O MOMENTO CERTO DO ARREPENDIMENTO

Não é incomum ouvir as pessoas dizerem, com excessiva soberba: “Não me arrependo de nada do que fiz até agora.” Ou, noutro giro, mas com igual arrogância: “Se tivesse que começar de novo, faria tudo outra vez.”

Dito de uma forma ou de outra, o que se infere dessas afirmações é que há pessoas que se julgam infalíveis, disso decorrendo que, por soberba, não aceitam rever alguma atitude equivocada que tenha praticado no passado.

Pessoas que pensam assim tendem a pagar um preço elevado pela arrogância, pois não existe quem, tendo passado pela vida, não tenha motivos para o arrependimento de algo que tenha feito, para o qual, importa dizer, só há um momento: o momento certo.

Contudo, se não formos capazes de perceber o momento certo do arrependimento, daí em diante só pode ocorrer o lamento, aqui entendido como a expressão de uma dor. É que, fora de hora, o arrependimento é lamento, autoflagelo, autopunição.

A verdade é que há pessoas que só demonstram algum arrependimento depois do caldo derramado, diante, muitas vezes, da proximidade do fim, quando mais nada pode ser feito para reparar os erros cometidos. Por isso, tenho dito, fruto da minha experiência de vida, que há tempo para o arrependimento, como há tempo para plantar e para colher.

Arrepender-se a tempo e tentar minimizar as consequências dos erros cometidos tem que ser, ademais, em face de uma ação espontânea. Nesse sentido, não vale o arrependimento imposto, premido pelas circunstâncias, decorrente, portanto, de pressões exógenas,  porque aí, é necessário redizer, não se trata de arrependimento, mas de lamento, quando não mero oportunismo.

Nessa perspectiva, importa destacar que quem, por exemplo, não valoriza a família, quem não cuidou de quem deveria cuidar, pode ter certeza de que, muito provavelmente, se não for capaz de se arrepender a tempo e hora, tenderá a receber em contrapartida, nos momentos mais angustiantes de solidão, as migalhas que restaram do relacionamento que nunca valorizou.

A verdade é que o que passou, passou, e o que foi feito, feito está, convindo ilustrar essas reflexões com uma passagem da história protagonizada pelo líder chinês Deng Xiaoping, o qual, indagado sobre como teria sido escrito a história, se Kennedy não tivesse sido assassinado, teria respondido, irritado: “A senhora Kennedy não teria casado com Onassis”, com isso querendo dizer que não dá para ficar perscrutando em face de situações consolidadas.

De tudo quanto refleti acima fica a advertência definitiva: quem não foi capaz de amar, de valorizar os entes queridos, quem só pensou em seus próprios interesses, quem não soube compartilhar, se solidarizar, enfim, não terá condições – nem tempo – de, aproximando-se o fim, reconstruir a relação que solapou.

Por tudo isso é que devemos amar, nos entregar, sem restrição, sobretudo às pessoas que nos amam verdadeiramente, pois, creiam, diante dos infortúnios, das dificuldades pelas quais todos haveremos de passar um dia, se não formos capazes de amar e nos dedicar verdadeiramente, tenderemos, quando mais necessitarmos, apenas lamentar, cumprindo lembrar que na vida há momentos em que vivemos sob a luz do sol e noutros nos quais somos açoitados pela chuva, e quem não for capaz de assimilar essa singela lição, não saberá o que fazer diante da tempestade (conclusão inspirada em Alexandre Dumas).

É isso.

MONSTROS, SEDUTORES E OPRESSORES

A violência contra a mulher no Brasil tem números alarmantes (em 2020 o 190 foi acionado 694.1, foram deferidas 294.440 medidas protetivas, e registradas 230.160 ocorrências por lesão corporal – fora os 64.460 crimes de estupro), números que me levaram a essas reflexões, que decorrem, por óbvio, da ação covarde/abominável dos que nomino monstros, sedutores e opressores.

Diante desse cenário, a inquietação, dentre outras, que me levou a pensar na construção dessa crônica, foi a minha incapacidade de conviver  num ambiente de hostilidade e/ou de opressão – seja moral, seja física -, pois, nas minhas relações, sublimo a concórdia e a benquerença.

