Na sentença que se segue os mesmos policiais que prenderam o acusado em flagrante, por porte ilegal de arma de fogo, afirmaram, em sede judicial, que não tinham certeza se a arma apreendida estava mesmo em poder do acusado, razão pela qual tive que absolvê-lo.
O acusado, ao que pude inferir dos autos, foi preso e processado muito mais pelo seu passado que em face do crime em razão do qual foi denunciado.
Vale à pena analisar as reflexões que fiz em face da prisão do acusado calcada em seu passado.
Em determinado fragmento anotei:
- A prisão do acusado, de efeito, para mim, já se traduziu em uma grave e irreparável injustiça, sabido que “nenhum resultado objetivamente típico pode ser atribuído a quem não o tenha produzido por dolo ou culpa”.
- O acusado, ao que tudo indica, não tem boa conduta social. Mas esse fato não autorizava a sua prisão e nem autoriza a sua punição, sabido que o direito penal não se presta a punir o modo de ser das pessoas, as suas idéias ou ideologias.
A seguir, a decisão, por inteiro.
Processo nº 249512007
Ação Penal Pública
Acusado: F. M.
Vítima: Incolumidade Pública
Vistos, etc.
Cuida-se de ação penal que move o Ministério Público contra F. M., brasileiro, solteiro, comerciante, filho de J.M., residente e domiciliado à Rua daFé, nº 11, João de Deus, nesta cidade, por incidência comportamental no artigo 14, da Lei 10.826/2003- Estatuo do Desarmamento, em face de ter sido preso em flagrante, no dia 01.11.2007, portando arma de fogo.
A persecução criminal teve início com a prisão em flagrante do acusado. (fls.06/09)
Auto de apresentação e apreensão às fls. 14.
Recebimento da denúncia às fls.65/69.
Laudo em arma de fogo às fls. 69/70.
O acusado foi citado, qualificado e interrogado às fls. 77/81.
Defesa prévia às fls. 102.
Exame em arma de fogo às fls.106/107.
Durante a instrução criminal foram ouvidas as testemunhas J. de R. R.(fls.185), E. F. . (fls.186/187), R. N. F. da C.(fls.202/203) e J. R. S.. (fls.204/205)
Na fase de diligências, nada foi requerido pelo Ministério Público e pela defesa.(fls. 194/195)O Ministério Público em alegações finais, pediu a a absolvição do acusado, por insuficiência de provas (fls.206/207), no que foi secundado pela defesa.(fls.208/209)
Relatados. Decido.
O acusado, viu-se acima, foi denunciado pelo Ministério Público, em face de ter malferido o preceptum iuris do artigo 14 (porte ilegal de arma de fogo), da Lei 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento.
A persecução criminal desenvolveu-se em duas fases – administrativa e judicial.
A fase administrativa teve início com a prisão em flagrante do acusado. (fls.06/09)
O acusado não quis prestar depoimento em sede extrajudicial, reservando-se o direito de só se manifestar em juízo.
A arma de fogo foi apreendida (fls.14) e periciada, tendo os experts concluído a sua eficiência para produção de disparos.(fls.107/108)
Com esses e outros dados encerrou-se a fase periférica da persecução criminal.
De posse do caderno administrativo, o Ministério Público ofertou denúncia contra F. M., imputando a ele o crime de porte ilegal de arma de fogo (artigo 14, do Estatuto do desarmamento).
Nesta sede, o acusado, admitiu que havia uma arma próximo dele, mas não lhe pertencia.(fls.77/81)
O acusado imagina que a arma pertencesse a três rapazes que estavam bebendo no mesmo bar em que bebia, na Forquilha.(ibidem)
Além do acusado, foram ouvidas várias testemunhas, dentre elas José de Ribamar Ribeiro, que foi um dos policiais que lhe deu voz de prisão, o qual, no entanto, curiosamente, não soube informar se a arma estava mesmo em poder do acusado.(fls.185)
É dizer: ainda que não soubesse que arma de fogo estivesse em poder do acusado, a ele lhe deu voz de prisão, o que, convenhamos, é uma remata arbitrariedade – pra dizer o mínimo.
