Decisão desclassificatória. O afastamento da qualificadora.

No processo no qual prolatei a sentença a seguir publicada, o Ministério Público imputou ao acusado a prática de dois crimes – furto qualificado e disparo de arma de fogo em via pública. Encerrada a instrução, afastei a qualificadora, em face do crime de furto, ao tempo em que julguei improcedente a denúncia em relação ao crime de disparo de arma de fogo em via pública. 
Da decisão extraio o seguinte fragmento:
  1. Definido que o acusado realizou a subtração, devo, a seguir, deter-me na qualificadora apontada na denúncia.
  2. O Ministério Público denunciou o acusado por crime de furto, qualificado pela destreza.
  3. Diferente do Ministério Público, entendo que não restou tipificada a qualificadora decorrente da destreza.
  4. O acusado, com efeito, foi inábil na execução do crime, tanto que o ofendido – aquele que detinha a posse da arma – se deu conta da subtração e cuidou logo de perseguir o acusado.
  5. A destreza, segundo a melhor interpretação jurisprudencial, “pressupõe ação dissimulada e especial habilidade do agente no ato de furtar. Se a vítima se apercebe da subtração, não há como falar-se em destreza”. 
  6. No mesmo sentido a decisão segundo a qual “Não é possível falar em destreza, que é sinônimo de habilidade e traz a idéia de ligeira, se foi a ausência dessa circunstância ou a inabilidade revelada pelo acusado que impossibilitou a consumação do crime, facilitando a sua prisão em flagrante”.
A seguir, a sentença, por inteiro.
Processo nº 150712004

Ação Penal Pública

Acusado: Magno Cardoso das Chagas

Vítima:  Posto Médice

 

 Vistos, etc.

 

Cuida-se de ação penal que move o Ministério Público Magno Cardoso das Chagas, brasileiro, solteiro, estudante, filho de Almerinda Correia, sem residência fixa, por incidência comportamental no artigo 155,§ 4º, II, do CP e artigo  15 do Estatuto do Desarmamento,  em face de, no dia 20 de agosto de 2004, por volta das 04h00 da manhã, nas imediações do Posto de Gasolina São João, situado  na Av. dos Africanos, nº 1500, no bairro Filipinho, ter furtado  um revólver calibre 32.

A persecução criminal com a prisão em flagrante do acusado.(fls.07/10)

Auto de apresentação e apreensão às fls. 14

Recebimento da denúncia às fls. 33/34.

O acusado  foi qualificado e interrogado às fls. 40/41.

Defesa prévia às fls.45.

Laudo de exame de comparação balística às fls. 76/78.

Durante a instrução criminal foram as testemunhas Telmo Pereira Nunes (fls.87) e  Rubem Leonardo Santos Galvão . (fls.88)

Na fase de diligência nada foi requerido pelas partes. (fls. 98v.)

O Ministério Público, em alegações finais, pediu a condenação do acusado por incidência penal no artigo 155,§4º, II, do CP. (fls.100/103)

A defesa, de seu lado, pediu a absolvição do acusado, por insuficiência de provas, em relação ao disparo de arma de fogo e  pela atipicidade de sua conduta, em relação ao crime de furto, à luz do princípio da insignificância..114/117.

 

Relatados. Decido.

 

Nos autos sub examine o Ministério Público dirigiu os seus tentáculos contra o acusado  Magno Cardoso das Chagas porque ele, com sua ação – ou omissão –  (dinamismo volitivo), teria atentado contra bens jurídicos do ofendido e da sociedade em geral, ação contra a qual  o Estado se armou ao fazer inserir no ordenamento jurídico  comandos legais, cominando sanções severas, no exercício de sua função de selecionar os comportamentos humanos graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para convivência social, sem olvidar-se de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.

O Direito Penal, sabe-se, é o segmento do ordenamento jurídico que tem por função selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à sociedade, capazes de colocarem em risco valores fundamentais para convivência social.

Selecionados os comportamentos humanos em face de sua gravidade, o Direito Penal os descreve  como infrações penais, cominando-lhes, de conseqüência, as respectivas sanções.

Sublinhe-se que não é qualquer conduta, não é qualquer situação que deve ser incriminada senão aquela que se mostra necessária, idônea e adequada ao fim que se destina, ou seja, à concreta e real proteção do bem jurídico.

