Sentença absolutória. Apropriação Indébita.

Para tipificação do crime de apropriação indébita a posse da res não pode ter sido alcançada por meios ilícitos.

No caso sub examine, ao que dimana do patrimônio probatório amealhado, não há provas da posse lícita da res, daí o entendimento de que não restou tipificado o crime de apropriação indébita.

Em determinado excerto da decisão, a propósito, consignei, verbis:

  1. É de relevo que se diga que, na apropriação indébita, a coisa não é subtraída ou ardilosamente captada do seu dono, como, ao que parece – e aqui especulo, vez que não há provas desse fato -, ocorreu no caso presente.

Noutro excerto, consignei:

  1. A considerar o que restou apurado em sede judicial, a detenção da res pelo acusado não era sequer legítima, daí a atipicidade de sua conduta – a considerar, sempre, as provas produzidas no ambiente judicial.

A seguir, a decisão, integralmente.

PROCESSO Nº 153852004
AÇÃO PENAL PÚBLICA
ACUSADO: A. B. DE O.
VÍTIMA: M. O. F.

Vistos, etc.

Cuida-se de ação penal que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra A. B. DE O., devidamente qualificado, por incidência comportamental no artigo 168 do Codex Penal, em face de ter-se apropriado de uma bicicleta de propriedade M. O. F., cujos fatos estão narrados na prefacial, a qual, no particular, passa a compor o presente relatório.
A persecução criminal teve início com a autuação em flagrante do acusado. (fls.07/12)
Recebimento da denúncia às fls.28/29.
O acusado foi qualificado e interrogado às fls.80/82.
Defesa prévia às fls.85/86.
Durante a instrução criminal foram ouvidas as testemunhas J. DO E. S. Q. (fls.118) e F. G. R. (fls.165/169)
Na fase de diligências nada foi requerido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO. (fls.184.), bem assim a defesa.(fls.186v.)
O MINISTÉRIO PÚBLICO, em alegações finais, pediu a condenação do acusado, nos termos da denúncia. (fls.188/192)
A defesa, de sua parte, pediu a) a absolvição do acusado reconhecendo que o mesmo agiu em erro de proibição como causa excludente de sua culpabilidade, b)subsidiariamente a sua absolvição por insuficiência de provas e c) subsidiariamente, ainda, a absolvição do acusado por apropriação indébita de uso, com a conseqüente atipicidade de sua conduta.(fls.194/199)

Relatados. Decido.

