Sentença absolutória. Insignificância da lesão. Atipicidade.

Na decisão a seguir publicada, reconheci, em determinado fragmento, com humildade, que jamais deveria ter recebido a denúncia, em face da insignificância da lesão.

O fiz nos termos abaixo, verbis:

  1. Foi nesse contexto que, infelizmente, lancei nestes autos o despacho de recebimento da denúncia, que, de rigor, nunca deveria sequer ter sido ofertada, em face da insignificância da lesão.
  2. É quase certo que, cuidando dessas e de outras questões irrelevantes para o direito penal, tenhamos, noutras oportunidades, deixado de lado questões muito mais importantes, como os crimes de roubo, por exemplo, cujos autores têm infernizado a vida de todos nós.

 

Enfrentando o mérito, com o reconhecimento da insignificância da lesão, anotei, dentre outros fundamentos, litteris:

  1. A subtração de um litro de mel, convenhamos, somente à primeira vista estaria compreendido na figura típica do artigo 155 do CP.
  2. Analisada, no entanto, com o devido desvelo, a sua real importância, conclui-se que não está a merecer a atenção daquele que se considera o ramo mais radical do ordenamento jurídico, qual seja, o direito penal.
  3. A conduta do acusado, impõe-se reconhecer, foi absolutamente irrelevante, daí que a ofensividade ao direito do ofendido foi mínima, daí poder-se afirmar que a perigosidade social da ação do acusado foi nenhuma, em face do reduzidíssimo grau de reprovabilidade do seu comportamento.

 

Adiante, obtemperei, na mesma senda:

  1. Analisada a ação do acusado, em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, há que se excluir a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material.

A seguir, a sentença, por inteiro.

 

PROCESSO Nº 186362001
AÇÃO PENAL PÚBLICA
ACUSADO: G. DOS S. S., VULGO NIKE.
VÍTIMA: J. R. S. C.

Vistos, etc.
Cuida-se de ação penal que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra G. DOS S. S., vulgo Nike, e J. M. F., vulgo Mantena, por incidência comportamental no artigo 155, §4º, IV, e 163, parágrafo único, III, do CP. em face de, no dia 16 de dezembro de 2001, terem furtado de J. R. C. um garrafão com cinco litros de mel, tendo o primeiro denunciado resistido à prisão e danificado uma viatura policial, quebrando a grade e o vidro lateral da mesma, enquanto que o segundo logrou fugir sem ser preso
A persecução criminal teve início com o auto de prisão em flagrante do acusado G. DOS S. S.. (fls. 05/08)
Auto de apresentação e apreensão às fls.11.
Termo de entrega às fls. 12.
Recebimento da denúncia às fls.43.
O acusado G. DOS S. S., foi qualificado e interrogado às fls. 53/55
Defesa prévia às fls. 58/59.
Determinada a separação em relação ao acusado J. M. F. às fls. 61.
Durante a instrução criminal foram ouvidas as testemunhas M. C. C. (fls.81), J. B. C. C. (fls. 82), J. N. F. S. (fls.83), J. DA A. DA S. (fls. 103) e A. R.S. M.. (fls.117)
Na fase de diligências as partes nada requereram.(fls.118)
O MINISTÉRIO PÚBLICO, em alegações finais, pediu a absolvição do acusado. (fls.130/134).
A DEFESA do acusado, de seu lado, pediu I – a sua absolvição, alegando ser atípica a sua ação, em face do princípio da insignificância, II – subsidiariamente a sua absolvição, por não haver provas de que tenha concorrido para o crime, III – a desclassificação da imputação para fazê-la recais no caput do artigo 155, IV – uma vez operada a desclassificação, que seja intimado o representante do MINISTÉRIO PÚBLICO, para fazer a proposta de suspensão do processo, e, finalmente, V – o reconhecimento, alternativamente, do chamado crime privilegiado. (fls. 136/140)

Relatados. Decido.