Luis Flávio Gomes, a propósito, preleciona que “o princípio do fato não permite que o direito penal se ocupe das intenções e pensamentos das pessoas, do seu modo de viver ou de pensar, das suas atitudes internas…

A atuação repressiva-penal pressupõe que haja efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, sabido que não há crime sem comprovada lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico.

Pondera Fernando Capez, nessa senda, que “o princípio da ofensividade considera inconstitucionais todos os chamados “delitos de  perigo abstrato”, pois, segundo ele, não há crime sem comprovada lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico. Não se confunde com princípio da exclusiva proteção do bem jurídico, segundo o qual o direito não pode defender valores meramente morais, éticos ou religiosos, mas tão-somente os bens fundamentais para a convivência e o desenvolvimento social. Na ofensividade, somente se considera a existência de uma infração penal quando houver efetiva lesão ou real perigo de lesão ao bem jurídico. No primeiro, a uma limitação quanto aos interesses que podem ser tutelados pelo Direito penal; no segundo, só se considera existente o delito quando o interesse já selecionado sofrer um ataque ou perigo efetivo, real e concreto“.

Na precisa lição de Luiz Flávio Gomesa função principal do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos é a de delimitar uma forma de direito penal, o direito penal do bem jurídico, daí que não seja tarefa sua proteger a ética, a moral, os costumes, uma ideologia, uma determinada  religião, estratégias sociais, valores culturais como tais, programas de governo, a norma penal em si etc.  O direito penal, em outras palavras, pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de bens jurídicos, isto é, de relações sociais conflitivas valoradas positivamente na sociedade democrática. O princípio da ofensividade, por sua vez, nada diz diretamente sobre a missão ou forma do direito penal, senão que expressa uma forma de compreender ou de conceber o delito: o delito como ofensa a um bem jurídico“.

René Ariel Dotti ensina, nessa linha de argumentação, que “a missão o direito penal consiste na proteção de bens jurídicos fundamentais ao indivíduo e à comunidade. Incumbi-lhe, através de um conjunto de normas (incriminatórias, sancionatórias e de outra natureza), definir e punir as condutas ofensivas à vida, à liberdade, à segurança, ao patrimônio e outros bens declarados e protegidos pela Constituição e demais leis“.

Resulta de tudo que foi expendido acima que o legislador ” deve se abster de formular descrições incapazes de lesar, ou pelo menos, colocar em real perigo o interesse tutelado pela norma. Caso isto ocorra, o tipo deverá ser excluído do ordenamento jurídico por incompatibilidade vertical com o Texto Constitucional

Impõe-se consignar, forte, ainda, na lição de Fernando Capez,  que “toda norma em cujo teor não se vislumbrar um bem jurídico claramente definido e dotado de um mínimo de relevância social, será considerada nula e materialmente inconstitucional“.

Alicerçado nessas e noutras premissas de igual relevância foi que o legislador ordinário fez inserir em nosso ordenamento jurídico os crimes sob retina.

Ao  acusado  o Ministério Público aponta a autoria dos crimes de furto e de disparo de arma de fogo em. É dizer, com sua conduta, o acusado teria  enfrentado comandos normativos do Código Penal e do Estatuto do Desarmamento.

Feitas notas introdutórias que entendi devesse fazê-lo somente a guisa de ilustração,  passo, a seguir, ao exame do patrimônio probatório consolidado nos autos, a considerar os dois momentos da persecução criminal.

A persecução criminal (persecutio criminis) se desenvolveu em dois momentos distintos, ou seja, em sedes administrativa e judicial, tal como  preconizado  no  direito  positivo brasileiro.

Na primeira fase da persecução avultam com razoável importância a confissão do acusado de que subtraiu a arma de fogo que encontrou nas imediações do Posto de Gasolina Médice.(fls.10)

O acusado, mais adiante, confessou, ademais, que, ao ser  abordado por vigilantes, resolveu efetuar um disparo para assegurar a sua fuga.(ibidem)

Na primeira fase assoma com singular importância, de outra parte, a apreensão do revólver em poder do acusado. (fls.14)

Com esses dados encerrou a fase periférica da persecução e foi deflagrada (deflagrare) a persecução penal em seu segundo momento (artigo 5º, LIV, da CF)( nemo judex sine actore; ne procedat judex ex officio) tendo o Ministério Público (artigo 5º, I, da CF) , na proemial (nemo in indicium tradetur sine accusatione), denunciado o  acusado, por incidência   comportamental    nos artigos 155, §4º, II, do CP, e artigo 15 do Estatuto do Desarmamento.

