Sentença condenatória. Peculato. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito.

A finalidade do Estado, sabe-se, é a consecução do bem comum. É a sua razão teleológica. Para consecução desse mister, faz-se necessário ditar normas de condutas, necessárias à harmonia e equilíbrio sociais. É que a vida em sociedade, que é a inclinação natural do homem, está a reclamar um complexo de normas disciplinadoras que estabeleçam regras indispensáveis ao convívio dos indivíduos. A esse conjunto de regras dá-se o nome de direito positivo, as quais, além de regularem a organização do Estado, regulam, também, a conduta externa dos indivíduos, com a previsão de pena aos transgressores.
Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal
Cuida-se de sentença condenatória, em face do crime de peculado.
Ao longo da decisão refleti sobre a finalidade da prova.
  1. A finalidade da prova, não é demais repetir, é o convencimento do juiz, que é seu destinatário, de que o acusado tenha infringido um comando normativo. No processo, a prova, bem por isso, não é um fim em si mesma. Sua finalidade é prática, ou seja, convencer o juiz . Não da certeza absoluta, a qual, devo dizer, é, quase sempre, impossível, “ mas a certeza relativa suficiente na convicção do magistrado” 
  2. O Estado, ao dar início à persecução penal, ao por em funcionamento a máquina estatal, há que se lembrar que tem diante de si um acusado que tem o direito constitucional a ser presumido inocente, pelo que possível não é que desta inocência o mesmo tenha que fazer prova. Restam, então, a ele (Estado) a obrigação de provar a culpa do acusado, com supedâneo em prova lícita e moralmente encartada aos autos, sob pena de, em não fazendo o trabalho que é seu, arcar com as conseqüências de um veredicto valorado em favor do acusado.
  3. É de relevo que se diga que não é ao acusado que cabe o ônus de fazer prova de sua inocência. Se isso fosse necessário, seria a consagração do absurdo constitucional da presunção da culpa, situação intolerável no Estado Democrático de Direito. É órgão estatal que tem o dever de provar que tenha o réu agido em desconformidade com o direito.
  4. Preconiza o CPP, que o juiz formará a sua convicção pela livre apreciação da prova.  Em decorrência disso, vários são os princípios que regem a prova e sua produção em juízo. A nossa lei processual penal, pelo que se depreende da dicção do dispositivo legal acima mencionado, adotou o princípio do livre convencimento, também denominado da livre convicção, ou da verdade real, como é comumente chamado. Por tal princípio, o juiz firma sua convicção pela livre e isenta apreciação da prova, não ficando adstrito a critérios apriorísticos e valorativos, não existindo provas previamente tarifadas ou de maior valor que outras, quando da busca da verdade real no caso a ser apreciado.
  5. In casu sub examine, o exame da prova amealhada em sedes administrativa e judicial me conduz à certeza, em face de sua contundência, que tenha o acusado incidido nas penas do tipo penal albergado na denúncia do MINISTÉRIO PÚBLICO.
A seguir, a decisão.
Processo nº 0001272003
Ação Penal Pública
Acusado: J. R. DE S. E OUTRO
Vítima: O ESTADO

 

Vistos, etc.

Cuida-se de ação penal que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra J. H. S., vulgo “Breno”, brasileiro, casado, funcionário público, filho de A. S. de S. e M. J.R.de S., residente e domiciliado à Rua 10, quadra 46, nº 11, nesta cidade, e M. N., brasileira, solteira, do lar, filha de M. J. N., residente e domiciliada à Rua 10, quadra 46, casa 11, São Raimundo, nesta cidade, o primeiro por incidência comportamental no artigo 312, do CP, e esta no artigo 168, caput, do CP, em face de desvio de quantias destinadas a custear convênios, celebrados pela Caixa Escolar Governador Edson Lobão, junto à Gerência de Desenvolvimento Humano do Estado, cujos fatos estão narrados na prefacial que, no particular, passa a integrar o presente relatório.
A persecução criminal teve início mediante portaria (fls. 08).
Recebimento da denúncia às fls.44.
Exame de conjunção carnal ás fls. 38.
O acusado J. R. DE S., vulgo “Breno”, foi qualificado e interrogado às fls.54/56.
Defesa prévia às fls.61/62.
O feito foi suspenso em relação à acusada M. N.(fls. 66/67)
Durante a instrução criminal foram ouvidas a informante A. C. DE S. S. V. (fls.75/76) F.O. P.(fls.77), K. C. A. V. (fls.78), D. C. B.(fls.79), A. C. T. F. (fls. 80/81), F. C. DE S. (fls.103) e R. N. S. (fls. 104).
Na fase de diligências, nada foi requerido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO (fls.113v.), bem assim pelo procurador do acusado (fls.119).
O MINISTÉRIO PÚBLICO, em alegações finais, pediu a anulação do processo, à falta de notificação prévia, indispensável, em face de tratar-se de crime cometido por funcionário público, para, quanto ao mérito, pedir a condenação do acusado, nos termos da denúncia (fls.121/125).
O procurador do acusado, de seu lado, ratificando o pedido de nulidade, pede, depois, quanto ao mérito, que seja imposta pena mínima, com posterior substituição da pena privativa de liberdade por pena alternativa, nos termos do artigo 44, do CP(fls.147/150).

Relatados. Decido.

1º Sumário. UMA OBSERVAÇÃO PRELIMINAR, PARA COMPREENSÃO DO PROCESSO. A EXISTÊNCIA DE DOIS RÉUS NO POLO PASSIVO DA RELAÇÃO PROCESSUAL. A SUSPENSÃO DO PROCESSO EM RELAÇÃO À ACUSADA MEIRELAN NEVES.

Devo consignar, ad primum, que dois foram os acusados denunciados nos autos presentes – J. R. DE S., por incidência comportamental no artigo 312 do CP e M. N., por incidência penal no artigo 168, caput, do CP.
O feito, em relação à acusada M. N., foi suspenso, ex vi do artigo 89, da Lei 9.099/95.
Curial compreender, em face do exposto, que a decisão que aqui se edita diz respeito, tão-somente, à ação do acusado J. R.DE S..

2º Sumário. A PRELIMINAR DO MINISTÉRIO PÚBLICO. FALTA DE NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. CRIME PRATICADO POR FUNCIONÁRIO PÚBLICO. NULIDADE ABSOLUTA. INOCORRÊNCIA. CRIME INAFIANÇÁVEL.O CONCURSO DE CRIMES. A FASE ADMINISTRATIVA A PRECEDER A PERSECUTIO CRIMINIS IN JUDICIO E A PRECLUSÃO.