A propósito, trago à colação, para ilustrar, passagem relevante da nossa história, na qual desponta, com especial destaque, D. Pedro I, um dos nossos mais famosos monstros, sedutores e opressores que tenho notícia, a considerar as suas relações com a princesa Leopoldina.

Pois bem. Os registros históricos dão conta do tratamento desumano que D. Pedro dispensava a Leopoldina, seduzida e, depois,  desprezada por ele, que, ao que parece, sentia prazer em expor o lado mais perverso da sedução, em cujo cenário despontava, com especial destaque, como razão propulsora das agressões/humilhações, o tórrido romance que mantinha com a Marquesa de Santos.

Da última carta que D. Leopoldina enviou para sua irmã, Maria Luísa, ditada no seu leito de morte, apanho as passagens que reproduzo a seguir, pois que nelas está retratada, com tintas fortes, a sua angústia em face da ação opressora do, talvez, mais famoso monstro sedutor que habitaram essas paragens.

“Minha adorada mana. Reduzida ao mais deplorável estado de saúde e chegada ao último ponto de minha vida, no meio dos maiores sofrimento, terei também a desgraça de não poder eu mesmo explicar-vos todos aqueles sentimentos que há tanto tempo existiam impressos na minha alma. Minha mana! Não a tornarei a ver! Não poderei outra vez repetir que vos amava e adorava. Pois já não posso ter esta tão inocente satisfação, igual a tantas outras que permitidas me não são, ouvi o grito da vítima que vós reclama não vingança, mas piedade e socorro de fraternal afeto para inocentes filhos que órfãos vão ficar em poder de pessoas que foram autores de minhas desgraças, reduzindo-me ao estado em que me acho, de ser obrigada a servir-me de intérprete para fazer chegar até vós os últimos rogos da minha aflita alma”.

Prossegue a princesa:

“Há quase quatro anos, minha adorada mana, como vos tenho escrito, que por amor a um monstro sedutor me vejo reduzida ao estado de maior escravidão e totalmente esquecida do meu adorado Pedro. Ultimamente, acabou de dar-me a última prova de seu total esquecimento, maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças”.

(A propósito, os historiadores registram que D. Leopoldina fora tratada a pontapés por  D. Pedro, estando grávida. Mas não há testemunhas desse fato, razão pela qual não se pode afirmar, com certeza, que essas agressões tenham ocorrido, efetivamente).

Digo agora, em arremate, que nós, responsáveis por uma relevante instância de controle social, devemos, diante de fatos que revelam a ação nefasta dos opressores, devemos agir, com especial determinação, para, sendo o caso, puni-los exemplarmente, a mais eficaz alternativa dissuasória que temos às mãos, com o que criaremos um caldo de cultura que servirá de norte para as futuras gerações.

É isso.

AXIOMAS DE ARAQUE

Nós passamos a vida construindo frases que, com o tempo, funcionam como verdadeiros axiomas, para, a partir delas, incutir nos outros, e em nós mesmos, falsas convicções, dizendo, naturalmente, coisas nas quais não acreditamos/aceitamos, do tipo “falem mal, mas falem de mim”.

A verdade é que, nas nossas relações, persistimos acreditando em frases feitas – “os últimos serão os primeiros” -, que costumam ser proferidas com aparente convicção, mas que não passam de sopro, como ocorre, por exemplo, quando praticamos um desatino, fazemos um malfeito, mas, para dissimular, dizemos estar com a “consciência tranquila”, mesmo que ela esteja em turbulência.

Apesar do oportunismo escrachado das frases feitas, ditas ao sabor das circunstâncias, nós as proferimos com insistência, como uma espécie de falácia argumentativa, conquanto não traduzam a realidade, nem tampouco o que sentimos.

Feitas as digressões necessárias, digo, agora, que me decidi por essas reflexões depois de ter ouvido, incontáveis vezes, de pessoas de bem, diante das vantagens auferidas pelos espertalhões, que “o importante é colocar a cabeça no travesseiro e dormir”, na doce ilusão de que os que praticam desatinos  passem noites insones.

