrem da minha experiência enquanto magistrado judicando numa vara criminal. Não falo, portanto, em nome de nenhum colega, muitos dos quais podem, até, discordar das minhas reflexões.

Isto posto, passo, rapidamente, ao tema escolhido para reflexão.

Pois bem. Por cautela, costumo ter às mãos os dados estatísticos da minha produtividade. Sei lá! Pode ser que, um dia, resolvam cobrá-la. Por isso, faço as minhas anotações e guardo-as com carinho e desvelo. Sobre elas, vez por outra, me debruço para refletir. Raras são as vezes em que não sou tomado de incontido espanto e preocupação.

Vou tentar explicar em que consiste a minha estupefação.

Nos últimos 60(sessenta) dias úteis, por exemplo, ouvi 320(trezentas e vinte) pessoas, entre réus e testemunhas. Essa marca, que para muitos seria motivo de regalo, para mim é motivo de tristeza e decepção com a justiça criminal que faça, ou melhor, que sou obrigado a fazer.

É preciso convir, sem temer pelo que se possa pensar em face da minha franqueza, que o número de pessoas ouvidas em tão pouco espaço de tempo, me impossibilita de aprofundar, como se espera de um julgador, o exame das questões postas à minha intelecção.

A verdade, a mais pura verdade, é que as audiências nas varas criminais, para que se possa atender a demanda, são realizadas, quase sempre, às pressas, sem exame aprofundado das questões fáticas, sem que se tenha tempo de extrair das testemunhas o que possa ser proveitoso para se alcançar a tão buscada – e quase nunca encontrada – verdade material.

No dia-a-dia, o que se constata é que, ao tempo em que se toma um depoimento, há outras tantas testemunhas, réus e advogados esperando, avidamente, pelo momento de entrarem na sala de audiências. Na pressa, premido pelo tempo, acossado pela demanda, as testemunhas e os acusados não são ouvidos com o necessário esmero, com o necessário vagar, com a indispensável detença.

Nesse contexto, o juiz, como um operário que tem que prestar contas da produtividade no final do dia ao seu patrão – no caso do juiz o patrão é, somente – pasme! -, à sua consciência – , trabalha celeremente, freneticamente, açodadamente, agitadamente, sem tempo para refletir, com o pensamento impregnado de preocupação pelos afazeres que se avolumam.

O juiz, assim agindo, assim trabalhando, não se dá conta, muitas vezes, de que quanto mais produz menos se aproxima da almejada – e ilusória – verdade real ou material.

Para mim, e aqui assumo a minha culpa, o juiz que ouve trezentas e vinte pessoas em sessenta dias (e há quem ouça mais, registro) para alcançar uma produtividade respeitável, para cumprir os prazos processuais, coagido, premido pelas circunstâncias e pelas cobranças que a sociedade faz, presta um grande serviço às estatísticas e um péssimo serviço à comunidade em geral e aos acusados em particular.

Dimana de tudo isso, ou seja, dessa produtividade desenfreada, dessa volúpia em busca do cumprimento dos prazos processuais, dessa falta de detença no exame das questões fáticas, algo de especial gravidade, que, ao que parece, não é objeto de preocupação dos que se embevecem com as estatísticas: o magistrado, não raro, não tem condições de viver o processo com a intensidade que dele se espera.

O corre-corre sem limite, o açodamento na coleta das provas, a pressa na produção do patrimônio probatório, nos compele a julgar, muitas vezes, sem esmero, sem o cuidado devido, sem examinar percucientemente as questões jurídicas e fáticas submetidas a exame.

Repito que esse quadro, ou seja, essa produtividade desembestada, em vez de me fazer orgulhoso, antes me deprime. Eu não gosto de decidir sem noção de quem seja, por exemplo, o acusado. Todavia, sou obrigado a fazê-lo, pois tenho que cumprir os prazos processuais, sobretudo quando os acusados estão presos. E o cumprimento dos prazos, para não ter que responder pela omissão, me impulsiona para o açodamento, para a decisão, muitas vezes, distante daquilo que considero ideal.

Nessa linha de raciocínio, releva anotar que em poucos, raros processos-crime o magistrado consegue, por exemplo, se lembrar razoavelmente das pessoas envolvidas no conflito. Pelo menos comigo, que não tenha uma inteligência privilegiada, isso acontece até com certa freqüência, dada a quantidade de processos que tenho que instruir e julgar.

A pressa de produzir, a agenda esgarçada, o tempo diminuto reservada para cada depoimento, o corre-corre do dia-a-dia, os incontáveis pedidos formulados nos mais diversos processos – relaxamente de prisão, liberdade provisória, revogação de prisão preventiva, decreto de prisão preventiva, restituição de bens, insanidade mental, quebra de sigilo bancário e telefônico, dentre outros – , as inúmeras sentenças a prolatar, as audiências formais e informais – com advogados e, muitas vezes, com as partes envolvidas, direta ou indiretamente no conflito, -, os habeas corpus para informar, tudo isso, enfim, nos transforma em máquinas de decidir, sem emoção, sem sentimento, sem viver intensamente o processo, condicionado a apresentar o máxime de produtividade, por razões que nem mesmo sabemos, pois que ela só serve mesmo para o deleite pessoal do julgador – e nada, nada mais!