O MINISTÉRIO PÚBLICO, em sede de preliminar, pede a anulação do feito, à alegação de que restou inobservado o rito preconizado para os crimes cometidos por funcionário público, nada obstante tenha, ao longo da instrução, se mantido silente e inerte diante da questão.
O MINISTÉRIO PÚBLICO, para dar sustentação ao pleito, alega que o acusado não foi notificado, à luz do que prescreve o artigo 514 do Digesto de Processo Penal, daí decorrendo, na sua avaliação, nulidade absoluta.
Examinei a quaestio, para concluir, alfim e ao cabo do exame, que o MINISTÉRIO PÚBLICO incorreu em grave equívoco de interpretação.
Com efeito, da leitura do dispositivo em comento concluo, sem esforço, que a observância do dispositivo em comento está circunscrita à hipótese de o crime imputado ser afiançável, o que não ocorre, entrementes, em o caso sob retina – pelo menos é o que decorre da leitura da denúncia.
É verdade que a pena mínima cominada para o crime em comento é de dois anos de reclusão, o que pode levar à conclusão, prima facie, de que aqui se estaria a cuidar de crime afiançável, a teor do que estabelece o artigo 323, I, do CPP.
Ocorre, entrementes, que, a considerar-se a imputação, aqui se está a cuidar de concurso de crimes, vez que, colho da denúncia, foram três as ações do acusado, já que, por três vezes, teria se apropriado de bens públicos.
Cediço, assim, que, em face da majorante – continuidade delitiva – em comento, a pena mínima é superior a dois anos, daí resultando que não se está defronte de crime afiançável, ruindo, de conseqüência, os argumentos do representante ministerial.
Não bastasse a inafiançabilidade do crime, a obstaculizar a pretensão ministerial, há mais duas questões que não podem ser deslembradas – e o foram, no entanto, pelo representante do Parquet.
Primeiro, impende reconhecer, a questão não foi agitada oportuno tempore. Cuidando-se – se fosse o caso – de nulidade relativa, tem-se que estaria preclusa a quaestio, por não ter sido agitada em tempo hábil, segundo tem decidido o STF.
Segundo, há que se ter em conta que a denúncia foi ofertada com base em inquérito policial, em razão do que, segundo farta messe jurisprudencial, dispensa-se a formalidade do artigo 514, do Digesto de Processo Penal.

O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, a propósito, já decidiu, verbis: “A ação penal instaurada contra funcionário público pela prática de crime funcional prescinde da notificação prévia prevista no artigo 514 do CPP quando a exordial acusatória tem apoio em inquérito policial em que se aferiram a ocorrência do ilícito penal e os indícios de autoria, hábeis à oferta da peça inaugural da ação” No mesmo sentido:

“Mesmo sendo o réu funcionário público, não se exige a notificação prévia contida no artigo 514 do CPP quando a denúncia se estriba em inquérito policial; somente é obrigatória quando a peça vestibular vier instruída com documentos ou justificação a que se refere o artigo 513 do mesmo código.”

Se todo o exposto não fosse suficiente para afastar a nulidade, há de convir-se, ademais, que pega muito mal ao MINISTÉRIO PÚBLICO, que teria dado causa uma nulidade, descurando de suas obrigações, da sua omissão fazer uso para tentar anular o processo, do que pode resultar, inclusive, a possibilidade de ser muito mal interpretado.
Superada a quaestio preliminar, passo à decisão, fazendo, antes, registros que entendo oportunos, apenas e tão-somente para ilustrar esta decisão.

3º Sumário.O SENTIDO TELEOLÓGICA DA EXISTÊNCIA DO ESTADO. O BEM COMUM. A NECESSIDADE DE EQUILIBRIO E HARMONIA NAS RELAÇÕES SOCIAIS. A EDIÇÃO DE NORMAS DE CONDUTA. A INEXISTÊNCIA DE CRIME SEM CONDUTA. A BASE RACIONAL E PSICOLÓGICA DA CONDUTA.

A finalidade do Estado, sabe-se, é a consecução do bem comum. É a sua razão teleológica. Para consecução desse mister, faz-se necessário ditar normas de condutas, necessárias à harmonia e equilíbrio sociais. É que a vida em sociedade, que é a inclinação natural do homem, está a reclamar um complexo de normas disciplinadoras que estabeleçam regras indispensáveis ao convívio dos indivíduos. A esse conjunto de regras dá-se o nome de direito positivo, as quais, além de regularem a organização do Estado, regulam, também, a conduta externa dos indivíduos, com a previsão de pena aos transgressores. Essas regras, de um modo geral, “ são cumpridas por mero contato virtual. Muitas vezes, porém, os imperativos do Direito são desrespeitados e violados. Aos atos do homem, praticados segundo o Direito, dá-se o nome de atos lícitos, e o de atos ilícitos aos que infringem preceitos jurídicos”
Das relações sociais que se estabelecem entre as pessoas, resulta, inevitável, o cometimento iterativo de transgressões às normas impostas pelo Estado. Nada obstante, Estado necessita sobreviver. Para sua sobrevivência, “tem ele que velar pela paz, segurança e estabilidade coletivas, no entrechoque de interesses dos indivíduos, determinado por condições naturais e sociais diversas” , ainda que, para isso, tenha que submeter o agente violador à constrição de sua liberdade.
Nesse contexto, “as normas legais, por ele editadas, têm, então, a finalidade de tutelar bens-interesses, necessários à coexistência do individuo na vida em sociedade, e como interesse a representação psicológica desse bem, a sua estima”.
É através do direito que o Estado valoriza esses bens-interesses, pois que a sua ofensa fere mais fundo o bem comum, por afrontar as condições materiais basilares para a coletividade, daí a relevância de protegê-los com a preconização de uma sanção.

4º Sumário. AS TRANSGRESSÕES À ORDEM PÚBLICA. A CONDUTA ILÍCITA. A OFENSA AO BEM JURIDICAMENTE PROTEGIDO. O JUIZO DE CENSURA OU REPROVAÇÃO.