01.00. Para compreender o alcance desta decisão, anoto que a ação penal foi promovida, inicialmente, contra G. DOS S. S. e J. M. F..
02.00. Em face da incerteza do paradeiro do acusado J. M. F., determinei a separação do processo, o qual só prosseguiu, até aqui, em desfavor do acusado G. DOS S. S..
03.00. Cediço, à luz do exposto, que esta decisão só diz respeito ao acusado G. DOS S. S..
04.00. Feitas as observações necessárias, passo à decisão.
05.00. Desde meu ponto de observação posso afirmar que, para mim, está-se aqui defronte de uma atipicidade, em face da absoluta irrelevância da ação do acusado.
06.00. Confesso que se a mim me fosse dado tempo para analisar os processos com o vagar que entendo necessário, a denúncia não teria sequer sido recebida.
07.00. Infelizmente, todos sabem, nós, juizes, para atendermos a demanda, somos compelidos a trabalhar premidos pelo tempo, o que nos tem impedido de analisar as questões submetidas à intelecção com a detença que se está a exigir em casos que tais.
08.00. A propósito, nos últimos meses desse ano publiquei no JORNAL PEQUENO e na INTERNET, vários artigos refletindo sobre a pressa que temos em decidir e a inviabilidade, dela decorrente, de se analisar as questões com o devido desvelo.
09.00. Num dos artigos da série A JUSTIÇA CRIMINAL QUE SOMOS OBRIGADOS A (NÃO) FAZER, expendi as seguintes considerações, verbis:

“…De tudo o que expus nas três reflexões que se encerram agora, o que auguro é que o leitor/jurisdicionado compreenda que nós, magistrados criminais, no exercício de nossas atividades, premidos pela falta de tempo e, muitas vezes, pela falta de condições de trabalho, fazemos a Justiça criminal que podemos fazer, que está ao nosso alcance, com força de vontade, com pertinácia, superando, com denodo e sofreguidão, as nossas limitações intelectuais e materiais.
De tudo o que expus desejo, ademais, que se compreenda que se os processos se acumulam, se não somos capazes de atender, como deveríamos, às expectativas do cidadão, se somos obrigados a colocar em liberdade um meliante, não o fazemos por descaso.
De tudo que expus desejo que se compreenda, outrossim, que não somos máquinas produtoras de decisões e que, enquanto seres humanos, falíveis e frágeis como qualquer outro – ainda que muitos, em face do poder que têm, se imaginem semideuses, dominados, impregnados por uma vaidade mórbida -, nós também somos vítimas do funcionamento capenga das nossas instituições.
De tudo que expus desejo, finalmente, que se compreenda que a justiça criminal que (não) fazemos é tudo o que não gostaríamos de produzir.
As intempéries, as dificuldades, os reveses, os erros cometidos, as decisões equivocadas, o mau conceito, tudo isso, enfim, ocorre para lembrar aos mortais – e, também, aos magistrados que se julgam semideuses, em face da toga que lhes cobrem os ombros e, muitas vezes, a consciência -, que, como qualquer outro ser humano, ainda que, muitas vezes, se imagine acima do bem e do mal, os meritíssimos também são falíveis e, também, vítimas da inoperância dos órgãos responsáveis pela persecução criminal.