A verdade é que se engana quem acredita que os protagonistas de condutas desviantes – os que recebem propinas ou que mercadejam decisões judiciais, por exemplo – percam o sono em razão dessas ações, pois que, é de rigor admitir, eles não têm consciência moral e, por falta desta, colocam a cabeça no travesseiro e dormem.

O que precisa ser dito é que quem perde o sono, quem coloca o rosto no travesseiro e não dorme mesmo, são os que, sendo honestos e sem oportunidades, deitam-se com a mente em pandemônio ante a certeza de que sobreviver nas próximas vinte e quatro horas será mais um grande desafio, inclusas as dificuldades para alimentar a família.

Importa dizer, ademais, que quem coloca a cabeça no travesseiro e não dorme mesmo é quem não tem emprego e não tem perspectiva de futuro, ao tempo em que assiste, impotente, o enriquecimento ilícito de alguns oportunistas, para os quais o que importa mesmo é seu bem-estar e para os quais solidariedade, retidão e empatia são apenas palavras a serem verbalizadas ao sabor das circunstâncias.

Nessa linha de pensar, digo, agora, como verdade incontestável, que é uma insensatez imaginar corruptos perdendo o sono em face dos seus desatinos e que pensar de modo diverso é o mesmo que assumir estar vivendo num mundo de ilusão, bastando, para essa constatação, olhar em volta e ver o mundo de ostentação em que vivem os transgressores, para os quais o centro do universo é o seu próprio umbigo.

A verdade é que quem vive de deslizes morais não perde uma noite de sono, sobretudo porque tem certeza da impunidade, fruto da leniência das instâncias persecutórias, cujas ações são destinadas a uma parcela específica da sociedade, exatamente aquela marginalizada para a qual são negadas as vias de acesso ao consumo do mínimo para sobreviver com dignidade.

O certo é que, apesar dos desvios morais, os malfeitores colocam a cabeça no travesseiro, deitam e dormem como se vivessem uma vida de retidão, usufruindo, sem pudor, do produto de suas ações impudicas, cientes de que nunca serão alcançados pelas instâncias de controle e que, se algum dia o forem por descuido, serão beneficiários de uma interpretação benfazeja da lei.

É isso.

MINIMALISMO PENAL E PROTEÇÃO SOCIAL

Inquieta a sociedade a veiculação sistemática de notícias sobre reiterações criminosas de meliantes colocados em liberdade, muitos deles traficantes de drogas, integrantes de organizações criminosas ou autores de crimes violentos, a pretexto de serem presumidamente inocentes, descurando-se, nessa perspectiva, de sua perigosidade, o que se traduz, desde a minha compreensão, inaceitável menosprezo ao interesse público.

Em situações tais, mesmo submetido a críticas, não descuro de manter preso quem demonstra propensão para a prática de crime ou, não sendo contumaz, o pratica com violência contra a pessoa, mas sem perder de vista, por óbvio, a densidade, a relevância do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, uma vez que vivemos num Estado Democrático de Direito, sob os auspícios, portanto, do princípio da legalidade.

Nessa linha de pensar – e de atuar -, mesmo sem antecedentes criminais, mesmo sem comprovada recalcitrância, aos criminosos perigosos só excepcionalmente concedo um favor legis, na compreensão de que não se pode deixar de ponderar sobre as consequências de colocá-los em liberdade, posto que a sociedade precisa de proteção, que às vezes é mimetizada pelos minimalistas, para os quais vale mais o direito individual que o coletivo.

A minha experiência em face das consequências nefastas à sociedade pela concessão de liberdade a  meliantes renitentes e violentos, que propendem a não refluírem em suas ações, sabido que não os inibem as medidas cautelares alternativas, tem me conduzido à manutenção das prisões provisórias que se mostrem imprescindíveis (carcer ante tempus) à preservação da ordem pública, nada obstante a presunção de inocência,  invocada, às vezes equivocadamente, para devolver a liberdade de quem não está a merecê-la.