Das relações intersubjetivas que se estabelecem entre os homens em sociedade resulta, inevitável, o cometimento de crime. O crime é inevitável e é parte indissociável da vida em qualquer comunidade, pois que o crime é uma criação do homem.
ÉMILE DURKHEIM, no século XIX, alertava que “ o crime, além de ser um fenômeno normal, seria impossível uma sociedade que dele estivesse isenta. No dizer de DURKHEIM o crime chega até a desempenhar uma função útil na sociedade, posto que o crime (ato que ofende a sentimentos coletivos) constitui uma antecipação da moral futura e portanto indispensável à evolução da moral e do direito”
O crime, já se sabe, é inevitável. Inevitável como a dor. Aquela e esta não nos aprazem, mas ocorrem. Ocorrendo, é preciso debelá-los – o crime e a dor. Para esta, ministra-se analgésicos; para aquele, a pena, “constrangendo o autor da conduta punível a submeter-se a um mal que corresponda em gravidade ao dano por ele causado”, dá-se o nome de ilícito penal. Pode-se afirmar, assim, que ilícito penal é “a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei penal. Sua essência é a ofensa ao bem jurídico, pois toda norma penal tem por finalidade a sua tutela”
A conduta humana, para ser criminosa, há que corresponder objetivamente à conduta descrita pela lei, contrariando a ordem jurídica, incorrendo o seu autor no juízo de censura ou reprovação social.
Além de, necessariamente, corresponder a conduta do homem à conduta descrita pela lei, faz-se mister, ademais, que a ação seja representada “por um movimento corporal (ação) produzindo uma modificação no mundo exterior(resultado)”
Força convir, em face do exposto, que “a simples vontade de delinqüir não é punível, se não for seguida de uma comportamento externo. Nem mesmo o fato de as outras pessoas tomarem conhecimento da vontade criminosa será suficiente para torná-lo punível” sabido que “de internis non curat praetor. Não se pode prescrutar, com efeito, o que vai na psique humana ( Solus Deus est cordium scrutater).
Infere-se do exposto que, se o movimento corporal do agente não for orientado pela consciência e pela vontade não se pode falar, validamente, em ação.
À luz das considerações suso, é cediço que quem atua, ad exempli, impulsionado por uma força irresistível não age voluntariamente. Não agindo voluntariamente, não se há que falar em conduta humana e sem conduta humana, não se há de falar em crime.
O agente que atua compelido por uma força exterior e irresistível, não é o dono, claro, do ato material praticado.
O ilícito penal, bem por isso, “ é fruto exclusivo da conduta humana. O CP declara que a causa produtora do resultado ( de que depende a existência do crime) é a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido(artigo 13)
Devo anotar, em face do exposto, que os elementos da economia da infração penal – a conduta, a tipicidade, ilicitude e culpabilidade – “são inerentes à vontade e consciência como estado anímico do homem”
É bem de examinar-se, assim, em face da denúncia formulada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, se, efetivamente, se o acusado, ao cometer o crime que se lhe atribui a prática, tinha consciência da ilicitude, se não foi compelido por uma força exterior e se, ademais, a sua conduta se adequa ao ilícito contido na norma incriminadora apontada como violada.
Há de se perquirir, ademais, se a ação do acusado foi, no dizer de BASILEU GARCIA, “a causa criadora do resultado.”
O Ilícito penal (crime ou contravenção) é fruto exclusivo da vontade humana, disse-o acima. O Digesto Penal declara que a causa produtora do resultado ( de que depende a existência do crime) é a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido (artigo 13, do CP).
Somente a pessoa física – que o Código Civil chama de pessoa natural – pode ser sujeito ativo da infração penal.
Bem por isso é que “ o poder de decisão entre o fazer e o ao fazer alguma coisa, que constitui a base psicológica e racional da conduta lícita ou ilícita,é um atributo inerente às pessoas naturais”
A conduta implica vontade, desejo. A conduta, para interessar ao direito penal, tem que ser voluntária, voltada para uma finalidade, porque é inconcebível que haja vontade de nada ou vontade para nada.
Necessário, por isso, aferir, em face do contexto de prova, qual a vontade, qual o desejo que impulsionou o autor do fato para a realização do tipo penal e se essa vontade foi, ou não viciada, pois que uma vontade sem conteúdo não é vontade. É “impossível a conduta sem vontade, e a vontade sem finalidade”, daí resulta, por conseqüência, “que a conduta requer sempre uma finalidade”

5º Sumário. AINDA A CONDUTA DELITUOSA. A INEXISTÊNCIA DE DELITO SEM CONDUTA.O RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. NULLUM CRIMEN SINE CONDUCTA. GARANTIA JURÍDICA ELEMENTAR.

Ao acusado J. R. DE S.. , vulgo “Breno”, o MINISTÉRIO PÚBLICO aponta a autoria do crime de peculato, É dizer, com sua conduta, o acusado teria enfrentado o comando normativo esculpido no artigo 312 do Digesto Penal, porque, voluntariamente, conscientemente, finalisticamente, contra o patrimônio do Estado.
O direito, disse-o acima, pretende regular a conduta humana, pois o delito não pode ser delito, se não resultar de uma conduta do homem, como acima antecipei.
O princípio nullum crimen sine conducta é uma garantia elementar, garantia que não pode ser postergada num sistema garantista, sob qualquer fundamento, pois que, se fosse eliminada, “o delito poderia ser qualquer coisa, abarcando a possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as características pessoais etc.
Um direito penal que reconheça um mínimo de respeito à dignidade humana “não pode deixar de reafirmar que a base do delito – como iniludível caráter genérico – é a conduta, identificada em sua estrutura onto-ontológica. Se esta estrutura é desconhecida, corre-se o risco de salvar a forma mas evitar o conteúdo, porque no lugar de uma conduta humana se colocará outra coisa.”

6º Sumário. A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL. A SELEÇÃO DO COMPORTAMENTO HUMANO GRAVE E PERNICIOSO PARA A VIDA EM SOCIEDADE.O PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE.