10.00. Em outra oportunidade, mas em face das mesmas questões, refleti nos termos abaixo, litteris:

“…Nesse contexto, o juiz, como um operário que tem que prestar contas da produtividade no final do dia ao seu patrão – no caso do juiz o patrão é, somente – pasme! -, à sua consciência – , trabalha celeremente, freneticamente, açodadamente, agitadamente, sem tempo para refletir, com o pensamento impregnado de preocupação pelos afazeres que se avolumam.
O juiz, assim agindo, assim trabalhando, não se dá conta, muitas vezes, de que quanto mais produz menos se aproxima da almejada – e ilusória – verdade real ou material.
Para mim, e aqui assumo a minha culpa, o juiz que ouve trezentas e vinte pessoas em sessenta dias (e há quem ouça mais, registro) para alcançar uma produtividade respeitável, para cumprir os prazos processuais, coagido, premido pelas circunstâncias e pelas cobranças que a sociedade faz, presta um grande serviço às estatísticas e um péssimo serviço à comunidade em geral e aos acusados em particular.
Dimana de tudo isso, ou seja, dessa produtividade desenfreada, dessa volúpia em busca do cumprimento dos prazos processuais, dessa falta de detença no exame das questões fáticas, algo de especial gravidade, que, ao que parece, não é objeto de preocupação dos que se embevecem com as estatísticas: o magistrado, não raro, não tem condições de viver o processo com a intensidade que dele se espera.
O corre-corre sem limite, o açodamento na coleta das provas, a pressa na produção do patrimônio probatório, nos compele a julgar, muitas vezes, sem esmero, sem o cuidado devido, sem examinar percucientemente as questões jurídicas e fáticas submetidas a exame.
Repito que esse quadro, ou seja, essa produtividade desembestada, em vez de me fazer orgulhoso, antes me deprime. Eu não gosto de decidir sem noção de quem seja, por exemplo, o acusado. Todavia, sou obrigado a fazê-lo, pois tenho que cumprir os prazos processuais, sobretudo quando os acusados estão presos. E o cumprimento dos prazos, para não ter que responder pela omissão, me impulsiona para o açodamento, para a decisão, muitas vezes, distante daquilo que considero ideal.
Nessa linha de raciocínio, releva anotar que em poucos, raros processos-crime o magistrado consegue, por exemplo, se lembrar razoavelmente das pessoas envolvidas no conflito. Pelo menos comigo, que não tenha uma inteligência privilegiada, isso acontece até com certa freqüência, dada a quantidade de processos que tenho que instruir e julgar.
A pressa de produzir, a agenda esgarçada, o tempo diminuto reservada para cada depoimento, o corre-corre do dia-a-dia, os incontáveis pedidos formulados nos mais diversos processos – relaxamente de prisão, liberdade provisória, revogação de prisão preventiva, decreto de prisão preventiva, restituição de bens, insanidade mental, quebra de sigilo bancário e telefônico, dentre outros – , as inúmeras sentenças a prolatar, as audiências formais e informais – com advogados e, muitas vezes, com as partes envolvidas, direta ou indiretamente no conflito, -, os habeas corpus para informar, tudo isso, enfim, nos transforma em máquinas de decidir, sem emoção, sem sentimento, sem viver intensamente o processo, condicionado a apresentar o máxime de produtividade, por razões que nem mesmo sabemos, pois que ela só serve mesmo para o deleite pessoal do julgador – e nada, nada mais!
O juiz, na minha avaliação, não pode agir – mas, às vezes, age – como agem os animais irracionais. O juiz não pode agir – mas age, muitas vezes – como se não tivesse sangue nas veias. O juiz não pode ser apenas uma máquina produtora de decisões, uma máquina alimentadora de dados estatísticos, afinal nós lidamos com bens de especial valor das pessoas envolvidas no conflito.
Compreendo que para bem julgar é preciso viver intensamente o problema posto sob as mãos e inteligência. Se assim não for – e não é, muitas vezes – o juiz pode até se orgulhar de ser isento, mas isenção, nos moldes aqui mensurados, se confunde – e pode até ser mesmo – com indiferença, eqüidistância, com falta de sensibilidade. E nós, julgadores, sobreleva consignar, não podemos ser insensíveis, descurados, distantes, frios. Frieza e insensibilidade são apanágios dos canalhas, dos calhordas e o juiz não pode ser nem uma coisa e nem outra – juiz tem que ser juiz, só juiz, nada mais que juiz.
Os juizes não podem ser apenas máquinas produtoras de dados estatísticos para impressionar, para ser exibidos, pois quanto mais produzimos, quanto mais alimentamos as estatísticas, mais nos afastamos do ideal de justiça, mais descuramos do senso de justiça que deve permear toda a nossa atividade judicante.
Os juízes criminais – e haverá quem discorde – ao mesmo tempo que procuram ser isentos no exame das questões, se tornam, sem que assim o desejem, indiferentes e eqüidistantes dessas mesmas questões, pela singela razão de que não podem se dedicar como deveriam e gostariam, pela necessidade que têm de produzir – produzir e produzir – e alimentar – alimentar e alimentar -, os mapas estatísticos, tão ao gosto dos insensíveis e descomprometidos.
Na minha avaliação, o juiz não deve ser avaliado pela quantidade de sentenças e despachos que produz. O juiz deve ser avaliado pela qualidade do seu trabalho, pela retidão de suas decisões, pela isenção que anima toda a sua capacidade laboral.
Será, francamente, que quem toma o depoimento de 320 pessoas, em 60(sessenta) dias de trabalho, tem condições de, de posse do processo para julgar, se recordar, por exemplo, qual era o ânimo do acusado ao tempo em que foi interrogado? Como se recordar, por exemplo, se o acusado, diante da ciência dos fatos, mostrou-se arrependido, indiferente, arrogante, preocupado ou tenso?
Essas respostas, a meu ver, são impossíveis de ser dadas quando se trabalha apenas com dados estatísticos, os quais, não raro, só servem mesmo para impressionar – nada, nada mais que isso!
Por pior que seja o acusado, ele não pode ser apenas um dado estatístico, afinal, por mais grave que tenha sido o crime que praticou, não pode merecer, como tem merecido, o desprezo do Estado, por seus órgãos persecutórios; desprezo que começa na fase periférica da persecução e que se prolonga até o trânsito em julgada da decisão – condenatória ou não.
Para mim – e sei que há os que discordam dessa posição – o magistrado, para bem decidir, não pode trabalhar com um olho no processo e o outro nas estatísticas. O magistrado, para bem decidir, tem que ter sob seu comando um número mínimo de processo – quiçá duzentos – , para que possa conhecê-los mais ou menos. O magistrado, para bem instruir um processo, não deveria instruir mais de um processo ao dia. Tudo o mais é excesso. Mas esse é o quadro que se descortina sob os nossos olhos, ditando a nossa conduta, o nosso comportamento, a nossa maneira de julgar.
É um grave equívoco imaginar que o magistrado, sem tempo para se preparar para uma audiência, sem tempo para ler, antes, o processo sob julgamento, fará um bom trabalho persecutório. Ele pode, assim agindo, quando muito, supor que fez justiça…” .