Em sede judicial, a sede das franquias constitucionais (artigo 5º, LV, da CF) , o acusado foi qualificado e interrogado.

O acusado, nesta sede, admitiu ter subtraído a arma de fogo que encontrou dentro de uma bota que se encontrava  dentro de uma bota de um frentista do posto de gasolina São João. (fls.39/41)

O acusado não foi indagado acerca do crime de disparo de arma de fogo.

Nesta sede foi acostada a prova pericial, da qual se constata que a arma apreendida estava apta a efetuar disparos. (fls.76/78)

Dando seqüência a instrução foram ouvidas as testemunhas Telmo Pereira Nunes(flks.87) e Rubem Leonardo Santos Galvão(fls.88)

A testemunha Telmo Pereira Nunes confirma a subtração da arma de fogo pelo acusado, mas diz que ele não efetuou nenhum disparo.(fls.87)

A testemunha Rubem Leonardo Santos Galvão confirmou ter prendido o acusado estando este de posse da arma de fogo.(fls.88)

Analisada a prova em toda a sua dimensão, concluo, na esteira do entendimento do Ministério Público, que as provas amealhadas não são hábeis para fazer concluir que o acusado tenha efetuado disparo de arma de fogo.

O próprio frentista que o perseguiu, logo após a subtração, viu-se acima, disse que o acusado tentou, mas não conseguiu efetuar nenhum disparo.

Creio, pois, que, em relação ao crime de disparo de arma de fogo a questão é de facílimo desate, sobretudo porque o próprio Ministério Público reconhece a improcedência da ação no particular.

No que se refere ao crime de furto, dúvidas não de que o acusado, efetivamente, o praticou.

A prova nesse sentido é plena. O acusado, de efeito, admitiu ter praticado o crime nas duas sedes em que foi ouvido, confissão que encontra respaldo no depoimento da testemunha Telmo Pereira Nunes.

O fato de a res mobilis ter sido apreendida em poder do acusado, ao lado de sua confissão nas duas oportunidades em que foi ouvido, é prova mais do que suficiente de que surrupiou o bem do ofendido, dele se apoderando com a intenção de incorporá-lo ao seu patrimônio, em detrimento, no mesmo passo, do patrimônio do ofendido.

O acusado, com sua ação subtraiu (surrupiou, tirou às escondidas) coisa alheia (pertence ao Posto Médice) móvel (uma arma de fogo), de valor econômico relevante, do que se infere que subsumiu a sua ação no preceito primário do artigo 155 do Digesto Penal.

O acusado, ao subtrair a res mobilis, o fez com o fim específico de obter vantagem indevida ( animus lucrandi), não tendo agido, ademais, sob o manto de nenhuma  excludente.

Vejo da prova consolidada que o acusado, com sua ação, agrediu o patrimônio do ofendido, o que lhe era defeso fazê-lo, de lege lata, sabido que o direito protege  a propriedade, bem assim a posse.

O acusado retirou, subtraiu do ofendido a res furtiva, o fazendo  dolosamente, id est, com a vontade consciente de efetuar a subtração e  com a o fim especial ( animus furandi ou animus rem sibi habendi) de dela se apoderar definitivamente.

O crime em comento restou consumado, tendo em vista que, ainda que por pouco tempo, houve sim a inversão da posse da res mobilis, que saiu da esfera de disponibilidade do ofendido.

A subtração, que não se olvide, se opera no exato instante em que o possuidor – in casu o ofendido – “perde o poder e o controle sobre a coisa,  tendo de retomá-la porque já não está mais consigo“.

Os Tribunais seguem a mesma linha de entendimento, como se colhe da ementa a seguir transcrita, verbis:

 

“Considera-se consumado o delito de furto, bem como o de roubo, no momento em que o agente se torna possuidor da res subtraída, ainda que não obtenha a posse tranqüila do bem, sendo prescindível que saia da esfera de vigilância da vítima.”