Em seguida foi ouvida a testemunha Edson Freire Santos, o outro policial que testemunhou a prisão em flagrante do acusado, o qual, da mesma forma – pasmem! – não soube dizer se era o acusado que estava mesmo portando a arma de fogo apreendida.(fls.186/187)
Concluindo a instrução foram ouvidas as testemunhas do rol da defesa – R. N. F. da C. (fls.202/203) e J. R.S. (fls.204/205) – as quais, como sói ocorrer, nada souberam informar sobre o crime e sua autoria..
Analisada a prova amealhada, posso afirmar, na mesma esteira de entendimento do Ministério Público, que não há provas bastante a autorizar a edição de um decreto de preceito sancionatório.
Com efeito, as principais testemunhas do fato – os policiais J. de R. R. e E. F. S.– não souberam informar se era o acusado que estava, realmente, portando a arma de fogo apreendida.
Tem-se, assim, que concluir que a prova é frágil, não autorizando, por isso, a condenação do acusado.
Nesse tipo de crime, todos sabemos, a principal – e, quiçá, única – testemunha é, sempre, o policial – ou policiais – que prendeu (ram) o autor do fato. Só muito raramente – diria, excepcionalmente -, a experiência tem demonstrado, há outras testemunhas, mesmo porque, de regra, quem testemunha a ocorrência do crime, por óbvias razões, não deseja assumir qualquer compromisso com a Justiça – até mesmo pelo fato de nela não acreditar.
Agora, convenhamos, se as únicas pessoas que testemunharam o fato – e testemunharam, no mesmo passo, a prisão do acusado – dizem não ter certeza se a arma de fogo estava em poder do acusado, curial que sequer deveria ter sido preso.
A prisão do acusado, de efeito, para mim, já se traduziu em uma grave e irreparável injustiça, sabido que “nenhum resultado objetivamente típico pode ser atribuído a quem não o tenha produzido por dolo ou culpa“.
O acusado, ao que tudo indica, não tem boa conduta social. Mas esse fato não autorizava a sua prisão e nem autoriza a sua punição, sabido que o direito penal não se presta a punir o modo de ser das pessoas, as suas idéias ou ideologias.
O direito penal se presta para punir agressões previamente descritas em leis como delitos. Nesse sentido, é bem de concluir-se que o acusado não pode ser punido em face do seu passado ou porque os policiais imaginassem que estivesse portando arma de fogo, estimulados, movidos, tão-somente, pela sua má conduta social.
É de boa cepa que se diga, a guisa de ilustração e reflexão, intenso na lição de Zaffaroni e Pierangeli, que “Ainda que não haja um critério unitário acerca do que é o direito penal do autor, podemos dizer que, ao menos em sua manifestação extrema, é uma corrupção do direito penal em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma ‘forma de ser’ do autor, esta sim verdadeiramente considerada delitiva. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso seria a personalidade e não o ato“.
Os mesmos autores adiante concluem que “Seja qual for a perspectiva a partir de que se queira fundamentar o direito penal de autor (culpabilidade de autor ou periculosidade), o certo é que um direito que reconheça, mas que também respeite, a autonomia moral da pessoa jamais pode penalizar o ‘ser’ de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que o direito é uma ordem reguladora de conduta humana. Não se pode penalizar um homem por ser como escolheu ser, sem que isso violente a sua esfera de autodeterminação”.(o destaque consta do original)
O que entrevi das provas e ao longo da instrução é que o acusado foi preso pelo que é, pelo seu comportamento em sociedade, pelo seu passado e não em face do crime que cometeu, mesmo porque, sabe-se agora, não cometeu nenhum ilícito.
Retomando o curso da decisão, devo dizer que a prova que autoriza a condenação tem que ser plena e indene de dúvidas. Mínima que seja a hesitação, o caminho a seguir é a absolvição do acusado.