O Direito Penal, sabe-se, é o segmento do ordenamento jurídico que tem por função selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à sociedade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para convivência social. É que o homem, como ser coexistencial, não pode subsistir por longo tempo independente de qualquer contato. Nesse sentido, é obrigado a estabelecer intercâmbio com os seus parecentes, donde exsurgem conflitos intersubjetivos de interesses, os quais devem ser regulados pelo Direito, sob pena de colocar-se em risco a própria vida em sociedade.
O Direito Penal, nesse contexto, surge como um importante instrumento de manutenção da paz social, selecionando, como dito acima, os comportamentos humanos em face de sua gravidade, os descrevendo como infrações penais, cominando-lhes, de conseqüência, as respectivas sanções.
Sublinhe-se que não é qualquer conduta, não é qualquer situação que deve ser incriminada senão aquela que se mostra necessária, idônea e adequada ao fim que se destina, ou seja, à concreta e real proteção do bem jurídico.
LUIS FLÁVIO GOMES, a propósito, preleciona que “o princípio do fato não permite que o direito penal se ocupe das intenções e pensamentos das pessoas, do seu modo de viver ou de pensar, das suas atitudes internas…”
A atuação repressiva-penal pressupõe que haja efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, sabido que não há crime sem comprovada lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico.
Pondera FERNANDO CAPEZ, a propósito, que “o princípio da ofensividade considera inconstitucionais todos os chamados “delitos de perigo abstrato”, pois, segundo ele, não há crime sem comprovada lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico. Não se confunde com princípio da exclusiva proteção do bem jurídico, segundo o qual o direito não pode defender valores meramente morais, éticos ou religiosos, mas tão-somente os bens fundamentais para a convivência e o desenvolvimento social. Na ofensividade, somente se considera a existência de uma infração penal quando houver efetiva lesão ou real perigo de lesão ao bem jurídico. No primeiro, a uma limitação quanto aos interesses que podem ser tutelados pelo Direito penal; no segundo, só se considera existente o delito quando o interesse já selecionado sofrer um ataque ou perigo efetivo, real e concreto.”
Na precisa lição de LUIZ FLÁVIO GOMES, “a função principal do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos é a de delimitar uma forma de direito penal, o direito penal do bem jurídico, daí que não seja tarefa sua proteger a ética, a moral, os costumes, uma ideologia, uma determinada religião, estratégias sociais, valores culturais como tais, programas de governo, a norma penal em si etc. O direito penal, em outras palavras, pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de bens jurídicos, isto é, de relações sociais conflitivas valoradas positivamente na sociedade democrática. O princípio da ofensividade, por sua vez, nada diz diretamente sobre a missão ou forma do direito penal, senão que expressa uma forma de compreender ou de conceber o delito: o delito como ofensa a um bem jurídico.”
RENÉ ARIEL DOTTI ensina, nessa linha de argumentação, que “a missão o direito penal consiste na proteção de bens jurídicos fundamentais ao indivíduo e à comunidade. Incumbi-lhe, através de um conjunto de normas (incriminatórias, sancionatórias e de outra natureza), definir e punir as condutas ofensivas à vida, à liberdade, à segurança, ao patrimônio e outros bens declarados e protegidos pela Constituição e demais leis”
Resulta de tudo que foi expendido acima que o legislador “ deve se abster de formular descrições incapazes de lesar, ou pelo menos, colocar em real perigo o interesse tutelado pela norma. Caso isto ocorra, o tipo deverá ser excluído do ordenamento jurídico por incompatibilidade vertical com o Texto Constitucional.”
Impõe consignar-se, forte, ainda, na lição de FERNANDO CAPEZ, que “toda norma em cujo teor não se vislumbrar um bem jurídico claramente definido e dotado de um mínimo de relevância social, será considerada nula e materialmente inconstitucional.”
Esteado nessas e noutras premissas de igual relevância foi que o legislador ordinário fez inserir em nosso ordenamento jurídico o crime de estupro, cuja norma protege bem jurídico de grande relevância.

7ª Sumário. O TIPO PENAL EM COMENTO. CONCEITO E OBJETIVIDADE JURÍDICA. SUJEITOS DO DELITO. ELEMENTOS OBJETIVOS DO TIPO. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. A CONSUMAÇÃO DO ILÍCITO, EM TESE.

No artigo 312 do Digesto Penal está definido o tipo simples (preceptum iuris) de peculato e a pena prevista para os seus transgressores (sanctio iuris), nos seguintes termos, verbis:

Peculato

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

O objeto jurídico da incriminação “ não é tanto a defesa dos bens patrimoniais da administração pública, quanto o interesse do Estado à probidade e à fidelidade do funcionário público.”
O objeto material da conduta é o dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel.
Tratando-se de crime próprio, o sujeito ativo é o funcionário público.
A ação tipificada é, nos termos do artigo 312 do CP, Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”.
O crime em comento poderá perfazer-se de dois modos: a) mediante apropriação; ou b) desvio.
Apropriar-se é assenhorear-se da coisa móvel, passando dela a dispor como se fosse sua, “usufruindo-a como se fosse seu senhor (uti dominus), em proveito próprio ou alheio.”
Desviar “é dar à coisa destinação diversa daquela em razão da qual foi ela entregue ou confiada ao agente.”
O tipo subjetivo geral é o dolo, constituído pela vontade consciente de apropriar-se (peculato-apropriação) ou desviar( peculato-desvio).
O crime se consuma com a efetiva apropriação ou desvio.

8º Sumário.OS FATOS E A DENÚNCIA. OS PRINCÍPIOS DA CORRELAÇÃO, AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO, COROLÁRIOS DO DUE PROCESS OF LAW. OBSERVÂNCIA DA REGRA NARRA MIHI FACTUM DABO TIBI JUS

J. R. DE S., vulgo “Breno”, fora denunciado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, à alegação de terem malferido o preceito primário do artigo 312, do Codex Penal.
Os fatos narrados na denúncia nortearam todo o procedimento, possibilitando, assim, o exercício da defesa do acusado, sabido que o réu se defende da descrição fática, em observância aos princípios da correlação, da ampla defesa e do contraditório.
Tudo isso porque, sabe-se, ao magistrado é defeso julgar o réu por fato de que não foram acusados(extra petita ou ultra petita), ou por fato mais grave(in pejus), proferindo sentença que se afaste do requisitório da acusação.

9ºSumário.AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO. AS FASES ADMINISTRATIVA E JUDICIAL. A INFORMATIO DELICTI E A OPINIO DELICTI. A PERSECUTIO CRIMINIS IN JUDICIO.

A persecução criminal, no sistema acusatório brasileiro, em regra, se divide em duas etapas distintas, nas quais são produzidas as provas da existência do crime e de sua autoria: uma, a chamada fase administrativa (informatio delict) é procedimento meramente administrativo, cujo objeto de apuração se destina à formação da opinio delicti pelo órgão oficial do Estado; a outra, a nominada fase judicial (persecutio criminis in judicio), visa amealhar dados que possibilitem, a inflição de pena ao autor , ou autores, do ilícito, garantido o livre exercício do contraditório e da ampla defesa.

