“Eu vi minha filha sendo levada numa enxurrada”

Da tragédia que se abateu sobre o Estado de Santa Catarina podemos tirar várias conclusões.  

De tudo a que assisti e li, posso concluir, dentre outras coisas que, mais uma vez, a omissão dos nossos homens públicos foi a grande responsável pela tragédia. Bastava, por exemplo, que houvesse moradia digna para as pessoas mais carentes e nada disso teria acontecido. E não se argumente que isso não é possível, pois todos nós sabemos que, não fosse a corrupção, não fossem os desvios do dinheiro público, recursos haveria em profusão – para habitação, para educação, para segurança e para tudo o mais que fosse necessário para dar o mínimo de conforto e dignidade às pessoas carentes que, infelizmente,  nada mais são do que vítimas do próprio Estado.

É cediço que ninguém mora sobre um morro e/ou ao lado de uma encosta para apreciar as belezas da natureza.  O cidadão mora empoleirado porque não tem habitação. Não é por deleite pessoal. Não é para se sentir superior, mas o faz por necessidade, porque é vítima do abandono estatal. Porque não tem para onde ir, não tem a quem apelar.

Lá, no Sul, como cá, no Nordeste, somos todos órfãos do Estado. O mesmo Estado que é pródigo em mordomias para uma minoria privilegiada e que não é capaz de atender às necessidades mais prementes da população mais carente.

Mas não é minha pretensão nessas reflexões dizer como os nossos homens públicos devem proceder, nem tampouco condená-los publicamente. Pretendo apenas exercer o meu direito de pensar e de exteriorizar o meu pensamento.

Neste artigo, o que pretendo mesmo é refletir acerca de um depoimento que triturou a minha alma, que me tirou o sono, que me fez ver o quanto somos insignificantes, o quanto somos impotentes diante das intempéries da natureza, e do quanto a nossa fragilidade se potencializa quando, à rebeldia da natureza, soma-se a omissão estatal, como se deu em Santa Catarina. 

Durante essa tragédia toda, uma frase/lamento que ouvi de uma senhora me cortou o coração.  Essa senhora – sem forças, alquebrada, sofrida, desonrada, desafortunada, quase sem forças para prosseguir – disse ter visto a sua filhinha ser levada pela enxurrada (jorro de águas sujas ou de imundícies).

Confesso que, diante do que ouvi e do que imaginei ser uma criança sendo levada por uma enxurrada, passei alguns dias com essa frase/lamento grudada na minha mente e com as imagens dessa senhora e de sua filha gravadas na minha retina

Ninguém, tenho a mais empedernida convicção, é capaz de dimensionar a dor dessa senhora que, além dos bens materiais que perdeu, viu a sua filha ser levada, para sempre, de forma tão cruel.

A verdade é que ninguém é capaz de mensurar a dor de quem perde um filho. Essa dor é dor pungente, a dor que lancina. É a dor que dói mesmo.

Quem perde um filho perde a própria razão de existir. Quem perde um filho – e, com muito mais razão, se esse filho é levado por uma enxurrada, a mesma enxurrada que leva os excrementos  e tudo o mais que o homem entende descartável – não tem sequer condições de avaliar a dor que sente. É uma dor inqualificável, não mensurável. Daquele tipo que paralisa, que dói, que corrói, que faz sofrer, chorar e depois sofrer e chorar de novo.  

Esse é o tipo do acontecimento que nos faz ver que, afinal, apesar do que pensam alguns empavonados, somos todos iguais. Diante da dor, diante da tragédia, diante do infortúnio, somos todos, rigorosamente, iguais.

A dor que dói em mim e em ti é a mesma que dói em qualquer um. Nessa hora, todos nos nivelamos. Eu sou tu e tu és o teu vizinho. Somos iguais. A dor, a tragédia, o sofrimento nos igualam. E são capazes, até, de fazer desabrochar a humildade do arrogante e do prepotente.

Esta foi a primeira vez que ouvi alguém dizer que perdeu um filho – no caso uma filha – levado por uma enxurrada. O que isso significa? Como traduzir esse acontecimento? É possível dimensionar a dor de quem, impotente, assiste a uma filha ser levada numa correnteza?

A enxurrada, seguramente, não levou só a filha dessa senhora. A enxurrada, tenho certeza, levou uma parte dela; uma parte  que não mais será recomposta. A enxurrada levou seus sonhos, os seus projetos de vida, o seu sorriso e a sua vontade de viver.

A perda de um filho não é alguma coisa possível de ser superada, de ser reparada. Nada, mas nada mesmo, se compara à dor da perda de um filho, ainda mais quando essa perda se dá em circunstâncias iguais àquela.

Além do depoimento dessa senhora, assisti, depois, ao depoimento de um aposentado octogenário, também vítima do dilúvio que se abateu sobre Santa Catarina.

Esse senhor voltou ao local da tragédia, em razão da qual perdeu a casa e demais bens materiais, para buscar – pasmem! – um carnê de pagamento.

Indagado por um policial do corpo de bombeiros sobre os motivos que o fizeram retornar ao local de tão graves acontecimentos em busca do carnê de pagamento, ele respondeu, cândida e honradamente:

– Eu já perdi quase tudo que tinha, mas não posso, agora, perder o pouco que ainda me restou, ou seja, a minha honra, o meu nome. Eu preciso honrar os meus compromissos.

Que exemplo de caráter e de honradez nos deu esse senhor! São esses exemplos que me fazem crer que nem tudo está perdido. Os bandidos, os malfeitores, os canalhas são mesmo uma minoria. Ainda bem!

Mas, convenhamos, essa minoria de malfeitores, dentre eles os malversadores das verbas públicas, faz um estrago danado.

Seguramente, se os gestores da coisa pública tivessem a mesma dignidade e o mesmo caráter do nosso bom velhinho, ninguém testemunharia uma enxurrada levando a própria filha.

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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