 

No mesmo diapasão: 

O delito de furto, assim como o de roubo, consuma-se com a simples posse, ainda que breve, da coisa alheia móvel subtraída clandestinamente, sendo desnecessário que o bem saia da esfera de vigilância da vítima. 

Definido que o acusado realizou a subtração, devo, a seguir, deter-me na qualificadora apontada na denúncia.

O Ministério Público denunciou o acusado por crime de furto, qualificado pela destreza.

Diferente do Ministério Público, entendo que não restou tipificada a qualificadora decorrente da destreza.

O acusado, com efeito, foi inábil na execução do crime, tanto que o ofendido – aquele que detinha a posse da arma – se deu conta da subtração e cuidou logo de perseguir o acusado.

A destreza, segundo a melhor interpretação jurisprudencial, “pressupõe ação dissimulada e especial habilidade do agente no ato de furtar. Se a vítima se apercebe da subtração, não há como falar-se em destreza“.

No mesmo sentido a decisão segundo a qual “Não é possível falar em destreza, que é sinônimo de habilidade e traz a idéia de ligeira, se foi a ausência dessa circunstância ou a inabilidade revelada pelo acusado que impossibilitou a consumação do crime, facilitando a sua prisão em flagrante“.

Com as considerações supra, afasto a qualificadora apontada na denúncia e nas alegações finais do Ministério Público.

Demonstrada a improcedência da ação no que se refere ao crime de disparo de arma de fogo e afastada a qualificadora, tem-se que, em face apenas do crime de furto, há possibilidade jurídica de ser ofertada ao acusado a proposta de suspensão do processo.

Com as considerações supra, determino seja  oficiado requisitando informações acerca dos antecedentes do acusado.

Com as informações nos autos, intime-se o Ministério Público para, se assim entender, ofertar a proposta de suspensão do processo ao acusado, ex vi do artigo 89 da Lei 9.099/95.

Ofertada a proposta, voltem os autos conclusos.

                                  

São Luís, 15 de outubro de 2008.

 

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

          Titular da 7ª Vara Criminal

 

 


Luis Flávio Gomes, in PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE NO DIREITO PENAL, São Paulo, Revista dos Tribunais,  2002, p.41.

Fernando Capez, in CURSO DE DIREITO PENAL, Parte Geral, Editora Saraiva, vol. 01, p.25

Luis Flávio Gomes, ob. cit. P. 43

René Ariel Doti, in Curso de Direito Penal,  Parte Geral, 2ª Edição, Editora Forense, p.3).

Fernando Capez, ob. cit.  p. 26.

Fernando Capez, ibidem

  No sistema acusatório brasileiro  “a persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, enquanto que a primeira é a atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo” (Fernando da Costa Tourinho Filho,  Manual de Processo Penal, editora Saraiva, 2001, p.7)

  Art. 5º omissis

         LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

  Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

         I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

  Os fatos narrados na denúncia nortearam todo o procedimento, possibilitando, assim, o exercício da defesa dos acusados, sabido que os  réus se defendem da descrição fática, em observância aos princípios da correlação, da ampla defesa e do contraditório. Tudo isso porque, sabe-se,  entre nós não há o juiz inquisitivo, cumprindo à acusação delimitar a área de incidência da jurisdição penal e também motivá-la por meio da propositura da ação penal.

     Na jurisdição penal  a acusação determina a amplitude e conteúdo da prestação jurisdicional, pelo que o juiz criminal não pode decidir além e fora do pedido com o que o órgão da acusação deduz a pretensão punitiva. São as limitações sobre a atuação do juiz, no exercício dos poderes jurisdicionais, na Justiça Penal, oriundos diretamente do sistema acusatório, e que são designadas pelas conhecidas parêmias jurídicas formuladas: a) ne procedat judex ex offiico; e) ne eat judex ultra petitum et extra petitum.

   Artigo 5º. omissis.

       LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

RT 537/372

   Fernando Capez, Curso de Direito Penal,  Parte Especial, Vol.II,  Sariva, 2004, p. 367

  STJ, REsp.668857/RS

  STJ, REsp. 671781/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T., DJ 23/05/2005, p. 336

JTACRIM 75/275

RT 435/367

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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