OS PERDIGOTOS DOS PRESIDENTES

Não dá para não voltar ao tema. Logo, não deixarei de fazê-lo, enquanto a nau dos insensatos singrar os mares da ignorância, que mata e que infelicita a vida dos que, pensando de modo diverso, navegam pela via, cada vez mais estreita, da solidariedade e da empatia.

Decerto que nem precisaria dizer que vivemos, cá no Brasil como nos Estados Unidos, num ambiente de intensa radicalização política, numa dimensão nunca vista dantes, que tem contribuído para que pessoas, antes conhecidas pela sensatez, pareçam, em determinadas circunstâncias, irracionais, levando-nos à estupefação.

Querelas políticas, descambando para a insensatez e para violência, importa dizer, sempre houve, bastando lembrar, para ilustrar, que, a seis meses da eleição de 1950, o país viveu uma noite de assombro no Largo do São Francisco, no Rio, quando seguidores de Getúlio Vargas e Eduardo Gomes se enfrentaram até que a polícia dissipasse a confusão a cassetete, o mesmo se dando, concomitantemente, no Flamengo, onde brigadistas e getulistas também se enfrentaram (“Samuel Wainer: O homem que estava lá”, de Karla Monteiro, ebooks, Kindle, Companhia das Letras)

Nessa senda, importa anotar, de mais a mais, que é mais do que compreensível que todos nós tenhamos as nossas preferências – políticas, inclusive -, sabido que vivemos das nossas escolhas, e que ninguém deseja mesmo uma população anódina e acrítica -, sem posição, enfim.

Até aqui vai a minha compreensão em face da polarização que testemunhamos no Brasil e nos Estados Unidos, levada ao paroxismo nas pugnas eleitorais. Passando para a página seguinte, no entanto, já deixo de compreender e me coloco, sim, em rigorosa e definitiva linha de dissentimento com os que ultrapassam o umbral da racionalidade e do bom senso.

E, a meu juízo – e aqui passo a ratio dessas reflexões -, se submeter, por fanatismo, por paixão política, por miopia ou insensatez, aos perdigotos de qualquer pessoa, ainda que seja de um presidente da república, com grande possibilidade de contaminação pelo novo coronavírus, como fazem por aqui (Brasil) e por lá (Estados Unidos) os apoiadores de Bolsonaro e Trump, não é só inaceitável, como também estupefaciente pelo que contém de irracional, que só se justifica em face de mentes obliteradas por uma adesão cega que decorre de um fervor excessivo e delirante.

A pergunta que se impõe, em face dos perdigotos dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro: alguém, em sã consciência, tem condições de dizer quantos já foram contaminados, direta e indiretamente, pelos seus jatos de saliva?

Claro que ninguém terá uma resposta cartesiana para essa indagação. Ainda assim, convém fazê-la, apenas à guisa de instigação, em face da incomum predisposição de alguns à contaminação voluntária, por facciosismo que leva à falta de discernimento.

Diante de uma catástrofe, convém reafirmar o óbvio: o que se espera e se exige de quem tenha o mínimo de bom senso é que seja razoável e que cumpra as recomendações dos experts, convindo advertir, para concluir, que, quando você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você (Friedrich Nietzsche) e que, ademais, a vida é uma tempestade, razão pela qual em um momento você aproveita a luz do sol, no outro, é açoitado pela chuva, importando mesmo, nesse cenário, é o que você faz quando a tempestade chega (Alexandre Dumas), e, pelo que vejo e sinto, diante das intempéries, há muitos que não sabem como se conduzir, ou se conduzem muito mal, dando péssimos exemplos, para, adiante, inevitavelmente, pagarem a conta que decorre das atitudes impensadas que protagonizaram.

É isso.