Importa consignar, nessa linha de argumentação, que “para que o juiz declare a existência da responsabilidade criminal e imponha sanção penal a uma determinada pessoa, é necessário que adquira a certeza de que foi cometido um ilícito penal e que seja ela a autoria“.
A prova que autoriza a condenação, todos sabemos, “é a produzida na instrução processual, que é contraditória, perante o juiz que dirige o processo, e que forma sua convicção pelo princípio do livre convencimento fundamentado, vigorante em nossos processo“.
As provas produzidas sob os auspícios das franquias constitucionais do acusado, in casu sub examine, não foram suficientes para definição de sua responsabilidade penal, daí ser irrefragável, inevitável a sua absolvição, por insuficiência de provas.
Nos autos sob retina não há nenhuma prova segura de que o acusado, ao ser preso, estivesse portando arma de fogo.
Sem que conseguisse o representante ministerial demonstrar tenha o acusado enfrentado um comando normativo penal, resta, debalde, com efeito, a sua pretensão de vê-lo condenado, pois que, é ressabido ” de nada adiante o direito em tese ser favorável a alguém se não consegue demonstrar que se encontra numa situação que permite a incidência da norma” .
É de relevo que se diga que não é ao acusado que cabe o ônus de fazer prova de sua inocência. Se isso fosse verdade, seria, convenhamos, a consagração do absurdo constitucional da presunção da culpa, situação intolerável no Estado Democrático de Direito. É órgão estatal que tem o dever de provar que tenha o réu agido em desconformidade com o direito.
É evidente, não custa lembrar, que o juiz criminal não fica cingido a critérios tarifados ou predeterminados quanto à apreciação da prova.
Não é demais repetir, no entanto, que fica adstrito às provas constantes dos autos em que deverá sentenciar, sendo-lhe vedado não fundamentar a decisão, ou fundamentá-la em elementos estranhos às provas produzidas durante a instrução do processo, afinal quod non est in actis non est in mundo.
Nos autos, importa admitir, não há provas da autoria, muito embora se admita que há provas da materialidade do delito. E sem provas da autoria do crime, produzidas sob o filtro do contraditório e da ampla defesa, tem-se que absolver o acusado.
É de rigor que o juiz deve fundamentar todas as suas decisões (Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada a 05 de outubro de 1.988 e Código de Processo Penal, artigo 381, III ).
Só pode fazê-lo, no entanto, se provas forem produzidas em sede judicial, das quais possa concluir pela responsabilização penal do autor do fato.
Jejuno de provas judiciais o processo acerca da culpabilidade do autor do fato, o magistrado não dispõe de dados que lhe permita fundamentar uma decisão. A menos que, absurdamente, pudesse decidir somente segundo sua experiência pessoal, segundo dados que não foram colhidos nos autos, segundo a sua íntima convicção.
O decreto condenatório precisa estar fincado sobre os elementos carreados ao processo e que ofereçam ao magistrado sentenciante a pacífica certeza da ocorrência dos fatos censurados e apontem sua autoria.
Existindo fragilidade nas escoras probatórias, todo o juízo edificado padece de segurança, dando margem às arbitrariedades e pondo em risco o ideal de justiça preconizado pelas sociedades democráticas.
In casu sub examine, as provas produzidas nas fases policial e judicial, não são suficientes, para expedição de uma condenação criminal.
E se as provas apresentadas não forem aptas a apoiar a convicção do magistrado, dando segurança para embasar um decreto condenatório, o acusado deve ser absolvido.
Nessa linha de pensar, e forçoso convir que “Ante a insuficiência de conjunto probatório capaz de sustentar um Decreto condenatório e, não restando demonstrada a autoria do delito por parte do recorrido, é de se conceder provimento ao recurso para, nos termos do art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal“.
De rigor que se anote, ademais, que “Revelando-se as provas colhidas no inquérito policial e em juízo, frágeis e duvidosas, impõe-se a absolvição do réu, por insuficiência de provas, nos termos do artigo 386, incisos VI, do CPP.