O MINISTÉRIO PÚBLICO ofertou denúncia contra A. BE. DE O., por incidência comportamental no artigo 168 do Digesto Penal, em face de ter-se se apropriado de uma bicicleta de propriedade de MA. O. F..
O bem jurídico protegido pela norma penal é a inviolabilidade do patrimônio; protege o direito de propriedade contra eventuais abusos do possuidor, que possa ter a intenção de dispor da coisa como sua.
O pressuposto do crime de apropriação indébita é a anterior posse lícita da coisa alheia, da qual se apropria o agente indevidamente.
A posse, que deve preexistir ao crime, deve ser exercida pelo agente em nome alheio e, repito, tem que ser lícita.
No crime de apropriação indébita há uma inversão do título de posse. O agente, para que se tipifique o crime em comento, de posse de coisa alheia, passa a agir como se dono fosse.
O crime se consuma com a inversão da natureza da posse, caracterizada por ato demonstrativo de disposição de coisa alheia ou pela negativa em devolvê-la.
O animus rem sibi habendi, característico do crime de apropriação indébita, precisa ficar indubitavelmente demonstrado. Repito: O animus rem sibi habendi, característico do crime de apropriação indébita, precisa ficar cabalmente demonstrado Se não ficar clara e induvidosamente demonstrada a intenção de ficar com o bem, o dolo da apropriação indébita se esmaece.
A par dessas diretrizes, passo ao exame das provas amealhadas nos autos.
A persecução criminal teve início com a prisão em flagrante do acusado, o qual disse que pediu emprestada a bicicleta ao ofendido, para, depois, vendê-la por R$ 20,00(vinte reais) e, com o dinheiro, beber cachaça no bar Casa dos Artistas. (fls.08/09)
O ofendido confirmou que emprestou a bicicleta ao acusado e que este lhe disse que a empenhou por R$ 15,00(quinze reais).(fls.08)
Encerrada a fase administrativa, o acusado foi denunciado neste juízo, por incidência comportamental no artigo 168 do Digesto Penal.
O acusado, ouvido em sede judicial, negou a autoria do crime, dizendo que, em verdade, o ofendido empenhou a bicicleta a ele, acusado, por R$ 20,00(vinte reais), para (ele, ofendido) beber cachaça, uma vez que é alcoólatra. (fls.80/82)
O acusado disse, adiante, que o ofendido prometeu devolver o dinheiro que recebeu emprestado no outro dia, porém não o fez. (ibidem)
Noutro excerto, o acusado disse que esperou por três dias a devolução do dinheiro, sem qualquer satisfação por parte do ofendido, tendo, por isso, decidido vender a bicicleta.(ibidem)
O acusado finalizou dizendo que deu a bicicleta para cobrir uma conta de R$ 25,00 num bar de propriedade de Ronaldo de tal, localizado no Cohatrac. (ibidem)
Dando prosseguimento à produção de provas, foi ouvida a testemunha J. DO E. S. Q., o qual informou que o acusado, por ser viciado, adota essa prática de pedir bicicleta emprestada, para, depois, vender por uma pequena importância, para comprar drogas.(fls.118)
Noutro fragmento, a testemunha disse que o que sabe acerca do crime foi narrado pelo ofendido.(ibidem)
É dizer: sobre o crime propriamente, nada disse a testemunha que pudesse fazer crer que o acusado tivesse se apropriado indevidamente da bicicleta do ofendido.
F. G. R., testemunha arrolada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, também foi inquirido, o qual, a exemplo de J. DO E. S. Q., nada soube acerca do crime narrado na denúncia. (fls.165/169)
Num determinado excerto a testemunha disse que os dois – acusado e ofendido – eram acostumados a beber juntos, se embriagarem e pegar a bicicleta um do outro, levar para casa e depois devolver.
Adiante, complementando uma indagação formulada por ocasião do seu depoimento, a testemunha disse que habitualmente acusado e vítima procediam dessa forma, ou seja, se embriagavam e pegam bicicletas uns dos outros,
Encerrada a produção de provas, vieram-me os autos conclusos para decidir.
Depois do exame das provas a conclusão a que chego é a de que não há provas, produzidas sob o crivo do contraditório, extreme de dúvidas, inconcussas e inquestionáveis, de que o acusado tenha, efetivamente, se apropriado, indevidamente, da bicicleta do ofendido.
Ao que pude inferir do conjunto de provas, o réu e o ofendido são dois desocupados e irresponsáveis, que vivem de pequenas falcatruas, do uso de drogas, bebidas alcoólicas de pequenos ilícitos.
As duas testemunhas ouvidas em sede judicial não trouxeram um único dado que pudesse fazer concluir que o acusado tenha se apropriado da bicicleta do acusado, depois de ter a posse lícita da mesma.
O acusado, é verdade, disse, em sede administrativa, que se apossou da bicicleta do ofendido, para, depois, vende-la por R$ 20,00(vinte reais), para beber cachaça.