AOS QUE AMAM ODIAR

O contraditório – ao lado da ampla defesa – é, sem dúvidas, uma das mais relevantes e destacadas conquistas civilizatórias. Logo, dar a chance para que alguém possa se contrapor em face de um argumento ou em face de uma acusação, concretiza um marco civilizatório relevante e necessário de qualquer nação democrática. Nesse sentido, as Constituições democráticas, para garantir a igualdade entre as partes, tão plena quanto possível, preconizam, nos processos administrativo e judicial, o contraditório e a ampla defesa (Constituição Federal do Brasil, artigo 5º. LV)

Mas não só nos procedimentos formais se impõe a observância do contraditório e da ampla defesa. Na vida pessoal, no ambiente familiar, nas nossas relações informais, enfim, é de rigor que se dê ao outro, ainda que seja um desafeto, a possibilidade de se contrapor em face de uma acusação, e de fazê-lo à luz do exercício pleno de defesa, que é exatamente o que não acontece nas redes sociais: uma vez acusado, a condenação, sem defesa e sem contraditório, ocorre inapelavelmente.

Disso resulta que, em vez do contraditório e da ampla defesa ( Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório que brota o exercício da defesa. Pellegrini Grinover, Ada; Scarance Fernandes, Antonio; Gomes Filho, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, 2. ed. São Paulo, Malheiros, 1992, p.63), tem-se reservado a muitos apenas o sentimento mesquinho da vingança, da imputação irresponsável, do escárnio e da sordidez. Daí que as redes sociais, na sua face mais obscura e perversa, se transformaram em verdadeiras redes de inquisição, ante a precipitada conclusão de que o homem nasce culpado e corrompido pelo mundo (“el animal humano nace culpable; estando corrompido el mundo, basta excavar en un punto culaquiera para que aflore el mal”).

É dever de todos o repúdio à imolação das pessoas em face da ação pérfida e predadora dos haters que habitam as redes sociais, que são uma subespécie de gente que ama odiar, adora achincalhar, se esmera no apedrejamento moral dos que ousam pensar de modo diferente do que pensam, como se fosse pecado discordar, se contrapor, assumir linha de compreensão diversa, sob a equivocada compreensão de ser possível a construção de uma sociedade plural sem o contraditório.

Falo isso para redizer que o contraditório, tão relevante na construção de uma sociedade plural, não pode e nem deve ser confundido como algo descartável e deferido como um favor. Ao contrário disso, deve ser a todos oportunizado como um exercício da cidadania, quer num procedimento formal, quer nas relações informais, na certeza de que o homem deve ser educado racionalmente para a compreensão, para a tolerância, para a capacidade de entender o diferente (Luís Roberto Barroso).

Importa redizer, para concluir, que num mundo povoado de haters, permeado de notícias falsas, onde se dissemina o ódio gratuitamente, mais do que nunca é preciso ouvir o outro lado, oportunizar o contraditório e a ampla defesa, permitir, enfim, que todo e qualquer cidadão, antes de uma maledicência ser veiculada, arrostando a sua honra, se manifeste, exponha a sua posição e a sua defesa, para que sejam evitados os linchamentos morais tão ao gosto dos odiadores que habitam o hoje descontrolado mundo da internet.

Para usar a expressão do escritor britânico Samuel Butler, é preciso ouvir a versão do diabo. Digo, para completar: mesmo que ele tenha rabo, chifre e tridente ameaçador, é preciso reconhecer a todo cidadão o direito ao contraditório e à ampla defesa, razão pela qual, forte nessas reflexões, cá do meu canto, ressabiado, checo tudo; tanto no trabalho, quanto na vida pessoal, pois não me aventuro a, de forma irresponsável, acreditar na primeira informação, para, em seguida, replicá-la.

É isso.

blog: joseluizalmeida.com

e-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

NÃO É POUCA COISA

CONVENHAMOS, NÃO É POUCA COISA

Nunca busquei o poder a qualquer custo. Nesse sentido, sempre deixei que as coisas fluíssem. Não me submeto, assim, a qualquer condição para ascender. Contudo, não penso e nem ajo nesse sentido para parecer diferente, já que o normal mesmo é, estando no poder, buscar ascensão, alcançando cargos de direção, para engrandecer o curriculum, ser destacado numa galeria de fotografias ou para receber homenagens, o que não é bem a minha praia; ademais, porque sou carente de dois predicados básicos para qualquer pleito eletivo: simpatia e carisma.