11.00. Com os excertos a seguir transcritos estou apenas reafirmando que, na pressa, açodado pelo tempo, cobrado pela consciência, muitas vezes, ou quase sempre, fazemos a Justiça penal que é possível, não aquela que almejamos, a que, desde nosso olhar, seria ideal.
12.00. Foi nesse contexto que, infelizmente, lancei nestes autos o despacho de recebimento da denúncia, que, de rigor, nunca deveria sequer ter sido ofertada, em face da insignificância da lesão.
13.00. É quase certo que, cuidando dessas e de outras questões irrelevantes para o direito penal, tenhamos, noutras oportunidades, deixado de lado questões muito mais importantes, como os crimes de roubo, por exemplo, cujos autores têm infernizado a vida de todos nós.
14.00. A subtração de um litro de mel, convenhamos, somente à primeira vista estaria compreendido na figura típica do artigo 155 do CP.
14.01. Analisada, no entanto, com o devido desvelo, a sua real importância, conclui-se que não está a merecer a atenção daquele que se considera o ramo mais radical do ordenamento jurídico, qual seja, o direito penal.
15.00. A conduta do acusado, impõe-se reconhecer, foi absolutamente irrelevante, daí que a ofensividade ao direito do ofendido foi mínima, daí poder-se afirmar que a perigosidade social da ação do acusado foi nenhuma, em face do reduzidíssimo grau de reprovabilidade do seu comportamento.
16.00. Analisada a ação do acusado, em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, há que se excluir a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material.
17.00. Nessa mesma linha de entendimento é a decisão do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA segundo a qual ” O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal”.
18.00. Nos dias presentes, é mais do que sabido, a lei penal não deve ser invocada para atuar em casos de pouco ou nenhuma gravidade, como o que se vê nos autos sub examine.
18.01. O princípio da insignificância surgiu exatamente para evitar situações como a que se vê nos autos presentes, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, “com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal”.
20.00. TUDO DE ESSENCIAL POSTO E ANALISADO, considerando a atipicidade da conduta do acusado, porque destituída de qualquer valoração a merecer a tutela penal, JULGO IMPROCEDENTE A DENÚNCIA, para, de conseqüência,

ABSOLVER G. DOS S. S., vulgo Nick, brasileiro, solteiro, pedreiro, filho de M. S. S. e I. S. S., residente na Rua da Esperança, nº 27, Ilhinha, São Francisco, o fazendo com espeque no inciso III, do artigo 386 do Digesto de Processo Penal.

21.00. P.R.I.
22.00. Com o trânsito em julgado, arquivem-se os autos, com a baixa em nossos registros.
São Luis, 23 de dezembro de 2008.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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