Na dúvida, é mais do que ressabido, não se condena. Se o conjunto probatório não for suficiente para afastar toda e qualquer dúvida quanto à responsabilidade criminal do acusado, “imperativa é a prolação de sentença absolutória. Inteligência do art. 386, VI, do CPP. Em matéria de condenação criminal, não bastam meros indícios. A prova da autoria deve ser concludente e estreme de dúvida, pois só a certeza autoriza a condenação no juízo criminal. Não havendo provas suficientes, a absolvição do réu deve prevalecer“
Todos sabemos, todos sabem que, para condenar, “Não bastam indícios e presunções para que o estado-juiz possa condenar o acusado. É indispensável que a prova constitua uma cadeia lógica que conduza à certeza da autoria. Se um dos elos dessa cadeia mostra-se frágil, se algum mosaico do estrado probatório comparece destruído, outra alternativa não resta, a não ser a absolvição do acusado. E assim ocorre, quando o reconhecimento do infrator pelas pessoas presentes na cena do crime não corresponde à realidade fática.
Todos sabem, mas não é demais repetir que “O sistema de livre apreciação da prova não outorga poderes absolutos aos Juízes, posto que a exigência de prova cabal é imprescindível. Acolhem-se os embargos infringentes ajuizados por E.C. para o fim de absolvê-lo da imputação de estar incurso nas penas do art. 157, § 2º, incisos I, II e V, do Código Penal, com fundamento no art. 386, inciso VI, do CPP, devendo ser expedido o competente alvará de soltura”.
Apesar de tratar-se de lugar comum, não se pode deslembrar que “A condenação criminal não pode ser ditada por mero juízo de probabilidade, devendo estar alicerçada em elementos seguros da autoria criminosa, mormente se considerado que o Direito Penal não opera com conjecturas, estando o sistema penal assentado na presunção de inocência do réu”.
Tudo de essencial posto e analisado, julgo improcedente a denúncia, para, de conseqüência, absolver o F. M. da imputação que lhe é feita pelo Ministério Público, o fazendo com espeque no inciso VII, do artigo 386, do Digesto de Processo Penal.
P.R.I.
Com o trânsito em julgado, arquivem-se os autos, com a baixa em nossos registros.
Façam-se as comunicações necessárias, especialmente à distribuição.
Sem custas.
São Luis, 20 de novembro de 2008.
Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal
Fernando Capez, Curso de Direito Penal, |Parte Geral, Vol.I, editora Saraiva, p.28
Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, 2ª edição, editora Revista dos Tribunais, p.119
Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, ob. cit.p.119
Júlio Fabbrini Mirabete, in Processo Penal, 17ª edição, Editora Atlas, p. 274).
Paulo Lúcio Nogueira in Curso Completo de Processo Penal, Editora Saraiva, p. 141).
VICENTE GRECO FILHO, in Manual de Processo Penal, Editora saraiva, p. 173.
TREPB – PROC 2438 – (1864) – Rel. Juiz Marcos Cavalcanti de Albuquerque – DJPB 20.08.2003) JCPP.386 JCPP.386.VI
TJAC – ACr 02.002253-0 – (2.410) – C.Crim. – Rel. Des. Francisco Praça – J. 04.04.2003) JCPP.386 JCPP.386.VI
RT 708/339). Recurso a que se nega provimento. (TJMG – APCR 000.303.473-3/00 – 1ª C.Crim. – Rel. Des. Tibagy Salles – J. 13.05.2003) JCPP.386 JCPP.386.VI
TACRIMSP – EI 1.206.087-2/1 – 6ª C. – Rel. Juiz Almeida Sampaio – J. 20.06.2001) JCPP.386 JCPP.386.VI JCP.157 JCP.157.2 JCP.157.2.I JCP.157.2.II JCP.157.2.V
TJDF – APR 19980410044446 – DF – 2ª T.Crim. – Rel. Des. Romão C. Oliveira – DJU 23.10.2002 – p. 79) JCPP.386 JCPP.386.VI
Apelação nº 1.326.641/0, Julgado em 29/01/2.003, 9ª Câmara, Relator: Pedro de Alcântara, RJTACRIM nº 64/129.