Essa minha posição confronta a teoria segundo a qual todas as nossas motivações e energias não passam de aspirações pelo poder; até mesmo o sexo, o que, segundo essa teoria, seria uma das categorias de poder, “seja porque queremos possuir o corpo de outra pessoa – e, portanto, possuímos a pessoa completamente -, seja porque achamos que, ao possuí-la, impedimos outros de fazê-lo” (Leszek Kolakowki, in Pequenas Palestras sobre Grandes Temas, editora Unesp, p. 12).

Nessa linha de compreensão, Hobbes entendia que o movimento primário de todo ser humano é em direção ao poder. É dele a conclusão: “[…] evidencio uma inclinação geral de toda a humanidade, um perpétuo e incansável desejo de poder após poder, que só cessa com a morte[…]” (apud Martin Cohen, Casos Filosóficos, 2012, p.135).

É compreensível, pois, é à luz dessas menções teóricas – confirmadas na prática -, que muitas energias são despendidas pelo homem na busca pelo poder. Daí que não são poucos os que, obstinados, perseguem o poder de toda forma, despendendo até as forças que não têm. Todavia, a busca do poder não deve levar os postulantes a uma luta fratricida e sem limites, impondo aos contendores, bem ao reverso, o necessário e inefável respeito à sua própria dignidade.

O homem público se credencia para o exercício do poder em face da sua história; daí por que a sua conduta deve, como imperativo moral, ser ilibada, escorreita, imaculada, ainda que a ascensão, muitas vezes, resulte frustrada. Assim pensando, compreendo que não se deve transigir com o erro e com as concessões covardes e pouco republicanas em face do poder.

Faço essas reflexões apenas para deixar consignada a minha especial admiração por Sérgio Moro – não só em face de ter liderado a maior e mais exitosa operação de combate à corrupção que se tem notícias na história do Brasil, como também por não ter se submetido aos caprichos do supremo mandatário da nação para alcançar uma indicação ao Supremo Tribunal Federal, sabido que não são poucos os que, por ela, trocariam a própria dignidade. Digo isso porque ele bem que poderia ter aquiescido com todas as vontades de Sua Excelência para, assim, ficar “de boa” e pavimentar seu caminho em direção à suprema indicação, como vem fazendo André Mendonça, “em ações tão espetaculares quanto ridículas” (Elio Gaspari). Sérgio Moro, ao contrário, com a honradez e dignidade poucas vezes vistas, firmou posição definitiva em face de suas convicções e, com elas inabaladas, abriu mão de sua indicação, no afã de fazer a coisa certa.

Nada obstante a admiração que nutro por Sérgio Moro, como de resto nutrem por ele todas as pessoas de bem cansadas dos desvios de conduta dos nossos homens públicos, anoto que sempre vi, com reservas (cum grano salis, portanto), determinadas posições do ex-juiz, que, como todos nós, errou aqui e acolá, malgrado, reconheça-se, com absoluta preponderância dos acertos, razão pela qual eu não o absolvo de seus pecados e nem o canonizo pelos acertos, impondo-me o dever, todavia, de destacar que, num mundo em que há pessoas capazes de qualquer expediente pelo poder, ele, no particular, como em tantas outras ações, deu um exemplo de rara dignidade ao Brasil: primeiro, ao deixar o Poder Judiciário para servir ao país e, depois, ao abrir mão da indicação ao STF, em defesa de suas convicções pessoais, o que, convenhamos, não é pouca coisa.

É isso.

REDES DE INTRIGAS

Nessas reflexões, volto a um tema candente, sobre o qual já refleti outrora, depois de ter assistido – estupefato, mas sem surpresa – ao documentário O Dilema nas Redes, disponibilizado no serviço de streaming. E o faço levado pelo ambiente de radicalismo que se instalou no Brasil, com campo fértil de intrigas nas redes sociais, de onde despontam, em linhas opostas e inconciliáveis, os radicais de todos os matizes, incapazes de enxergar as virtudes dos que eles elegeram como adversários/inimigos, muitos dos quais destroçados, em sua dignidade e reputação, pela propagação de inverdades.

