Desclassificação. Possibilidade de nova definição jurídica do fato.

Encerrada a instrução, o Ministério Público e a defesa postularam a absolvição do acusado, em face da atipicidade de sua conduta. Ocorreu, entrementes, que, ao analisar as provas, antevi a possibilidade de dar-se nova definiçao juridica ao fato, razão pela qual procedi de conformidade com o que prescreve o artigo  384 e seguintes do Digesto de Processo Penal.

Acerca da quaestio assim me posicionei:


  1. De tudo que examinei acima, compreendo, na esteira do entendimento do órgão ministerial e da defesa, que a ação do acusado, em relação ao crime de disparo de arma de fogo em via pública, é atípica, pois que, seguramente, do local em que efetuou o disparo, para o alto, não se pode dizer, validamente, que  tenha colocado em risco a vida ou a saúde de outrem.
  2. Compreendo, no entanto, no que discrepo da defesa e do Ministério Público, que o desfecho absolutório não é o melhor caminho, em face de ser viável uma nova definição jurídica do fato, em face das provas produzidas nos autos sub examine.

 

A seguir, a decisão, integralmente.

Processo nº 237592007

Ação Penal Pública

Acusado: Kelson de Sousa Leite

Vítimas: Incolumidade Pública

                                   

 

Vistos, etc.

 

Cuida-se de ação penal que move o Ministério Público contra Kelson de Sousa Leite, qualificado nos autos,  por incidência comportamental no artigo       15 do Estatuto do Desarmamento, em face de, no dia  14 de outubro de 2007, por volta de 01h00 da madrugada, na Avenida Litorânea, nesta cidade, ter efetuado disparos de arma de fogo.

A persecução criminal teve início com a prisão em flagrante do acusado.(fls.06/12)

Auto de apresentação e apreensão às fls. 12

A prefacial foi recebida às fls. 71/72.

Laudo em exame em arma de fogo às fls. 75/76.

O acusado foi qualificado  e interrogado às fls. 83/85.

Durante a instrução criminal foram ouvidas as testemunhas   José Ribamar Cantanhede Carvalho (fls.94/95) e Heráclito Lima Garcez .(fls.96/98)

Na fase de diligências nada foi requerido pelas partes.(fls.90)

Em alegações finais, o Ministério Público pediu a absolvição do acusado, em face da atipicidade de sua conduta, tendo em vista que o disparo não foi efetuado em via pública. (fls.108/111)

A defesa, de seu lado,  na mesma senda das alegações finais do Ministério Público, pediu a sua absolvição, tendo em vista que, na sua avaliação, o disparo não gerou qualquer perigo concreto para a coletividade e, subsidiariamente, a declaração da inconstitucionalidade do artigo 15 do Estatuto do Desarmamento,  por ofensa ao devido processo legal em sentido material. (fls.133/138)

 

Relatados. Decido.

                                  

Os autos albergam ação penal que move o Ministério Público contra  Kelson de Sousa Leite, por incidência comportamental no artigo 15 do Estatuto do Desarmamento, em face de, no dia  14 de outubro de 2007, por volta de 01h00 da madrugada, na Avenida Litorânea, nesta cidade, ter efetuado disparo de arma de fogo.

A peça acusatória, como “ato processual que formaliza a acusação, foi recebida, em face de atender aos requisitos formais, as condições genéricas da ação e os pressupostos processuais.

O objeto jurídico do crime em comento é a incolumidade pública.

O sujeito passivo é o Estado, primeiramente. Em segundo lugar, a pessoa exposta ao perigo decorrente do disparo.

Duas são as condutas incriminadas no dispositivo: I -disparar arma de fogo; ou  II – acionar munição.

Cuida-se de crime formal que independe de outro resultado naturalístico. Assim sendo, o simples disparo de arma de fogo já caracteriza o crime.

Para sua tipificação exige-se  que o agente tenha colocado em perigo ou em risco (concreto) a incolumidade física de alguém

A persecução criminal, como é praxe no sistema penal brasileiro, se desenvolveu em dois momentos distintos – sedes policial e judicial.

Na fase extrajudicial, um dos dois momentos da persecutio criminis , o acusado foi ouvido, tendo admitido  que efetuou disparo de arma de fogo, quando caminhava na orla marítima da Avenida Litorânea.(fls.10/11)

O acusado admitiu que efetuou o disparo para o alto, local onde não havia muita aglomeração de pessoas. (ibidem)

Na fase extrajudicial foi formalizada a apreensão da arma instrumento do disparo.(fls.12)

Na mesma fase foi periciada a arma apreendida, tendo sido constatado a sua eficiência.(fls.75/76)

Com esses dados relevantes, encerrou-se a fase preambular da persecução criminal, donde se pode inferir que, até aqui,  não há dúvidas de que o acusado, efetivamente, efetuou disparo de arma de fogo na Av. Litorânea desta cidade.

Conquanto relevantes os dados amealhados na fase extrajudicial, devo, em tributo à ampla defesa e contraditório, analisar as provas produzidas em sede judicial, para, a partir delas, decidir acerca da culpabilidade do acusado.