10º Sumário.AS PROVAS PRODUZIDAS NA PRIMEIRA FASE DA PERSECUTIO CRIMINIS. AS PROVAS EXTRAJUDICIAIS. A NEGATIVA DE AUTORIA. A PALAVRA DA OFENDIDA

A primeira fase, marcadamente administrativa, teve início mediante portaria (fls.08).
O acusado, inquirido acerca do crime, o confessou dizendo que prestava serviços no setor de prestação de contas do fundo estadual de educação e que era comum receber cheques para efetuar pagamentos de tributos, cujos cheques não eram nominais, razão pela qual era necessário sacar os valores(fls. 21).
Aduziu que, “no começo deste ano de 2002, em dias alternados, recebera os cheques das mãos da funcionária K., com valores variados, todos ao portador, do Banco do Estado do Maranhão, que seriam para pagamentos de ISS e Imposto de Renda” (ibidem).
Adiante afirmou que, de posse dos cheques “dirigiu-se ao banco, mas não efetuou os pagamentos devidos, sacando pessoalmente três cheques, sendo que o quarto, o de maior valor, entregou a M. N.” sua esposa (ibidem).
À frente afirmou que quanto aos outros dois cheques, um no valor R$ 4.817,06 (quatro mil, oitocentos e dezessete reais e sete centavos) e outro no valor de R$ 3.272,72 (três mil, duzentos e setenta e dois reais e setenta e dois centavos), foram sacados pelo próprio acusado, além de um outro, cujo valor não se recorda(ibidem).
Para justificar a sua ação, o acusado disse que “assim agiu porque estava em dificuldades financeiras, além do que tem uma filha, J., de 22 anos, que tem sérios problemas de coração” e que “destinou os valores para o tratamento de saúde de sua filha, alimentação e reforma da casa, que estava quase caindo” (ibidem).
A confissão do acusado, é bem de ver-se, tem especial relevância para definição da autoria, máxime se ratificada em sede judicial.
Devo, nada obstante, prosseguir examinando a prova amealhada, vez que a confissão, tomada em sede policial, deve ser examinada com reserva.

11º Sumário.AS PROVAS AMEALHADAS NA SEGUNDA FASE DA PERSECUÇÃO. A DENÚNCIA FORMULADA. DELIMITAÇÃO DA ACUSAÇÃO. POSSIBILIDADE DE AMPLA DEFESA.

Encerrada a primeira fase, o MINISTÉRIO PÚBLICO, de posse dos dados colacionados na fase extrajudicial ( informatio delicti), ofertou denúncia (nemo judex sine actore) contra o acusado J. R. DE S. imputando ao mesmo o malferimento do preceito primário ( preceptum iuris) do artigo 312, do Digesto Penal, fixando, dessarte, os contornos da re in judicio deducta.
Aqui, no ambiente judicial, com procedimento arejado pela ampla defesa e pelo contraditório, produziram-se provas, donde emergem, dentre outras, os interrogatórios dos acusados(audiatur et altera pars) .
O acusado J. R. DE S. voltou a confessar o crime afirmando que, “ no começo de dois mil e dois, recebera cheques das mãos da funcionária K., com valores variados, todos ao portador” para pagamento de ISS e Imposto de Renda e que, “passando por dificuldades financeiras, ao invés de pagar os impostos mencionados, sacou os valores correspondentes”, os incorporando ao seu patrimônio”(fls.54/56).
Acrescentou o acusado que “os cheques sacados o foram no valor aproximado de dezoito mil reais um deles, de quatro mil e oitocentos reais outro e um terceiro no valor de dois duzentos e setenta reais aproximadamente” (ibidem).
Adiante aduziu que “grande parte do dinheiro foi utilizado pelo interrogado para reformar a sua casa” e que “não tinha vínculo empregatício com o Complexo Edson Lobão”(ibidem).
Além do acusado, testemunhas foram inquiridas em sede judicial, das quais destaco o depoimento de A. C. DE S. S. V., Diretora Geral do Complexo Educacional Edson Lobão, a qual, dentre outras coisas, informou que ao acusado foram entregues três cheques com guias de recolhimento, para pagamento de ISS, INSS e Imposto de Renda (fls.75).
Aduziu a testemunha que o acusado, quando cobrado no sentido de apresentar as guias de recolhimento, informava que estava tudo em ordem, mas que, depois, ficou sabendo das irregularidades quando foi intimada a comparecer na Supervisão da Gerência de Desenvolvimento Humano para prestar esclarecimento acerca da aplicação das verbas recebidas(ibidem).
Acrescentou que ficou sabendo que “o réu ficou irregularmente com vinte e seis mil reais, cujo dinheiro era para recolhimento dos tributos e impostos”(ibidem).
Adiante a testemunha acrescentou que, numa sindicância, o acusado confessou o uso do dinheiro, “mas que estava tomando providências para devolver o numerário” (ibidem).
O depoimento de A. . DE S. S. V. foi ratificado pelas testemunhas F. O. P. (fls.77), K. C. A. V. (fls.78), D. C. B. (fls. 79) e A. C. T. F.(fls. 80).
Além das testemunhas arroladas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, foram ouvidas as testemunhas F. C. DE S. (fls. 103) e . N. S. (fls. 104), ambas do rol da defesa, as quais nada acrescentaram acerca do crime e de sua autoria.

12ºSumário. AS CONCLUSÕES APÓS O EXAME DA PROVA CONSOLIDADA NOS AUTOS. SUBSUNÇÃO DA AÇÃO DO ACUSADO AO TIPO ALBERGADO NA DENÚNCIA.