Antes, antevendo eventual incompreensão em face da minha condição de magistrado, a exigir de mim muito mais cautela e recato na emissão do pensamento, devo dizer que é insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de ideias, que não tenha compreensão do mundo, nem visão da realidade (Eugênio Raúl Zaffaroni, jurista portenho).

À guisa de registro, importa anotar, agora, que desde sempre, ainda nos bancos da Faculdade de Direito, localizada na Rua do Sol, década de 70, exponho, sem receio, a minha visão sobre os mais variados temas, sem nunca ter me permitido o direito à indiferença, por me recusar a ser um juiz asséptico e acrítico.

A verdade é que, compreendido aqui e incompreendido acolá, eu me mostro por inteiro, forte nas minhas inabaláveis convicções, razão pela qual tenho necessidade de expor o meu pensamento, como o faço agora, para dizer que, nos dias presentes, estamos carentes de um juízo de ponderação, de tolerância e de equilíbrio, sobretudo nas redes sociais, que se transformaram, sem olvidar do que elas têm de bom, em verdadeiras redes de intrigas e de propagação do ódio.

Confesso que, nos dias atuais, com tanta perfídia permeando as relações, da qual decorrem as malquerenças que encontram campo fértil nas redes sociais, me incomoda não escrever com mais liberdade, não deixar o pensamento fluir, não dar vazão aos meus sentimentos, disso resultando a compreensão de que os mais equilibrados têm o dever de repudiar a ação malévola e predadora dos odiadores que habitam as redes sociais, “que são uma subespécie de gente que ama odiar, adora achincalhar, se esmera no apedrejamento moral dos que ousam pensar de modo diferente do que pensam”(cf. Aos que Amam Odiar, in http//joseluizalmeida.com)

Nesse ambiente deletério, e por uma imperativa necessidade de autopreservação em face de ataques iminentes que podem vir de um lado ou de outro do espectro político mais fanatizado, eu me recuso, até, a opinar sobre temas de interesse público, para não dar vazão à paranoia que tomou conta do país, com a malfazeja divisão entre “os de lá” e “os de cá”, que leva os mais radicais a concluírem, sem base factual, que “os de cá”, ou seja, os que se alinham ao seu pensamento, estão sempre certos, e o que dele divergem – “os de lá”, portanto – assim o fazem porque são seres humanos de pouca ou nenhuma virtude; rebotalhos, enfim.

E assim, num ambiente no qual despontam os inconsequentes, tenho percebido que não são poucos os que, assim como eu, optam pela prudência, para, como anotado acima, não estimularem reações heterodoxas, muitas delas manipuladas, dolosa, maldosa e deliberadamente pelos que consomem os serviços das redes sociais.

Na defesa das minhas convicções, sou intenso, sim, mas com limites, máxime nos dias atuais, pelas razões acima expostas. Daí por que, nas minhas reflexões, imponho a mim mesmo um juízo de ponderação que, ao ensejo, concito o leitor a praticá-lo nas redes sociais, para distensionar o ambiente político, pois os discursos de ódio e as fake news são, sim, uma “ameaça à democracia” ( Felipe Campelo, cientista político, da Universidade Federal de Pernambuco), bastando, para essa compreensão, voltar os olhos às manifestações recentes com ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal.

É isso.

DITADORES TAMBÉM CHORAM

Há cronistas que juram de pés juntos que a inspiração para uma crônica é uma “luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente, que acende a mente e o coração (João Nogueira). Confesso que, de minha parte, não recebo as minhas crônicas com a mesma rapidez. Tenho até muitas dificuldades para escrevê-las. É que elas precisam de um fato concreto e relevante para se manifestarem, daí que estou sempre atento aos acontecimentos para que, a partir deles, flua a minha inspiração.