O juiz, na minha avaliação, não pode agir – mas, às vezes, age – como agem os animais irracionais. O juiz não pode agir – mas age, muitas vezes – como se não tivesse sangue nas veias. O juiz não pode ser apenas uma máquina produtora de decisões, uma máquina alimentadora de dados estatísticos, afinal nós lidamos com bens de especial valor das pessoas envolvidas no conflito.

Compreendo que para bem julgar é preciso viver intensamente o problema posto sob as mãos e inteligência. Se assim não for – e não é, muitas vezes – o juiz pode até se orgulhar de ser isento, mas isenção, nos moldes aqui mensurados, se confunde – e pode até ser mesmo – com indiferença, eqüidistância, com falta de sensibilidade. E nós, julgadores, sobreleva consignar, não podemos ser insensíveis, descurados, distantes, frios. Frieza e insensibilidade são apanágios dos canalhas, dos calhordas e o juiz não pode ser nem uma coisa e nem outra – juiz tem que ser juiz, só juiz, nada mais que juiz.

Os juizes não podem ser apenas máquinas produtoras de dados estatísticos para impressionar, para ser exibidos, pois quanto mais produzimos, quanto mais alimentamos as estatísticas, mais nos afastamos do ideal de justiça, mais descuramos do senso de justiça que deve permear toda a nossa atividade judicante.

Os juízes criminais – e haverá quem discorde – ao mesmo tempo que procuram ser isentos no exame das questões, se tornam, sem que assim o desejem, indiferentes e eqüidistantes dessas mesmas questões, pela singela razão de que não podem se dedicar como deveriam e gostariam, pela necessidade que têm de produzir – produzir e produzir – e alimentar – alimentar e alimentar -, os mapas estatísticos, tão ao gosto dos insensíveis e descomprometidos.

Na minha avaliação, o juiz não deve ser avaliado pela quantidade de sentenças e despachos que produz. O juiz deve ser avaliado pela qualidade do seu trabalho, pela retidão de suas decisões, pela isenção que anima toda a sua capacidade laboral.

Será, francamente, que quem toma o depoimento de 320 pessoas, em 60(sessenta) dias de trabalho, tem condições de, de posse do processo para julgar, se recordar, por exemplo, qual era o ânimo do acusado ao tempo em que foi interrogado? Como se recordar, por exemplo, se o acusado, diante da ciência dos fatos, mostrou-se arrependido, indiferente, arrogante, preocupado ou tenso?

Essas respostas, a meu ver, são impossíveis de ser dadas quando se trabalha apenas com dados estatísticos, os quais, não raro, só servem mesmo para impressionar – nada, nada mais que isso!

Por pior que seja o acusado, ele não pode ser apenas um dado estatístico, afinal, por mais grave que tenha sido o crime que praticou, não pode merecer, como tem merecido, o desprezo do Estado, por seus órgãos persecutórios; desprezo que começa na fase periférica da persecução e que se prolonga até o trânsito em julgada da decisão – condenatória ou não.

Para mim – e sei que há os que discordam dessa posição – o magistrado, para bem decidir, não pode trabalhar com um olho no processo e o outro nas estatísticas. O magistrado, para bem decidir, tem que ter sob seu comando um número mínimo de processo – quiçá duzentos – , para que possa conhecê-los mais ou menos. O magistrado, para bem instruir um processo, não deveria instruir mais de um processo ao dia. Tudo o mais é excesso. Mas esse é o quadro que se descortina sob os nossos olhos, ditando a nossa conduta, o nosso comportamento, a nossa maneira de julgar.

É um grave equívoco imaginar que o magistrado, sem tempo para se preparar para uma audiência, sem tempo para ler, antes, o processo sob julgamento, fará um bom trabalho persecutório. Ele pode, assim agindo, quando muito, supor que fez justiça.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “A justiça criminal que somos obrigados a (não) fazer.”

  1. Prezado Dr. Luiz,

    De fato, após perquirir a postagem, verifico ser uma guerra hercúlea, diária, sopesar tantos fatores que gravitam em torno da atividade judicante. Num panorama social carente de políticas públicas eficazes que possibilitem efetivamente a diminuição da violência e criminalidade, a responsabilidade recai exclusivamente sobre juiz, que se depara com o angustiante dilema: inexistência de pauta livre para “encaixar” os réus presos (que se multiplicam diariamente por todo o país), sendo que estes possuem o direito constitucional da presunção de inocência, razoável duração do processo e celeridade de sua tramitação.
    O que fazer frente à quantidade de processos conclusos? Privilegiar a celeridade em detrimento da qualidade da prestação jurisdicional? Como compatibilizar estes fatores de difícil simbiose?
    Faz-se imperioso que a sociedade confira atenção especial sobre estas indagações, haja vista que lato sensu, somos todos, destinatários em potencial da prestação jurisdicional.
    A responsabilidade por todas as carências públicas não podem e não devem continuar recaindo, exclusivamente, sobre “os ombros” do Poder Judiciário!
    Ao senhor Dr. Luiz, desejo que continue imbuído no seu propósito de exercer a atividade judicante com o máximo de empenho e comprometimento: a sociedade carece da multiplicação de exemplos como o seu, pois como dizia o sábio jurista Calamandrei“Os juízes são como membros de uma ordem religiosa: é preciso que cada um deles seja um exemplo de virtude, se não quiser que os crentes percam a fé”. (CALAMANDREI, Piero. “Eles, os Juízes, vistos por um advogado”. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2000).

    Jussanã Dantas

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