J. R. DE S., viu acima, foi denunciado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, por incidência comportamental no artigo 312, do Codex Penal. Ao acusado, com efeito, o MINISTÉRIO PÚBLICO aponta a autoria do crime de PECULATO, na sua forma consumada.
Finda a análise das provas consolidadas nos autos, posso concluir, sem esforço, que o acusado, efetivamente, fez subsumir a sua ação no tipo penal do artigo 312 do CP.
Com efeito, o acusado, na condição de servidor público, lato senso, se apropriou de dinheiro público, de que tinha posse, em razão de sua função, encarregado que era de fazer pagamento de impostos.
Anoto, só para argumentar, que “não é funcionário público apenas aquele que percebe estipêndios ods cofres públicos, mas todo aquele que exerça uma função pública.”
O acusado, é bem de ver-se, arbitrariamente, fez uso, em benefício próprio, de dinheiro público que tinha em seu poder, sob sua guarda, ratione officii.
Os autos sub examine, posso afirmar, depois de concluída a análise das provas consolidadas, alberga o crime de peculato próprio, definido no caput do artigo 312 do CP, que consiste na ação material de apropriação ou desvio da coisa pública.
Peculato, não custa reafirmar, “é a apropriação ou desvio, em proveito próprio ou alheio, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público, ou particular, de que o funcionário tem a posse em razão de seu cargo.”
É cediço que o valor de que se apropriou o acusado não é uma exorbitância, máxime se considerar os constantes desvios de milhões de reais que se tem notícia por parte de alguns agentes públicos, muita vezes – na quase totalidade das vezes – impunemente.
Relevar anotar, em face dessa constatação, que “no peculato, a objetividade jurídica de maior relevância não é tanto a defesa dos bens da Administração, mas o interesse do Estado, genericamente visto, no sentido de zelar pela probidade e fidelidade da Administração. O dano, mais do que material, é moral e político.”
Impende gizar, nessa linha de argumentação, “ o dinheiro público é sagrado. Por uma fictio júris, considera-se infungível. O funcionário que o recebe não passa de longa manus da Administração, jamais podendo considerar-se como mutuante ou depositário irregular”
In casu sub examine, para reafirmar a tipificação do crime e sua autoria – esta confessada, nas duas fases da persecutio – importa reafirmar que o acusado usou, em benefício próprio – reforma da casa – dinheiro público de que tinha a posse, para pagar encargos sociais. É dizer: o acusado, ao que se infere dos autos, “tomou de empréstimo” dinheiro público de que tinha a guarda, dele fazendo uso como se fosse seu, pouco importando que reafirme a sua intenção de devolvê-lo aos cofres públicos.
E não se argumente que o acusado tenha agido sob o pálio do estado de necessidade, pois que ele próprio é quem afirma ter utilizado o dinheiro para reformar a sua casa.
Releva redizer, a par da afirmação suso, que “lançar mão o serventuário de numerário do Estado para satisfazer encargos pessoais e familiares, ainda que necessários, a toda evidência não constitui motivo para exclusão do crime de peculato e muito menos isenta a sua responsabilidade. A não exigibilidade de outra conduta somente em casos de excepcional circunstância pode ser aceita como causa capaz de isentar o réu de culpa.”
O acusado, infere-se do conjunto probatório, apropriou-se da coisa pública com vontade livre e consciente dirigida a essa finalidade, ou seja, com animus rem sibi habendi (intenção definitiva de não restituir a res) e a obtenção de proveito próprio.
O crime em comento, devo dizer, em face, ainda, das provas colacionadas, restou consumado, uma vez que o acusado não restituiu a res aos cofres públicos, do que se conclui, a mais não poder, a sua intenção lesiva.
O crime de peculato, anoto, “se consuma no momento em que o funcionário se apropria do dinheiro, valor ou bem imóvel, de que tem a posse em razão do cargo e desvia em proveito próprio ou de terceiro.”
O acusado, reiteradas vezes, demonstrou a sua intenção de restituir a res, o que, reafirmo, é irrelevante para configuração do delito, pois que “o que importa no crime em apreço não é tanto a lesão patrimonial, mas, principalmente, a ofensa aos interesses da Administração Pública de que os funcionários são guardiães, deles se exigindo lealdade sem fraquezas e fidelidade sem vacilações.”
No que se refere ao valor de que se apropriou o acusado, ter-se-á de convir que “para a existência do peculato não é necessária a fixação da quantia ou montante dos valores indebitamente assenhoreados ou extraviados, bastando a prova de que houve apropriação ou extravio.”

13º Sumário. A CULPABILIDADE. ELEMENTO PRIMÁRIO DE TODO DELITO. A POTENCIALIDADE LESIVA. O RESULTADO DO FATO TÍPICO. O PRECEITO SECUNDÁRIO.A RELAÇÃO DE CAUSALIDADE. NULLUM CRIMEN SI ACTIONE.

A culpa penal constitui-se no centro ético do direito punitivo. Não há pena sem culpabilidade, como também a pena não pode exceder-lhe na medida. Pena e culpa são binômios que se juntam indissociavelmente, consistindo no exato ponto de ligadura e de penetração da teoria das conseqüências jurídicas na teoria do delito.
O Direito deve limitar-se a disciplinar condutas potencialmente prejudiciais a alguém (alterum no laedere), ou seja, o direito só deve atuar segundo um critério de necessidade, previamente contemplado em lei, inspirada nos mais sagrados princípios do humanismo. Nesse sentido não se tem a mais mínima dúvida de que o autor de um crime de peculto deve ser penalizado, exemplarmente, em face da potencialidade lesiva do crime para a Administração Pública. Mas não pode sê-lo com base em conjecturas, em elucubrações, arbitrariamente, para satisfazer às idiossincrasias de quem quer que seja.
O elemento primário de todo delito, é uma conduta humana voluntária no mundo exterior.Não é por motivo outro que o artigo 13 do CP, ao fixar os preceitos sobre a relação de causalidade, estatui claramente, que o resultado do fato típico só é imputável a quem praticou a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
Releva indagar, pois, a par do conjunto probatório, se há provas idôneas, extreme de dúvidas, evidentes, irrefutáveis, da existência do crime. Sobreleva indagar, ao depois, se, provada a existência do crime, a ação causante deve ser imputada ao acusado, sem a mais mínima sombra de dúvidas. Se a resposta a pelo menos um dessas duas indagações fosse negativa , não se haveria de infligir pena ao acusado, à míngua de responsabilidade penal.
O crime, como atentado a um bem jurídico, interessa à ordem normativo-penal do direito porque produz um dano. Não há crime, pois, sem resultado danoso ( in actu ou in potentia). Mas a lesão ao bem jurídico está condicionada à existência, no plano naturalístico da conduta, de uma ação ou omissão que constitui a base do resultado lesivo. Sem ação e/ou sem omissão, não há delito. Nessa linha de pensar, entrevejo das provas colacionadas tenha o acusado, com sua ação, produzido o resultado danoso à Administração Pública.
Não há crime, sabe-se, sem determinado comportamento humano ( nullum crimen si actione) contrário à ordem jurídica. A ação e omissão constituem, por isso mesmo, o primeiro momento do delito, ou seja, o ponto em que o homem entra em contato com o ordenamento jurídico-penal. Sem ação e sem omissão, sem conduta, sem manifestação exterior da vontade, não há que se cogitar de crime. In casu sub examine, não se tem a mais mínima duvida de que o acusado, com seu comportamento, atentou contra a ordem jurídica, devendo, por isso, ser punido exemplarmente.
Na conduta humana, é consabido, só adquire relevância jurídico-penal, como elemento do fato típico, a ação voluntária. Donde dizer-se que o primeiro característico da ação é a subjetividade. Nem todo ato humano, mesmo que se enquadre numa descrição típica, é ação delituosa. Para que exista tipicidade é necessário a voluntariedade. Somente a conduta lastreada pela vontade tem relevância na tipificação do ato. Onde não há dinamismo volitivo não existe ação. Não existindo ação, não há que se cogitar da prática de crime. Há provas nos autos, mais do que suficientes, de que o acusado, voluntariamente, subjetivamente, atentou contra a ordem jurídica, fazendo subsumir a sua ação no tipo penal albergado na denúncia.
O acusado agiu impelido pela vontade de atentar contra a administração pública – a considerar, sempre, as provas consubstanciadas nos autos -, id. est., foi submetido a uma força exterior e irresistível para fazê-lo, hipótese em que não se haveria de cogitar da prática de crime.