A política nacional, por exemplo, pela ação dos nossos representantes, é, para mim, uma fonte inesgotável de inspiração. Nesse sentido, eu bem que poderia, à falta de outro tema, refletir, aqui e agora, por exemplo, sobre a propalada “nova política”, em face do protagonismo do famigerado “Centrão”, onde habitam os mais fisiológicos homens públicos da nossa pátria. Não devo fazê-lo, no entanto, em face da minha condição de magistrado, na compreensão de que há limites para exposição do meu pensamento.

Aprendi, desde sempre, que não convém a um magistrado expor o seu pensamento sobre qualquer tema; máxime temas sensíveis como os políticos. É necessário prestar vassalagem ao bom senso e à ética, os quais devem ser a bússola a orientar as manifestações públicas de um julgador. Nesse sentido, não convém uma exposição demasiada sobre questões políticas, ainda que eu tenha em linha de conta que o juiz não deva ser um eunuco político.

À luz dos fatos e noutro giro, eu bem que poderia, se a mim me fosse permitido, comentar, com a devida profundidade, a decisão de soltura de André do Rap pelo ministro Marco Aurélio Mello, via liminar, bem assim a contraordem emanada do presidente do Supremo Tribunal Federal. Todavia, da mesma forma, não convém fazê-lo. É preciso, também nesse caso e do mesmo modo, tributar homenagem irrestrita ao Código de Ética.

O certo é que outras tantas condutas dos nossos homens públicos poderiam, sim, levar-me à elaboração de um artigo. Afinal, eles não cansam de surpreender com as suas ações, algumas delas pouco ou nada republicanas; outras, em face da sua relevância, desafiando, tão somente, uma detida reflexão.

Com essas cautelas, vou me deter, portanto, na notícia que mais me chamou a atenção nos últimos tempos, pelo que ela tem de inusitada: o choro do ditador norte-coreano Kim Jong-in, no fim de semana passado, durante o desfile militar em comemoração ao 75º aniversário do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, seguido de um pedido de desculpas ao povo coreano, admitindo, num rasgo de humildade, ter fracassado na condução do país em tempos de pandemia e tufões.

Confesso que nem nos meus delírios imaginei testemunhar o choro de um ditador e, no mesmo passo, uma manifestação de humildade desse mesmo ditador. Um ditador vertendo lágrimas perante seus súditos é algo que eu supunha não ser possível, ciente de que são, de rigor, pessoas insensíveis, quase sempre más, que não hesitam em mandar matar, em trucidar um adversário ou um inimigo político para se perpeturem no poder, como registram os fatos históricos.

Dito isso e ao ensejo, importa consignar, para não perder a oportunidade – e aqui faço o registro em minha defesa também -, que pessoas com a feição casmurra também choram. Daí porque não me surpreendi, como o fiz em face do ditador, quando vi o ministro Gilmar Mendes com a voz embargada na despedida de Celso de Mello, da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

Os fatos aos quais fiz menção acima deixam uma lição comezinha: o homem, por mais forte que pareça, por mais frio que seja, por mais poder que tenha, ainda que seja uma pessoa destemida, violenta e aparentemente insensível, também chora, seja ele um ditador, um ministro do Supremo Tribunal Federal ou um simples mortal, como o signatário destas reflexões.

É isso.

DURANTE A TEMPESTADE

Principio estas reflexões com um pensamento de Alexandre Dumas: “A vida é uma tempestade. Em um momento, você aproveita a luz do sol, no outro, é açoitado pela chuva. O que importa é o que você faz quando a tempestade chega”.

Digo mais, para desenvolver o meu raciocínio, que empatia é a capacidade psicológica para sentir o que sentiria outra pessoa caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela; que altruísmo é uma forma desinteressada de amar; e que solidariedade é um ato de bondade e compreensão para com o próximo.

A partir desses conceitos objetivos, importa, agora, indagar: por que, sendo todos filhos do mesmo Deus, seguidores da orientação cristã de quem pregou amor ao próximo acima de tudo, durante as tempestades a muitas pessoas faltam empatia, altruísmo e solidariedade?

Essa indagação inquietante tenho feito, repetidas vezes, a propósito da conduta de muitos que, podendo, não evitam o risco de contaminação pelo Sars-CoV-2, embora cientes de que, contaminados, podem, no mesmo passo e com grande probabilidade, infectar o semelhante, inclusive pessoas de sua própria família, muitas das quais do grupo de risco.