Todavia, em que pese o quadro de violência que a todos nós apavora, os minimalistas não pensam assim. Nesse sentido, há os que – agora chamados garantistas, como se garantismo se confundisse com impunidade -, mesmo em se tratando de acusados recalcitrantes ou integrantes de perigosas organizações criminosas, preferem a opção pela liberdade, como se a presunção de inocência fosse um passaporte para a criminalidade.

No atual cenário, tenho a nítida compreensão de que a ordem pública exige do magistrado maior rigor no exame dos pleitos que buscam a liberdade de meliantes perigosos, razão bastante para, se for o caso, flexibilizar, em tributo ao cidadão de bem, em respeito à sociedade, o princípio da presunção de inocência, sabido que não existe direito absoluto, mesmo os ditos fundamentais e que eles não existem para proteger quem não tem controle de suas ações criminosas.

Ademais, é preciso ter em mente que os direitos fundamentais devem assegurar a esfera de liberdade individual apenas quando as interferências do poder público forem ilegítimas; e não é ilegítimo manter segregadas pessoas perigosas e resilientes às ações das instâncias persecutórias.

Para os que advogam o minimalismo penal, ou seja, a prisão como extrema ratio, lembro, forte nas lições de Claus Roxin, apenas para ilustrar e subsidiar a reflexão, que o Direito Penal – e consectários – é um mal necessário do qual não podemos nos afastar, em face da criminalidade violenta e reiterada.

É isso.

OS DONOS DA VERDADE

Nada é mais danoso para as relações do que a soberba, a vaidade e arrogância. E, nesse cenário, vem junto a pretensão de ser proprietário da verdade, de conhecer o rumo certo, a direção, sobretudo quando se trata de um líder qualquer, pois, nesse alvitre, leva consigo parcela de seguidores, muitos dos quais, fanatizados, perdem a sensatez/lucidez.

Não sei lidar bem com essas questões. Aliás, tenho enorme dificuldade de conviver com os que se imaginam proprietários da verdade, como se esta fosse, como qualquer objeto de consumo, exposta à venda numa gôndola de supermercado.

Contudo, não é assim qu a banda toca, disso inferindo-se que, por mais relevante que seja a nossa posição, por mais destacada que seja a nossa atuação, por maiores que sejam as nossas convicções, é preciso ter humildade para ouvir e refletir sobre os que pensam diferente.

Não se constrói o mundo com arrogância, tentando impor as nossas vontades, os nossos desejos, e, de quebra, as nossas verdades, seja qual for a posição que ostentemos na sociedade, sobretudo se as nossas posições entram em rota de colisão com a ciência e se exercemos uma posição de liderança, porque esse tipo de comportamento açula a insensatez dos que se recusam a pensar.

Se é verdade que a vida, não é menos verdadeiro que há os que teimam em não aprender e preferem arrotar incoerência e arrogância, levando consigo, quando se trata de uma liderança, os indefesos, ignorantes e fanatizados, cujo horizonte se perdeu em face de sua estupidez, limitadora de sua cognição.

Na ficção, tudo é possível, porém, no mundo dos comuns, ainda não nasceu um dono da verdade, conquanto haja aqueles que se arvoram proprietários dela, nem que, em face disso, precisem, muitas vezes, desqualificar o interlocutor, em vez de refletirem sobre o objeto do conhecimento.

Devido a esse enorme equívoco de percepção, os que se imaginam donos da verdade creem estar sempre certos, imputando, nesse afã, o erro e a percepção equivocados sempre ao interlocutor. Por isso, não raro, são histriônicos, tentam vencer os embates com argumentos irracionais, esmurrando o bom senso e agredindo a sensatez, incapazes que são de parar para ouvir o ponto de vista adverso, daí que, em vez de melhorarem os argumentos, gritam e desqualificam os que pensam diferente (Desmond Tutu).

Convém lembrar, a propósito, o grande Elio Gaspari, para quem “a convicção de estar sempre certo nos impede de reconhecer que somos capazes de errar”, razão pela qual, por pensarem desse modo, vivem em permanente solidão, na suposição, também equivocada, de se bastarem a si mesmos (Vinicius de Morais).