14º Sumário. A AÇÃO CAUSANTE DO RESULTADO. A CONDUTA CORPORAL QUE SE LIGA A UM RESULTADO. A INEXISTÊNCIA DE FATO PUNÍVEL SEM AÇÃO DELITUOSA. A FRAGILIDADE DA PROVA ALBERGADA

Para existir ação causante de um resultado, é necessário que a esse querer interno suceda uma conduta corporal a que se ligue o resultado. Sem que a vontade, ou ato psíquico interno, se incorpore a um ato externo, não há fato punível nem ação delituosa. Cogitationis poenam nemo patitur: o simples querer, a voluntas acti não exteriorizada em ato concreto no mundo físico, fica impune por não constituir fato típico.
Finda a produção de prova há prova, mais que suficientes, de que o acusado violou o bem jurídico tutelado. Não há dados, por outro lado, que me possam fazer concluir que o acusado tenha agido sob o pálio de alguma excludente de ilicitude, nada obstante tenha mencionado a doença de uma filha, para tentar justificar a apropriação..
Para existir ação causante, não custa redizer, é mister que ao querer interno do autor do fato suceda uma conduta corporal a que se ligue o resultado. Nos autos sub examine há provas da conduta corporal do acusado e do resultado dessa ação.
Para que alguém seja condenado, é necessário que pratique uma conduta que se ajuste ao um tipo penal, que essa conduta seja antijurídica, culpável e relevante – significativa, enfim. Do exame da prova entrevejo a existência de uma conduta antijurídica e culpável por parte do acusado

15º Sumário. A FINALIDADE DA PROVA JUDICIÁRIA. A RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS FATOS. AS DIFICULDADES PARA RECONSTRUÇÃO DOS FATOS. INIMIZADE DA FAMÍLIA DA VÍTIMA COM O ACUSADO. A PROVA VICIADA.

A prova judiciária, sabe-se, tem um claro, claríssimo objetivo, qual seja “ a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos”
Essa tarefa, de reconstruir a verdade dos fatos, não é fácil de ser cumprida, resultando, não raro, que, pese as várias provas produzidas, não se consegue a reconstrução histórica dos fatos, assomando dos autos, muitas vezes, apenas a verdade processual. O processo, muitas vezes, produz apenas uma certeza do tipo jurídica, mas que pode, sim, não corresponder à verdade da realidade histórica. Nos autos sub examine, é bem de ver-se, essa realidade histórica se descortinou à toda evidência, tendo em vista mesmo a confissão do acusado, nos dois momentos da persecução criminal.
É truísmo afirmar, mas devo redizer, que “para que o juiz declare a existência da responsabilidade criminal e imponha sanção penal a uma determinada pessoa, é necessário que adquira a certeza de que foi cometido um ilícito penal e que seja ela a autoria”
O magistrado só estará convicto de que o fato ocorreu e de que seja determinada pessoa a autora do ilícito, só terá a certeza do crime e de sua autoria, “quando a idéia que forma em sua mente se ajusta perfeitamente com a realidade dos fatos”
Nas sedes administrativa e judicial, consignei acima, várias provas foram produzidas, as quais, em face de sua relevância na definição da autoria, autorizam a condenação do acusado, pois que aqui se está defronte de prova induvidosa, inquestionável, irretorquível, inconcussa. Houvesse hesitação, mínima que fosse, rarefeita que fosse a oscilação, ínfima que fosse a irresolução, impor-se-ia a absolvição do acusado.
O MINISTÉRIO PÚBLICO denunciou o acusado por ter infringido um comando normativo. O órgão oficial, conseguiu, alfim e ao cabo da instrução, demonstrar, quantum sufficti, ser verdadeira a imputação.

16º Sumário. A FINALIDADE DA PROVA. O LIVRE CONVENCIMENTO DO JULGADOR. A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. A OBRIGAÇÃO DO ESTADO DE PROVA A CULPA DO ACUSADO.

A finalidade da prova, não é demais repetir, é o convencimento do juiz, que é seu destinatário, de que o acusado tenha infringido um comando normativo. No processo, a prova, bem por isso, não é um fim em si mesma. Sua finalidade é prática, ou seja, convencer o juiz . Não da certeza absoluta, a qual, devo dizer, é, quase sempre, impossível, “ mas a certeza relativa suficiente na convicção do magistrado”
O Estado, ao dar início à persecução penal, ao por em funcionamento a máquina estatal, há que se lembrar que tem diante de si um acusado que tem o direito constitucional a ser presumido inocente, pelo que possível não é que desta inocência o mesmo tenha que fazer prova. Restam, então, a ele (Estado) a obrigação de provar a culpa do acusado, com supedâneo em prova lícita e moralmente encartada aos autos, sob pena de, em não fazendo o trabalho que é seu, arcar com as conseqüências de um veredicto valorado em favor do acusado.
É de relevo que se diga que não é ao acusado que cabe o ônus de fazer prova de sua inocência. Se isso fosse necessário, seria a consagração do absurdo constitucional da presunção da culpa, situação intolerável no Estado Democrático de Direito. É órgão estatal que tem o dever de provar que tenha o réu agido em desconformidade com o direito.
Preconiza o CPP, que o juiz formará a sua convicção pela livre apreciação da prova. Em decorrência disso, vários são os princípios que regem a prova e sua produção em juízo. A nossa lei processual penal, pelo que se depreende da dicção do dispositivo legal acima mencionado, adotou o princípio do livre convencimento, também denominado da livre convicção, ou da verdade real, como é comumente chamado. Por tal princípio, o juiz firma sua convicção pela livre e isenta apreciação da prova, não ficando adstrito a critérios apriorísticos e valorativos, não existindo provas previamente tarifadas ou de maior valor que outras, quando da busca da verdade real no caso a ser apreciado.
In casu sub examine, o exame da prova amealhada em sedes administrativa e judicial me conduz à certeza, em face de sua contundência, que tenha o acusado incidido nas penas do tipo penal albergado na denúncia do MINISTÉRIO PÚBLICO.

17º Sumário. A PROCEDENCIA DA AÇÃO. A INFRINGÊNCIA AO ARTIGO 312 DO DIGESTO PENAL. ACUSADO PRIMÁRIO E POSSUIDOR DE BONS ANTECEDENTES. AS DEMAIS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS QUE LHES SÃO FAVORÁVEIS. A SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 44 DO CP.