Essa grave falta de empatia, altruísmo e solidariedade, que nos iguala aos seres irracionais, me impõe reafirmar o que tenho dito nas conversas informais: nas adversidades, o homem se revela – para o bem ou para o mal. É dizer: há pessoas que não estão nem aí para o semelhante, ainda que esse semelhante sejam os próprios pais, numa atitude que, para mim, beira à irracionalidade.

Diante desse panorama, importa indagar, ademais: no que essas pessoas são diferentes, na essência, dos que se aproveitaram da pandemia para superfaturar na compra e venda de respiradores, de testes e de máscaras para o enfrentamento do novo coronavírus?

Indago, outrossim: no que diferem essas pessoas de sua Excelência, o Presidente da República, que nunca hesitou em se contaminar e replicar a contaminação, expondo, desnecessariamente, a vida de outras pessoas, inclusive de sua própria família?

No que essas pessoas são diferentes do tenista Novak Djokovic, número um do mundo, que abriu ao público um torneio de exibição em sua cidade natal, Belgrado, na Sérvia, promovendo uma aglomeração de pessoas sem máscaras nas arquibancadas e que, para completar, levou colegas de raquete a uma balada que varou a madrugada, debochando do novo coronavírus que, para se vingar, contaminou tanto ele quanto a esposa, o preparador físico e outros três tenistas que participaram da brincadeira?

E da influenciadora digital, Gabriela Pugliesi, especializada em saúde e bem-estar, que deu uma festa de arromba em plena pandemia e que, por isso, foi execrada/cancelada nas redes sociais? Do que diferem os intrépidos sabotadores dos protocolos sanitários?

Eu, sinceramente, não consigo compreender por que há pessoas que, podendo praticar ações benéficas ao semelhante, preferem, ao reverso, expor o seu desprezo pelo congênere. Nesse panorama, como animais que constroem, abrem veredas perigosas, incessante e perigosamente, sem se importarem aonde podem ser levados em face dos caminhos que escolheram (Dostoiévski. “Notas do Subsolo.” L&PM Editores. 40, Apple Books).

Pessoas insidiosas que agem como tem agido uma parcela da população em face da pandemia que atravessamos, lembram Mersault, protagonista de o Estrangeiro, de Albert Camus (eBook, Editora Record), um ser humano frio, insensível e amoral que, um dia depois do enterro da mãe, cuja data de nascimento e de morte nem sabia ao certo, inicia um caso amoroso e vai ao cinema se distrair, agindo, como sempre agiu, indiferente aos mais comezinhos valores morais.

É isso.

CASA DE PAI

As datas comemorativas devem ser levadas em conta, não só para o consumo, mas também para reflexões, o que faço aqui e agora, a propósito do dia dos pais, começando por uma ilustração literária, do clássico O Complexo de Portnoy, de Philip Roth (Pos 45, de 3882, Companhia de Bolso), no qual o personagem central da trama, Alexander Portnoy, além dos seus próprios conflitos, era obrigado a conviver com posições díspares e controvertidas dos pais, causando-lhe inquietação moral, pois, enquanto a sua mãe adotava a honestidade como prática de vida, o pai, em direção oposta, orientava o filho, por exemplo, a não se casar por beleza e nem por amor, mas por dinheiro.

Conflitos morais desse jaez, ao lado da disputa pelo poder, importa dizer, não se veem apenas nas obras ficcionais; criação distorcida e ambientes forjados à luz de disputas por dinheiro e por um naco de poder tem-se verificado, infelizmente, em muitos ambientes familiares, muitas das quais fruto de orientações paternas equivocadas. E assim, não são poucos os pais que, com suas ações e seu modo de vida, com os seus (maus) exemplos, induzem os filhos a acreditarem que nesse mundo o que vale mesmo é vencer a qualquer custo, e que, pelo poder, e em face do que dele decorre, tudo é permitido, tudo pode ser feito, pouco importando os valores morais.