Para ilustrar essas reflexões, convém chamar à colação a reflexão do ministro Luís Roberto Barroso, segundo o qual “quem pensa diferentemente de mim não é meu inimigo”, para, na mesma linha, argumentar que “a verdade não tem dono e que respeitar o outro e conviver com a divergência não significa abrir mão de si próprio”.

Logo, é preciso aceitar o pluralismo e o contraditório. Pena que há os que não aceitam a diversidade como algo natural; em face disso, pensam solitariamente, não aceitam a divergência, que veem como uma afronta. Por isso, ao invés do argumento contrário, focam, muitas vezes, na pessoa de quem o enuncia, numa lamentável reafirmação desse péssimo hábito brasileiro de que o melhor argumento é desqualificar moralmente quem pensa diferente.

É isso.

A CRIAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO

Por prudência e cautela, desde muito cedo senti um certo acanhamento quanto à possibilidade, de nós, juízes, assumirmos o protagonismo no enfrentamento de certas questões sensíveis (criação do direito), em face, sobretudo, da minha formação jurídico-cultural (tradição positivista). Todavia, em pouco tempo, sem as amarras de uma prudência exagerada, compreendi que, no exame de determinadas questões, não se pode descurar da falta de sensibilidade e da omissão do legislador ordinário, não restando ao julgador, nesse cenário, muitas vezes, outra alternativa que não a de assumir um certo poder criador, sobretudo em face da estrutura normativo material da Constituição de 1988, impregnada, como sabemos, de princípios e regras de grande abertura semântica, de forma a permitir ao intérprete um singular espaço de conformação.

Cappelletti ensina: “Nos países de tradição positivista, a doutrina, durante muito tempo, resistiu à ideia de criação do Direito pelo juiz, cuja atividade estava confinada à vontade clara da lei. Todavia, com a complexidade das relações na sociedade moderna e a multiplicidade das demandas judiciais, a própria vontade da lei não mais se mostrava clara. Ao contrário, vaga e ambígua, a lei passa a suscitar variadas interpretações” (Juízes Legisladores? p. 24-25). E nesse ambiente, de regras obscuras e imprecisas, estão postas as condições para a criação judicial do direito, até mesmo para o ativismo judicial.

Nos últimos anos, no Brasil, temos assistido, sobretudo depois da Carta Política de 1988, à expansão do Poder Judiciário, que tem promovido uma verdadeira revolução, em detrimento do formalismo de inspiração liberal, época em que, como sabido, a atividade do juiz era a de declarar, mecanicamente, o direito, valendo-se, tão somente, da lógica dedutiva de interpretação.

No Estado Democrático e Constitucional, o direito já não se aperfeiçoa, não evolui e nem alcança a sua real finalidade se não em face da ação criativa dos membros do Poder Judiciário, que rompeu, definitivamente, com o monopólio legislativo na formulação do Direito, assumindo, de vez, a sua condição de corresponsável pela transformação do Estado, enfrentando sem acanhamento o grande desafio de controlar os outros Poderes, de forma a trazer para o centro do debate político a força axiológica dos textos constitucionais.

A criação judicial do direito, afirmo, à guisa de reforço, inspirado nas lições de Inocêncio Mártires Coelho, “decorre do exercício regular do poder-dever que incumbe os juízes de transformar o direito legislado em direito interpretado/aplicado, caminhando do geral e abstrato da lei ao singular e concreto da prestação jurisdicional, a fim de realizar a justiça em sentido material, que nisto consiste o dar a cada um o que é seu”. (Inocêncio Mártires Coelho, in Ativismo Judicial: o caso brasileiro, palestra proferida no Ministério Público do Estado do Pará).

Consigno, nada obstante, que o magistrado, nessa função de intérprete/aplicador do direito, não pode agir por capricho ou por conta de suas idiossincrasias, sob pena de se igualar aos que, nos demais poderes, agem sem idealismo, mas impulsionados pelos seus interesses pessoais, ou de grupos de lobistas, sem nenhum compromisso com a comunidade.