Mas essa confissão do acusado, em sede policial, não encontrou ressonância nas provas produzidas em sede judicial; e sem provas produzidas sob o crivo do contraditório, não se pode chamar, para compor o conjunto de provas, as produzidas na fase inquisitória.
Não há provas, mínimas que sejam, de que o acusado, ao tomar posse da bicicleta do ofendido, o tenha feito com a vontade de ter a coisa para si.
A considerar o depoimento da testemunha Francisco Gomes Rodrigues, o acusado agiu como agem, habitualmente, os marginais que compõem o bando de desocupados ao qual pertence, também, o ofendido: pegou a bicicleta, saiu e a vendeu para beber cachaça. Isso entre eles era quase um “direito costumeiro”, muito embora contrário à ordem legal estabelecida.
Essa ação do acusado, ao que dimana do depoimento de Francisco Gomes Rodrigues, era aceita como regra costumeira, repito, por todos os membros do bando a que pertencem ele e o ofendido.
Não se pode falar, validamente, pois, em animus rem sibi habendi. Não há provas tomadas em sede judicial – repito: em sede judicial – de que o acusado tenha se apossado da res para dela se apropriar com o animus tipificador do crime de apropriação indébita.
Do que examinei nos autos, a atitude do acusado pode, até, tipificar outro crime – furto, por exemplo -, mas não apropriação indébita;
As conclusões que expendo nesta decisão decorrem, repito, das provas emolduradas na sede das garantias constitucionais. E elas, importa dizer, nada esclarecem sobre o crime. O que ficou demonstrado foi, tão-somente, a habitualidade do ofendido e do acusado de se embriagar e pegarem as bicicletas uns dos outros para fazer dinheiro e beber cachaça.
Nesse sentido, acusado e ofendido são dois típicos marginais, ou seja, vivem à margem da lei.
Um dos pressupostos da apropriação indébita é a anterior posse lícita da coisa alheia. Essa posse lícita não foi sequer ventilada em sede judicial.
Não há provas, produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, mínimas que sejam, de que, no caso específico da bicicleta do ofendido, o acusado tenha exercido a posse do bem em seu nome (do ofendido) e com seu consentimento.
É possível, sim, que o acusado tenha se apossado da bicicleta do ofendido, com o consentimento deste, e, depois, não tenha pretendido devolvê-la.
Mas como é possível aferir essa intenção, se as provas tomadas em sede judicial não a demonstram? Como afirmar que o acusado tomou a posse da bicicleta em razão da confiança depositada nele pelo ofendido, se não há nenhum dado que comprove essa relação de confiança?
É de relevo que se diga que, na apropriação indébita, a coisa não é subtraída ou ardilosamente captada do seu dono, como, ao que parece – e aqui especulo, vez que não há provas desse fato -, ocorreu no caso presente.
A considerar o que restou apurado em sede judicial, a detenção da res pelo acusado não era sequer legítima, daí a atipicidade de sua conduta – a considerar, sempre, as provas produzidas no ambiente judicial.
A posse, para tipificação do crime de apropriação indébita, não pode ter sido obtida por meios ilegais ou criminosos, sob pena de se desfigurar o crime em comento.
A par dessa afirmação, indago: onde, na fase judicial, se faz menção à legalidade da posse do acusado? Onde, na mesma sede, se tem informações de que o acusado tenha alcançado a posse da bicicleta de forma licita?
Diante dessas indagações, o que posso afirmar é que, a par das provas colhidas em sede judicial, o que se tem é a notícia de que acusado e ofendido são dois marginais que assimilaram como normal entre eles se apossarem de bicicletas uns dos outros, para, com eles, fazerem dinheiro para beber cachaça e usar drogas. Só isso. Nada mais que isso. E isso, só isso provado, não autoriza o reconhecimento da tipificação do crime de apropriação indébita.
TUDO DE ESSENCIAL POSTO E ANALISADO, julgo improcedente a denúncia formulada pelo Ministério Público contra A. B. DE O., brasileiro, solteiro, serigrafista, nas cido aos vinte e um dias do mês de junho de 1977, filho de Z. O. e L. B. de O., residente na Rua 03, Quadra 32, Casa 30, Cohatrac II, nesta cidade, para, de conseqüência, absolve-lo da imputação que lhe é feita, o fazendo com espeque no inciso VI, do artigo 386, do Digesto de Processo Penal.
P.R.I.
Sem custas.
Após o trânsito em julgado, arquivem-se, com a baixa em nossos registros, comunicando, a seguir, à distribuição, para os devidos fins.

São Luis, 15 de maio de 2008.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

2 comentários em “Sentença absolutória. Apropriação Indébita.”

  1. Parabens, alem de ser uma sentença na qual foi aplicada a lei penal, transcreveu o magistrado possibilitando aos amantes do direito uma verdadeira aula.

  2. Absurdo.
    Se apropriação indébita não houve, por ausência de prova da obtenção da posse lícita, houve furto.

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