A verdade é que, conquanto admita-se não seja regra geral o estímulo à convivência regada a interesse escusos, há, sim, muitos cujo exemplo e prática de vida deixam evidente que, por vantagens materiais/poder, vale qualquer expediente, mesmo que seja a forja de um casamento sem amor e por interesses materiais, com reflexo na criação da própria prole, como no exemplo acima, apanhado da literatura do grande Philip Milton Roth, festejado romancista norte-americano (Newark, Nova Jersey, 19/03/1933-Nova York, 22/05/2018).

Admito, sim, que sou do tipo careta, do tipo démodé, pois, apesar dos exemplos negativos que permearam a minha vida, fruto de uma convivência tóxica com o provedor do lar, apesar de todas as dificuldades pelas quais passei, acredito – e aposto -, sofregamente, no amor, na concórdia e na retidão no ambiente familiar, relegada a ambição material e a ambição pelo poder a um plano secundário.

Tenho dito e redito, com a ênfase necessária, que aqueles que orientam os filhos – por palavras ou pela prática de vida – a formarem uma família à luz de interesses menores, que não seja, portanto, em face do amor, os conduzem à construção de um castelo de areia, que sucumbirá à primeira tempestade. Afinal, não se orienta filhos a formarem uma família alicerçada no interesse econômico e outros que tais, porque, afinal, não se constrói uma sociedade minimamente decente, ministrando conselhos daninhos aos filhos, ensinando-os a levarem vantagens, em detrimento dos valores morais.

Quero, sim, ver meus filhos vencendo as dificuldades e conquistando o seu espaço na sociedade. Também quero que meus filhos sonhem e realizem os seus sonhos, pelo fato de desejar que eles construam a sua história como eu construí a minha. Todavia, não os estimulo às conquistas a qualquer preço, de toda sorte, sob os escombros de sua dignidade.

A casa de pai não deve ser apenas a escola dos filhos, mas uma boa escola, decente, fraterna e honrada, que os conduza pelos caminhos da dignidade e da decência. Logo, os desejos do homem, a sua ambição, a sua volúpia pelo poder e pelos bens materiais não podem ser de tal monta que o levem à degradação moral e, nessa faina, seus próprios filhos, pois, afinal e definitivamente, os fins nem sempre justificam os meios.

Para encerrar, lembro que Sócrates, tido por muitos como o mais sábio dos homens, entendia que se encontrava mais próximo dos deuses quando menos desejava. Por isso, se orgulhava de viver uma vida modesta, sem ambição; sentimento que, para mim, definitivamente, tem limites, os quais ensino, do mesmo modo, aos meus filhos.

É isso.

blog: www.joseluizalmeida.com

e-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

FILHOS E DILEMAS MORAIS

Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

Em vista das acusações de condutas ilícitas imputadas ao senador Flávio Bolsonaro, filho do atual presidente da República, e, também, a Fábio Luís Lula da Silva, o famigerado “Lulinha”, filho do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, foi que me propus a essas reflexões, porque envolvem pessoas destacadas da República, o que, de certa forma, aponta para a relevância de se perquirir até aonde podemos chegar na defesa dos nossos filhos.

Nesse sentido, inicio as reflexões com algumas indagações inquietantes: na defesa dos filhos vale tudo? Os filhos, por serem filhos, devem, de plano, ser perdoados pelos seus erros, pelos seus deslizes, pelos seus crimes? Os meus filhos, por serem meus filhos, merecem de mim a complacência e a compreensão que não merecem os filhos do vizinho? Até que ponto o homem público deve se envolver com a defesa dos filhos, a ponto de se descuidar dos destinos do próprio país? Nesse sentido, os interesses pessoais podem ser colocados acima do interesse público?

Duas séries televisivas (serviço de streaming) e um livro me levaram à indagação supra e, por consequência, a essas reflexões, que têm tudo a ver com o que testemunhamos nos dias atuais, como destaquei acima.

As séries em defesa de Jacob e Vossa Excelência, a primeira na Apple TV +, e a segunda no Globoplay –, bem como o livro Suzane Assassina e Manipuladora – tratam, a seu tempo e modo, do envolvimento de filhos com a prática de ilícitos.