TUDO POSTO, JULGO PROCEDENTE a acusação, para, de conseqüência, condenar o acusado J. R. DE S., antes qualificado, por incidência comportamental no artigo 312 do CP, cuja pena-base fixo em 02(dois) anos de reclusão e 10(dez)DM, à razão de 1/30 do SM vigente à época do fato, que torno definitivas, à mingua de circunstâncias e/ou causas que possam modificar o quantum, devendo a pena privativa de liberdade ser cumprida, inicialmente, em regime em aberto, ex vi legis.
O acusado faz jus à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, em face da pena aplicada ser inferior a quatro anos, de não ser reincidente e de o crime não ter sido cometido com violência ou ameaça de violência contra a pessoa.
As circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP, ademais, são todas favoráveis ao acusado.
Substituo, pois, a pena privativa de liberdade por prestação de serviços à comunidade, ex vi do artigo 46 e parágrafos do CP, cabendo ao juiz da execução a definição da entidade ou programa comunitário ou estatal junto ao qual o condenado deverá trabalhar gratuitamente de acordo com as suas aptidões, ex vi do artigo 149, incisos e parágrafos da LEP.
P.R.I.
Custas, na forma da lei.
Com o trânsito em julgado, encaminhem-se os autos à vara de penas alternativas.
Lance-lhe, antes, o nome no rol dos culpados.

São Luís, 28 de abril de 2006.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

Art. 323. Não será concedida fiança:
I – nos crimes punidos com reclusão em que a pena mínima cominada for superior a 2 (dois) anos; (Redação dada ao inciso pela Lei nº 6.416, de 24.05.1977)
HC 75600, Informativo do STF 11-12-98, nº 05.
RT 742/577.
RSTJ 73/108.
MARQUES, José Frederico, Tratado de Direito Penal, VOL.I, Editora Millennium, p. 20.
NORONHA, E. Magalhães, Direito Penal. Vol. I, Saraiva, p. 94
ROCCO, Arturo, l`oggeto de Reato, 1913, p. 444 e s. apud E. NORONHA, E. Mgalhães, Direito Penal, ob. cit.p..94
DURHEIM, Émile, apud LEONARDO ISAAC YAROCHEWSKY, Violência e Direito Penal, Boletim Ibccrim, ano.12, nº 145, dezembro – 2004
DE JESUS, Damásio Evangelista, Direito Penal, Saraiva, Vol. I, Parte Geral, p.03
NORONHA, E. Magalhães, ob.cit. p. 94
BITTENCOURT, César Roberto, Manual de Direito Penal, Parte Geral, Vol.I, Saraiva, p.137
BITTENCOURT, César Roberto, Manual de Direito Penal, ob.cit. p. 160
DOTTI, René Ariel, Curso de Direito Penal, Parte Geral, Forense, 2º Edição, p. 303.
DOTTI, René Ariel, ob. cit. p. 303
GARCIA, Basileu, Instituições, Vol. I, p. 219.
DOTTI, René Ariel, Curso de Direito Penal, ob. cit. p. 302
ZAFFARONI, Eugênio Raúl, e PIERANGELI, José Henrique, Manual de Direito Penal brasileiro, Parte Geral, 2ª Edição, Editora revista dos Tribunais, p. 414.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique, ob.cit., p. 409.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique, , ob. cit. p. 409.
GOMES, Luiz Flávio, Principio da Ofensividade no Direito Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p.41
CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal, Parte Geral, Editora Saraiva, Vol.01, p.25.
GOMES, Luiz Flávio, Princípio da Ofensividade, p. 43.
DOTTI, René Ariel, Curso de Direito Penal, ob. cit. p.3.
CAPEZ, Fernando, ob.cit. p.26.
Ibidem
COSTA JÚNIOR, Paulo José da Costa, in Comentários ao Código Penal, 1996, Editora Saraiva, p.988.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da Costa, ob.cit. p 991.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da Costa, ob.cit. p.991.
TJSP-AC-Rel. Weiss de Andrade – RT 461/333
TJSP – HC – Rel. Djalma Lofrano – RT 506/326-327
TJSP-AC-Rel. Maércio Sampaio – RJTJSP 8/500-503.
TJSP -AC-Rel. Humberto da Nova – RJTJSP 18/399-400
TJSP –AC – Rel. Camargo Sampaio – RT 513/357.
STF-RE-Rel. Cordeiro Guerra – JUTACRIM 67/519.
TJSP-AC-rEL. Márcio Bonilha – RT 486/267
TJSP-AC-Rel. Goulart Sobrinho – RJTSP 13/440-443.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal, 4ª edição, editora Del Rey, p. 363.
MIRABETE, Júlio Fabbrini, Processo Penal, 17ª edição, Editora Atlas, p. 274.
MIRABETE, Júlio Fabbrini, ob. cit. p. 274.
GRECO FILHO, Vicente, ob. cit. p. 174.
Art. 157. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

4 comentários em “Sentença condenatória. Peculato. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito.”

  1. Gostei muito deste texto, achei bastante criativo e até engraçado. Pena que nesse perfil estão enquadrados vários juízes do Tribunal de Justiça do Maranhão.

    Não posso deixar de elogiar também esse espaço, onde podemos ter acesso a algumas das decisões e conhecer o ponto de vista de um grande magistrado.

    Já percebi que sua atuação é reconhecida por todos aqueles que possuem responasabilidade e compromisso na função que desempenham.

    Está sendo muito gratificante atuar na 7ª Vara Criminal!

  2. Caro amigo José Luís,

    Ao ler alguns de seus textos veio-me a satisfação de saber que mais alguém comunga com meu incorformismo em relação à situação de inércia que se fixa à imagem do Judiciário.

    Creio que, inspirado em magistrados de seu quilate, muitos de nós estejamos tentando modificar uma imagem que não se afigura a real justiça buscada.

    Tenho tido a oportunidade de dizer por aí que, assim como comida para fortificar o organismo; remédios para combater as doenças;o respeito à dignidade, as garantidas dos direitos das pessoas e o alcance da justiça que se busca, é alimento que faz bem ao ser humano, à sua alma, dando-lhe forças para a vida.

    Continue com seu trabalho e tenha sempre a certeza de minha admiração.

    Alexandre Abreu
    Juiz da 1ª Vara de Coroaté

  3. Excelente a materia, pois nos dá ânimo para continuarmos na luta cotidiana para bom nome e o propósito do Judiciário : acatar e fazer cumprir as Leis, com dignidade e sabendo discernir os delitos cometidos pelo transgressor, com o sentimento da verdadeira JUSTIÇA ! Tambem, cabe um elogio à este espaço que nos auxilia no entendimento de várias decisóes de renomados magistrados

  4. Brilhante explanação sobre o tipo penal e caracterização, bem como o nexo causal. Parabéns.

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