Para finalizar, uma chamada à consciência judicial: o magistrado deve ter presente, sempre, que certas minorias, certos grupos sociais, religiosos ou econômicos, só encontram nos tribunais, e em nenhum outro lugar, a proteção que estão a merecer (Luís Roberto Barroso). É nesse ambiente que o juiz constitucional assume o seu real, definitivo e mais relevante papel, cumprindo relembrar, nessa linha de intelecção, que a função do magistrado vai muito além da de mero espectador, agente passivo ou figura inanimada e ascética, que se limita a pronunciar as palavras da lei (visão montesquieuniana).

É isso.

OS PERDIGOTOS DOS PRESIDENTES

Não dá para não voltar ao tema. Logo, não deixarei de fazê-lo, enquanto a nau dos insensatos singrar os mares da ignorância, que mata e que infelicita a vida dos que, pensando de modo diverso, navegam pela via, cada vez mais estreita, da solidariedade e da empatia.

Decerto que nem precisaria dizer que vivemos, cá no Brasil como nos Estados Unidos, num ambiente de intensa radicalização política, numa dimensão nunca vista dantes, que tem contribuído para que pessoas, antes conhecidas pela sensatez, pareçam, em determinadas circunstâncias, irracionais, levando-nos à estupefação.

Querelas políticas, descambando para a insensatez e para violência, importa dizer, sempre houve, bastando lembrar, para ilustrar, que, a seis meses da eleição de 1950, o país viveu uma noite de assombro no Largo do São Francisco, no Rio, quando seguidores de Getúlio Vargas e Eduardo Gomes se enfrentaram até que a polícia dissipasse a confusão a cassetete, o mesmo se dando, concomitantemente, no Flamengo, onde brigadistas e getulistas também se enfrentaram (“Samuel Wainer: O homem que estava lá”, de Karla Monteiro, ebooks, Kindle, Companhia das Letras)

Nessa senda, importa anotar, de mais a mais, que é mais do que compreensível que todos nós tenhamos as nossas preferências – políticas, inclusive -, sabido que vivemos das nossas escolhas, e que ninguém deseja mesmo uma população anódina e acrítica -, sem posição, enfim.

Até aqui vai a minha compreensão em face da polarização que testemunhamos no Brasil e nos Estados Unidos, levada ao paroxismo nas pugnas eleitorais. Passando para a página seguinte, no entanto, já deixo de compreender e me coloco, sim, em rigorosa e definitiva linha de dissentimento com os que ultrapassam o umbral da racionalidade e do bom senso.

E, a meu juízo – e aqui passo a ratio dessas reflexões -, se submeter, por fanatismo, por paixão política, por miopia ou insensatez, aos perdigotos de qualquer pessoa, ainda que seja de um presidente da república, com grande possibilidade de contaminação pelo novo coronavírus, como fazem por aqui (Brasil) e por lá (Estados Unidos) os apoiadores de Bolsonaro e Trump, não é só inaceitável, como também estupefaciente pelo que contém de irracional, que só se justifica em face de mentes obliteradas por uma adesão cega que decorre de um fervor excessivo e delirante.

A pergunta que se impõe, em face dos perdigotos dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro: alguém, em sã consciência, tem condições de dizer quantos já foram contaminados, direta e indiretamente, pelos seus jatos de saliva?

Claro que ninguém terá uma resposta cartesiana para essa indagação. Ainda assim, convém fazê-la, apenas à guisa de instigação, em face da incomum predisposição de alguns à contaminação voluntária, por facciosismo que leva à falta de discernimento.

Diante de uma catástrofe, convém reafirmar o óbvio: o que se espera e se exige de quem tenha o mínimo de bom senso é que seja razoável e que cumpra as recomendações dos experts, convindo advertir, para concluir, que, quando você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você (Friedrich Nietzsche) e que, ademais, a vida é uma tempestade, razão pela qual em um momento você aproveita a luz do sol, no outro, é açoitado pela chuva, importando mesmo, nesse cenário, é o que você faz quando a tempestade chega (Alexandre Dumas), e, pelo que vejo e sinto, diante das intempéries, há muitos que não sabem como se conduzir, ou se conduzem muito mal, dando péssimos exemplos, para, adiante, inevitavelmente, pagarem a conta que decorre das atitudes impensadas que protagonizaram.