Em Vossa Excelência (Apple TV+), produção israelense, narram-se os dilemas morais de um juiz íntegro ao saber do envolvimento do seu filho único com o cometimento de um crime grave. Na série em comento, o filho chega a casa aparentando desmedido nervosismo, e acaba confessando, depois de pressionado pelo pai, que usou o carro da família para dar uma volta, tendo, no caminho, se envolvido em um acidente com um motociclista. Contudo, em vez de socorrê-lo, acabou fugindo do local do crime. Diante do evento, o pai passa a lamentar por todas as vezes em que foi condescendente com o filho e o superprotegeu, indagando a si mesmo que tipo de ser humano ignora alguém ferido numa estrada para se preocupar apenas consigo mesmo. Um baita dilema moral, portanto, toma conta do juiz.

Na série Em defesa de Jacob (Globoplay), uma família leva uma vida aparentemente perfeita, numa casa confortável, num dos prósperos subúrbios americanos, numa aparente harmonia conjugal, até que Jacob, filho do casal, é acusado de matar um colega de classe. Andy e Laurie, pais de Jacob, sob o mesmo dilema moral, decidem defender o filho, mesmo sendo ele culpado.

Como se vê, nas duas situações antes descritas, ante o mesmo dilema moral, os pais assumem posturas diferentes.

Enquanto na série Vossa Excelência os pais do autor do fato assumem uma postura crítica, o que leva o espectador a crer – mais não posso dizer, para não dar spoiler – que não passarão panos na sua atitude, na série Em defesa de Jacob os pais assumem uma posição de intransigência, mas em defesa do filho.

O livro acima referido (editora Matrix) narra o assassinato dos pais de Suzane Louise von Richthofen, Manfred e Marísia, idealizado por ela própria, contando com a participação dos irmãos Cravinhos; um deles, Daniel, seu namorado. No dia do julgamento dos criminosos pelo Tribunal do Júri, a mãe dos irmãos Cravinhos, Daniel e Cristian, surpreendeu e emocionou a todos os presentes, quando, na condição de testemunha de defesa, subiu ao púlpito para depor. Na oportunidade, Nadja Cravinhos falou que criou os filhos com dignidade, amor e muito carinho, tendo, em seguida, com a voz embargada, sentenciado “Eu me sinto de luto e muito triste em relação à tragédia que se abateu sobre as duas famílias envolvidas” para, no final, surpreendendo a todos, pedir o que mãe nenhuma pediria para um filho, ou seja, a sua condenação, concluindo: “Essa justiça é necessária. Dói muito em mim, mas é necessária. Só peço a Deus que essa justiça imposta pelos homens seja na medida certa” (from “Suzane – Assassina e Manipuladora”, by Ulissses Campbel).

Em face do acima narrado, diante do dilema moral que se abate sobre os pais em face do envolvimento dos filhos com a prática de crime, resta-me indagar: devemos, em nome do amor que lhes devotamos, defendê-los a todo custo, mesmo sabendo que eles são culpados pelos crimes eventualmente cometidos, ou, ao reverso, devemos pugnar apenas para que a justiça seja feita, desde que seja na medida certa?

Agora a indagação definitiva: um homem público, com destacada posição na República, cujos destinos tem às mãos, está autorizado a mudar o rumo, mudar o discurso, mudar a conduta, trair os compromissos assumidos com a população por causa dos filhos, em defesa dos filhos, mesmo que eles tenham eventualmente cometido crimes?

Os destinos de uma nação podem ficar atrelados aos interesses familiares dos seus agentes ou, ao contrário, deveriam eles sublimar o interesse público, ainda que o preço a pagar seja a punição dos filhos pelos seus mal-feitos?

Nos dias presentes, essas e outras indagações me inquietam, sobretudo quando testemunho que, no jogo do poder, quando as questões pessoais sobrepujam o interesse público, ampliam-se as ações dos oportunistas, e o preço a ser pago é muito alto.

É isso.