A justiça criminal que somos obrigados a (não)fazer – Capítulo Final

“É necessário que se reafirme que um juiz garantista, num sistema igualmente garantista, não pode agir como, muitas vezes, agem os agentes políticos que não têm compromisso com os direitos e as prerrogativas dos cidadãos; esses, sim, verdadeiros marginais incrustados no serviço público.”
Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

 

Da descrença no Poder Judiciário, especificamente na área que cuida das questões criminais, fruto da nossa incapacidade de atender às expectativas do cidadão, resultam conclusões equivocadas e desleais, as quais, todavia, estão sedimentadas no inconsciente popular, para nos apequenar enquanto instância formal de combate à criminalidade. Dentre essas conclusões avulta de importância, para reflexão, pelo que contém de nociva, a mais famigerada delas, traduzida no falso apotegma segundo o qual a polícia prende e a justiça solta.

Quem faz apologia dessa e de outras máximas igualmente injustas, nos colocando muito mal diante da opinião pública, não sabe, não imagina o quão complicado, o quão difícil é concluir uma instrução criminal, a nos compelir, até com certa freqüência, a colocar em liberdade quem, à luz da nossa compreensão, do nosso sentimento de justiça, deveria ser mantido preso.

Quem se esteia nessa equivocada avaliação para atirar farpas nos juízes criminais, certamente pensa que nós, magistrados, não temos sensibilidade, que nos regozijamos com a liberdade de um meliante perigoso, que somos parasitas do estado, que não temos compromisso com a ordem pública, que não somos pais de família e que não tememos pela nossa própria segurança, como se vivêssemos numa redoma ou numa ilha, isolados do mundo e cercados de seguranças por todos os lados.

Quem faz esse tipo de afirmação, não imagina o quanto sacrificamos a nossa vida pessoal para concluir uma instrução a tempo e hora, de modo a não permitir a ocorrência dos excessos de prazo que autorizam o relaxamento da prisão de marginais perigosos.

É necessário que se reafirme que um juiz garantista, num sistema igualmente garantista, não pode agir como, muitas vezes, agem os agentes políticos que não têm compromisso com os direitos e as prerrogativas dos cidadãos; esses, sim, verdadeiros marginais incrustados no serviço público.

Um juiz garantista, importa realçar, não pode agir como agem os meliantes, ou seja, não pode hostilizar a lei chancelando uma prisão ilegal, ainda que seja incompreendido por isso, ainda que lhes atirem pedras, afinal, juiz não é um marginal que age sob o manto de uma toga e ao sabor de suas idiossincrasias, convindo consignar, nessa linha de pensar, que, para mim, não há marginal mais perigoso que o marginal togado.

Tenho dito que quando um magistrado decide-se pela reparação de uma prisão ilegal – e ainda que o favorecido seja o mais perigoso dos facínoras, o mais repugnante dos biltres, ainda que se trate de um réu confesso, ainda que sua decisão vá de encontro aos anseios da sociedade – ele, magistrado, está dando mostras aos jurisdicionados que não negocia, que não tripudia, que não faz concessões e mesuras com o direito alheio. E é isso o que se espera de um magistrado que exerça o cargo com responsabilidade, ainda que, assim agindo, forneça lenha para atiçar as chamas da fogueira na qual possa estar imolando a sua reputação aos olhos dos desavisados.

O magistrado não é dono do seu tempo e nem a ele é dado o direito de legislar e decidir ao sabor das circunstâncias, ao sabor de suas conveniências, de suas idiossincrasias. Não deve agir o magistrado para parecer bonzinho perante a sociedade, fazendo gentileza, fazendo cortesia com o direito alheio.

O magistrado tem rumo, tem norte e tem prumo. Pelo menos é assim que imagino deve ser um magistrado, conquanto se tenha noticia, aqui e acolá, daqueles cujos rumos e prumos o conduzem ao mundo da bandalha e da esperteza.

O magistrado não pode, diante de uma lesão ou ameaça de lesão a direito, quedar-se inerte, sob o receio do que possam pensar os que querem decisões a ferro e fogo, sob os auspícios da odiosa e extemporânea lei de talião.

É preciso que se saiba que, tanto quanto qualquer cidadão comum, o magistrado também se incomoda – e é, muitas vezes, vítima dela – com a onda de violência que permeia a vida em sociedade.

Malgrado o exposto, quando temos que decidir acerca da liberdade, da absolvição ou condenação de um meliante, nós não podemos agir como qualquer pessoa do povo. Nessa hora, é necessário deixar os sentimentos de lado para decidir de forma justa e equilibrada.

De tudo o que expus nas três reflexões que se encerram agora, o que auguro é que o leitor/jurisdicionado compreenda que nós, magistrados criminais, no exercício de nossas atividades, premidos pela falta de tempo e, muitas vezes, pela falta de condições de trabalho, fazemos a Justiça criminal que podemos fazer, que está ao nosso alcance, com força de vontade, com pertinácia, superando, com denodo e sofreguidão, as nossas limitações intelectuais e materiais.

De tudo o que expus desejo, ademais, que se compreenda que se os processos se acumulam, se não somos capazes de atender, como deveríamos, às expectativas do cidadão, se somos obrigados a colocar em liberdade um meliante, não o fazemos por descaso.

De tudo que expus desejo que se compreenda, outrossim, que não somos máquinas produtoras de decisões e que, enquanto seres humanos, falíveis e frágeis como qualquer outro – ainda que muitos, em face do poder que têm, se imaginem semideuses, dominados, impregnados por uma vaidade mórbida -, nós também somos vítimas do funcionamento capenga das nossas instituições.

De tudo que expus desejo, finalmente, que se compreenda que a justiça criminal que (não) fazemos é tudo o que não gostaríamos de produzir.

As intempéries, as dificuldades, os reveses, os erros cometidos, as decisões equivocadas, o mau conceito, tudo isso, enfim, ocorre para lembrar aos mortais – e, também, aos magistrados que se julgam semideuses, em face da toga que lhes cobrem os ombros e, muitas vezes, a consciência -, que, como qualquer outro ser humano, ainda que, muitas vezes, se imagine acima do bem e do mal, os meritíssimos também são falíveis e, também, vítimas da inoperância dos órgãos responsáveis pela persecução criminal.

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “A justiça criminal que somos obrigados a (não)fazer – Capítulo Final”

  1. Brilhante reflexão Dr. José Luiz! Quem dera tivéssemos mais juízes com este sentimento de JUSTIÇA. Sou leitor assíduo do Blog e o parabenizo pelo excelente nível das postagens ao mesmo tempo que desejo melhoras ao senhor, e saúde que é o que todos nós precisamos para desempenhar bem nossas tarefas diárias,
    abraços,
    João Paulo – estudante de Direito – 9º Período UFMA.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.