Com os dados colacionados em sede extrajudicial, teve início a persecução criminal em sua segunda fase (artigo 5º, LIV, CF),   com Ministério Público imputando  ao acusado Kelson de Sousa Leite a prática do crime de disparo de arma de fogo em via pública.(artigo 15, do ED)

Na sede judicial o acusado foi interrogado, tendo, mais uma vez, admitido ser verdadeira, em parte, a acusação.(fls.83/85)

O acusado disse que não atirou para atingir ninguém e que o fez num momento de euforia, porque estava alcoolizado.(ibidem)

Em seguida foram ouvidas as testemunhas do rol do Ministério Público, as quais confirmaram que o acusado, efetivamente, fez disparos para o alto, na praia, próximo da avenida Litorânea.

Do depoimento de José Ribamar Cantanhede Carvalho destaco o excerto no qual afirma que a maré, no dia do fato, estava seca.(fls.94/95)

Do mesmo depoimento destaco o fragmento a seguir transcrito, verbis:

 

Testemunha: não houve esse tipo de perigo até porque era uma área distante, lá embaixo, numa maré seca, ele efetuou o disparo para o alto e a gente estava lá em cima.(95)

 

Heráclito Lima Garcez, de seu lado, confirmou que o acusado efetuou um disparo de arma de fogo, na praia, próximo da Av. Litorânea, estando o acusado embriagado.(fls.94/96)

De tudo que examinei acima, compreendo, na esteira do entendimento do órgão ministerial e da defesa, que a ação do acusado, em relação ao crime de disparo de arma de fogo em via pública, é atípica, pois que, seguramente, do local em que efetuou o disparo, para o alto, não se pode dizer, validamente, que  tenha colocado em risco a vida ou a saúde de outrem.

Compreendo, no entanto, no que discrepo da defesa e do Ministério Público, que o desfecho absolutório não é o melhor caminho, em face de ser viável uma nova definição jurídica do fato, em face das provas produzidas nos autos sub examine.

Vislumbrando, portanto, a possibilidade de dar-se nova definição jurídica ao fato – porte ilegal de arma de fogo e não disparo de arma de fogo – segundo a prova produzida, determino seja dado vista dos autos ao Ministério Público, para eventual aditamento, tudo de conformidade com o que prescreve o artigo 384 do Digesto de Processo Penal.

Dê-se ciência à defesa desta decisão.

Intime-se o Ministério Público, para que, no prazo de cinco dias, adite a denúncia, se assim entender.

Passados cinco dias, com ou sem aditamento, voltem os autos conclusos.

São Luis, 05 de dezembro de 2008.

 

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

            Titular da 7ª Vara Criminal

 

 


“Ultrapassada a fase da vingança privada e da autotulela como forma de justiçamento, O Estado passou o detentor exclusivo do Direito de punir” (Fernando Capez, Curso de Processo Penal,13ª edição, Saraiva, p. 28). “Se, como vimos, a persecução penal é dever do Estado, (…) uma vez praticada a infração, cumpre também a ele, em princípio, a apuração e o esclarecimento dos fatos e de todas as suas circunstâncias”. (Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, 4ª Edição, Editora Del Rey, 2005, p. 26)

Como se sabe, a aplicação de sanções é, hoje, função privativa do Estado, isto é, o Estado é o único autorizado a impor uma pena a um infrator, ainda que esse pena seja determinada em lei.

   Dessa forma, é preciso assegurar um meio pelo qual a ocorrência do crime chegue ao conhecimento do Estado. Se isso não ocorrer – se um órgão do Estado não vier a conhecer com mínima precisão o autor e as circunstâncias da prática delituosa -, abre-se oportunidade para que ocorram inúmeras injustiças, consubstanciadas na condenação de pessoas inocentes, ou na impunidade de quem seja culpado (Edílson  Mougenot Bonfim, Curso de Processo Penal, 4ª edição, Editora Saraiva, 4ª edição, p.97)

O Ministério Público propôs a ação penal porque é dela, in casu, a representação do interesse social. É dele, Ministério Público, a missão de fazer reinar o direito.

Jose Frederico Marques, Elementos de Direito Processual, v. II, p. 177

A persecutio criminis é o caminho percorrido pelo Estado  para que seja aplicada a pena ou medida de segurança a quem cometeu uma infração.

Art. 5º omissis.

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

  Disparo de arma de fogo

        Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:

        Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

 

 

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

2 comentários em “Desclassificação. Possibilidade de nova definição jurídica do fato.”

  1. Nas minhas “andanças” pela web, dei sorte de encontrar está pagina que Vossa Excelência disponibiliza, com conteúdo muito bom e para aqueles que ainda pelejam em busca de aprovação em concursos públicos por este Brasil afora. A oportunidade de ver o direito sendo aplicado torna mais fácil o aprendizado de institutos às vezes de compreensão árida. Parabéns e obrigado pela generosidade.

  2. Concordo,plenamente, com o Edson Lima, ” a oportunidade de ver o direito sendo aplicado”, tem facilitado e muito, meu entendimento do direito de uma forma geral. Obrigado, meretíssimo, pela sua nobre contribuição.

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