É isso.

AOS QUE AMAM ODIAR

O contraditório – ao lado da ampla defesa – é, sem dúvidas, uma das mais relevantes e destacadas conquistas civilizatórias. Logo, dar a chance para que alguém possa se contrapor em face de um argumento ou em face de uma acusação, concretiza um marco civilizatório relevante e necessário de qualquer nação democrática. Nesse sentido, as Constituições democráticas, para garantir a igualdade entre as partes, tão plena quanto possível, preconizam, nos processos administrativo e judicial, o contraditório e a ampla defesa (Constituição Federal do Brasil, artigo 5º. LV)

Mas não só nos procedimentos formais se impõe a observância do contraditório e da ampla defesa. Na vida pessoal, no ambiente familiar, nas nossas relações informais, enfim, é de rigor que se dê ao outro, ainda que seja um desafeto, a possibilidade de se contrapor em face de uma acusação, e de fazê-lo à luz do exercício pleno de defesa, que é exatamente o que não acontece nas redes sociais: uma vez acusado, a condenação, sem defesa e sem contraditório, ocorre inapelavelmente.

Disso resulta que, em vez do contraditório e da ampla defesa ( Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório que brota o exercício da defesa. Pellegrini Grinover, Ada; Scarance Fernandes, Antonio; Gomes Filho, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, 2. ed. São Paulo, Malheiros, 1992, p.63), tem-se reservado a muitos apenas o sentimento mesquinho da vingança, da imputação irresponsável, do escárnio e da sordidez. Daí que as redes sociais, na sua face mais obscura e perversa, se transformaram em verdadeiras redes de inquisição, ante a precipitada conclusão de que o homem nasce culpado e corrompido pelo mundo (“el animal humano nace culpable; estando corrompido el mundo, basta excavar en un punto culaquiera para que aflore el mal”).

É dever de todos o repúdio à imolação das pessoas em face da ação pérfida e predadora dos haters que habitam as redes sociais, que são uma subespécie de gente que ama odiar, adora achincalhar, se esmera no apedrejamento moral dos que ousam pensar de modo diferente do que pensam, como se fosse pecado discordar, se contrapor, assumir linha de compreensão diversa, sob a equivocada compreensão de ser possível a construção de uma sociedade plural sem o contraditório.

Falo isso para redizer que o contraditório, tão relevante na construção de uma sociedade plural, não pode e nem deve ser confundido como algo descartável e deferido como um favor. Ao contrário disso, deve ser a todos oportunizado como um exercício da cidadania, quer num procedimento formal, quer nas relações informais, na certeza de que o homem deve ser educado racionalmente para a compreensão, para a tolerância, para a capacidade de entender o diferente (Luís Roberto Barroso).

Importa redizer, para concluir, que num mundo povoado de haters, permeado de notícias falsas, onde se dissemina o ódio gratuitamente, mais do que nunca é preciso ouvir o outro lado, oportunizar o contraditório e a ampla defesa, permitir, enfim, que todo e qualquer cidadão, antes de uma maledicência ser veiculada, arrostando a sua honra, se manifeste, exponha a sua posição e a sua defesa, para que sejam evitados os linchamentos morais tão ao gosto dos odiadores que habitam o hoje descontrolado mundo da internet.

Para usar a expressão do escritor britânico Samuel Butler, é preciso ouvir a versão do diabo. Digo, para completar: mesmo que ele tenha rabo, chifre e tridente ameaçador, é preciso reconhecer a todo cidadão o direito ao contraditório e à ampla defesa, razão pela qual, forte nessas reflexões, cá do meu canto, ressabiado, checo tudo; tanto no trabalho, quanto na vida pessoal, pois não me aventuro a, de forma irresponsável, acreditar na primeira informação, para, em seguida, replicá-la.

É isso.

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